19.12.23

Despedida

Esta será a minha última crónica na Diana. Não foi uma decisão fácil, nem resultou de qualquer impulso de última hora. Nada tem a ver com o resultado das eleições internas no PS, em que participei com o meu voto, convicta de que o novo Secretário Geral, com a vontade e a garra que lhe dão o carisma, tem as melhores condições para corresponder à vontade do voto popular no próximo dia 10 de Março.

Apetece-me citar o poeta, na sua versão Álvaro de Campos, e dizer: “O que há em mim é sobretudo cansaço /
Não disto nem daquilo, / Nem sequer de tudo ou de nada: / Cansaço assim mesmo, ele mesmo, / Cansaço.” Procurem o resto, vale a pena. Até porque este cansaço se cura, há baterias que se recarregam com o que se chama vontade. O que acontece quando, como eu, se deseja “impossivelmente o possível”.

Como expliquei na carta que escrevi a quem foram os primeiros a receber-me na Diana, “em cada crónica, note-se ou não quando vai para o ar, tenho-me empenhado com tanto esforço quanto o gosto e o prazer que é para mim pensar para escrever e partilhar. Mas o resto da minha vida é também muito isso mesmo, e o débito que me tem sido exigido alcançou agora um caudal que terá de abrandar nalguma frente.”

Foram mais de 12 anos em que nunca falhei uma única terça-feira. Crónicas gravadas no estúdio, no início. Mas também gravadas no outro hemisfério ou em várias latitudes. Como a imediatamente a seguir a 17 de junho de 2017, quando o inferno aconteceu em Portugal e eu estava na Califórnia, onde esse inferno acontece quase todos os anos. E eu só consegui gravar pouco mais que silêncio. Ou das vezes em que tive de “ir à faca” e os receios me faziam gravar as crónicas muito antes, não fosse o diabo tecê-las… Ou quando me despedia para sempre da minha Mãe…

Foram mais de 12 anos e ninguém vai para novo. Foram anos da minha vida que a Diana me proporcionou para tornar públicas as minhas ideias e palavras; das opiniões sobre o que fica mais perto, ou do que paira numa estratosfera muito própria. Distâncias ou proximidades a que muitos, certamente, não terão dado o sentido que desejavam ao ouvi-las ou lê-las. Os que nos emprestam os seus olhos ou os seus ouvidos são também construtores dos nossos textos e, por isso, também vos agradeço.

E não posso deixar de agradecer a alguém que contribuiu para que eu pudesse tornar-me uma pessoa interessante a quem abrir os microfones de uma rádio regional com as características da Diana. Alguém que teve um projecto para uma Évora ainda mais importante no panorama nacional, só em parte concretizado, e que muitos, injustamente, fizeram com que fosse, não apenas invertido, mas esquecido: falo de José Ernesto de Oliveira, obviamente.

E é assim que às Boas Festas que desejo a todos, não acrescentarei nem um “até para a semana”, ou um “até para o ano”, como costumava ser nesta altura. Será um “até sempre”, porque o sempre espera-se longo e o mundo está pequenino: andaremos, se quisermos, a “chocar” uns com os outros numa qualquer esquina, mais ou menos etérea.
Até sempre, então.

12.12.23

Qual era a dúvida?

O ambiente político e jornalístico está irrespirável. A comunicação social veio sobretudo mostrar mais, mas também terá, como qualquer outra corporação, a sua parte no assunto: o sangue e o lodo vendem bem.

Ao fim de décadas envolvida em meios políticos, com uma vivência em ambientes frequentados por pessoas oriundas de estratos sociais bem diferentes, e sobretudo de relações de proximidade não hierarquizadas, o que vivemos agora traz-me, afinal e só, a pergunta: qual era a dúvida?

Qual era a dúvida que, desde sempre num mundo em que o bem-estar e a prosperidade colectivos vêm, com sorte, em segundo lugar e cada um anda é a tratar do seu jardim, tenhamos chegado aqui?

Qual era a dúvida que, num jogo social em que por todo o lado se julga que quem não é bom para si, não é bom para os outros e não projecta poder, não nos traria aqui? (Lá diz o ditado popular: quem parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é tolo ou não tem arte.)

Qual era a dúvida que, no negócio das relações, os poderosos que não fazem jeitinhos aos que também têm o seu poder noutras áreas, não contribuem para que a cunha se transforme em chantagem (pistolão, como dizem no Brasil é muito mais adequado) e tenhamos chegado aqui? (Quem nunca ouviu que se fosse preciso ia chamar a CMTV?)

Ao fim de 50 anos, o que conquistámos foi também, com a Democracia, a oportunidade de muitos mais, para além das elites de poucos, imitarem os seus comportamentos. A definição de elite ganhou, na prática, declinações que, pelo menos, não nos deveriam deixar dúvidas sobre o porquê de vivermos o tráfico de influências como um sistema transversal. Ou há dúvidas que assim seja?

Há soluções definitivas? Ou é como as dividas dos governos que se vão gerindo? A mim resta-me ir tendo a consciência de que é assim e dos riscos que corro. E depois, lidar. Sem idolatrias, sem esperar por figuras salvíficas, mas com a oportunidade que não desperdiçarei de escolher, com a tal consciência, princípios, ideologias, avaliação de provas que me quiserem mostrar. Ou há dúvidas que é melhor termos o poder do voto para o usar do que ficarmos sentados em casa à espera? Ou ir lá convencidos de que chega votar para protestar e não para governar?

Para onde vamos, com este caminho? Não faço ideia, mas não tinha grandes dúvidas que chegaríamos aqui. E que nos habituaremos a isto, como a tudo. E, acima de tudo, tento não me esquecer de passados, mais distantes ou mais recentes. Se a desgraça dos outros não consola, o que vemos no Mundo aos 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos mostra-nos que não estamos sós. E que a esperança se serve em doses muito pequeninas.

 

5.12.23

O preço do azeite

Aproxima-se o Natal, o período em que mais disparatadamente se usa o dinheiro pelo mundo ocidental. Também é a data que relembra que o Povo judeu vivia numa espécie de colonato lá no lugar da Palestina. Mas adiante, que hoje não me apetece falar desta tragédia, mas de dinheiro e do que está acontecer ao que se faz com o fruto das oliveiras, aquelas árvores cujos raminhos no bico de uma pomba representam a paz, segundo Picasso.

Quem vende “mete a unha” e aproveita o impulso desatinado de quem compra como se não houvesse amanhã. Sendo que os amanhãs mudam muito de família para família, essa instituição que, já agora, também na época das Festas, costuma ir ao centro das atenções mais ponderadas. Nem que seja mesmo só porque é Natal, em modo tréguas, o que até já nem vai servindo de desculpa a vários níveis.

Certo é que, ainda o São Martinho vinha longe, e já se reparava que o preço do azeite atingia valores proibitivos. E mesmo com o IVA a zero decretado pelo vilipendiado Governo. Nem as misturas mais manhosas que desvirtuam o “ouro líquido” se podiam, nem podem, considerar baratas.

Ora, quando se percebe destes movimentos da economia como de lagares de azeite, o mistério adensa-se. Procuram-se provas, suspeita-se das costumadas alterações climáticas, desconfia-se de álibis, como a de um agricultor que ouvi e achava o fenómeno tão incompreensível.

Parece que nos acompanham na infelicidade os nossos países-primos, por parte do lado da família mediterrânica. Provavelmente, para os países de outras costelas, o azeite não terá a importância que tem para nós, pelo que, para já, ainda não se os ouviu respingar.

Por muito que seja interessante obter explicações consistentes e criteriosas sobre o fenómeno, o que tentei, sinto-me como uma grande parte do eleitorado, provavelmente até o que só vai à mesa de voto quando não tem mais nada de interessante para fazer: o que eu quero é que alguém ponha mão nisto.

Mas com o azeite eu não tenho qualquer papel na resolução do problema, já que o boicote ao consumo se resolve naturalmente: se não há aquilo com que se compram os melões, também não há para comprar azeite.

Se a minha acção contasse, como na Democracia conta através do voto, garanto-vos que haveria de tomar toda a atenção a quem me explicasse, para além da promessa, como se chegou a estes preços e o que proporia, com argumentos sérios, para ir resolvendo o problema e evitar que voltasse.

28.11.23

Há poesia enquanto esperamos…

 Quando a contemporaneidade ocidental nos traz, pela via da Democracia, o direito a reclamar aos Estados igualdade de oportunidades, rapidamente se percebe, olhando à nossa volta, que esse é ainda um direito “em construção”. Para além de que os direitos equivalem a deveres, quanto mais não seja de prestação de contas pelo seu usufruto. Este da “igualdade de oportunidades” é, pois,um desígnio difícil de exercer, pelo que não fará mal exercitá-lo noutros domínios: por exemplo, o das palavras, o de ler e ouvir sobre assuntos de Política, actividade para a grande maioria dos cidadãos bastante aborrecida.

Mas o domínio do discurso e, consequentemente, da comunicação, talvez seja aquele em que exercemos de forma mais acessível, essa igualdade com direitos, e sem deveres ainda em prática instituída. Coisa que acontece há relativamente pouco tempo, diria que desde o advento das redes sociais, onde quem as frequente pode dizer praticamente tudo sobre todos. Fazendo-o , ou ouvindo fazer, ensaia-se pelo uso das palavras as acções, ou pelo menos as intenções de acção. E muitas são reveladoras de carácter e propaladoras de ideologias ou formas de gerir e viver em comunidade de quem as produz, apoia ou contra-argumenta.

As palavras são as mesmas da matéria-prima de poetas que, no seu ofício, e como cavaleiros errantes, experimentam enquanto percorrem o caminho de as alinhar, organizam em pensamento sensações, emoções e tudo o que lhes parece indizível ou ainda por dizer. E é talvez por isso, gosto de pensar assim, que dou particular atenção à escolha dos poemas cujos versos são lidos por quem nos habitua a ouvir mais sobre números ou outros assuntos que não o do exercício da arte verbal ou do seu estudo. E que me faça dar ainda mais atenção a novos sentidos que possam acrescentar -se àqueles textos relidos em mais tempos e noutros contextos.

Vem isto a propósito do poema “Abandono” de David Mourão-Ferreira, conhecido como “Fado Peniche” em referência aos presos políticos do Estado Novo, citado parcialmente por Centeno, nestes momentos em que, suspensos, aguardamos, com um voto na mão, os destinos políticos próximos.

Enquanto estamos à espera da noite de 10 de Março do 50º ano da Democracia, talvez não seja desajuizado ir ouvindo com mais atenção o que nos dizem, não apenas os que terão nas mãos a gestão do País num futuro de quatro anos, mas quem os comente. E sobretudo, aproveitemos para recordar como sobrevivemos, nós neste cantinho, ao que assolou e assola o Mundo; mas também não esquecermos, na memória de curto prazo que parece ter arrastado 2020 e 2021 para um tempo fora da linha de Cronos, o que, apesar de tudo, se conquistou nos últimos oito anos. Por muito que os gritos de quem pouco ou nada contribuiu se façam ouvir em modo repetitivo, sem acrescentarem nada de concreto e de concretamente demonstrável. E, já agora, ir ouvindo os poetas que nos desafiam com a exigência de uma boa leitura que construa os sentidos dos versos mais enigmáticos.

21.11.23

Escolher lados

 Enquanto simpatizante do Partido em cujos princípios me revejo, vou poder participar na eleição que decidirá qual o candidato do PS a PM do próximo Governo. É simpático: envolve-nos e compromete-nos, mas com os limites que respeitam as nossas próprias vontades em limitarmo-nos ao grau zero e basilar de participação numa associação de pessoas que se preparam para gerir um País. Os efeitos mais marcantes da militância, normalmente, implicam outro estilo de participação em que até acontece parecerem-se os militantes mais com antipatizantes; pelo menos é o que por vezes transparece para quem está de fora, mas atenta, a ouvir rádio ou ver televisão. Faz tudo parte de um padrão de comportamentos dos seres sociais que somos, mas, no caso, de que não tenho por livre vontade de fazer parte.

Não é fácil escolher lados, quando se partilha um chão comum com as duas pessoas adversárias que nele se movem e dele cuidam. Há que ler os respectivos programas com muita atenção e a partir deles, mais do que dizem os que em funções de militante, sejam claques ou senadores, avançam a argumentar vantagens e problemas de um ou outro, optar; é a partir dos programas e da actuação dos candidatos que me empenharei a accionar os princípios muito meus que pesarão na escolha. Felizmente, posso sentir-me à vontade com qualquer das decisões que o Partido tomar, o que também me descansa por ser o Partido que é o meu que, por um ou outro, não deixará cair as conquistas destes últimos oito anos.

São princípios que equacionam as exigências das experiências passadas, princípios que comparam reacções perante os homólogos dos concorrentes às legislativas, e princípios que percepcionem as capacidades que cada um terá quer em não deixar perder-se a memória de passados irrepetíveis, quer em atrair as novas gerações, as que ainda irão a tempo de despolarizar, para a participação no exercício de direitos e deveres conquistados com a Democracia.

Apesar destas ponderações, que dão o seu trabalho aos neurónios e agitam algumas sinapses, nada se compara com o aperto no coração e a revolta nas entranhas que cada vez mais me torna insuportável ouvir ou vislumbrar qualquer representante do governo israelita. Não há dúvidas, nesta altura, sobre que lado escolher. É que neles só se veem os algozes dos milhares de palestinianos mortos e encarcerados, com números que não páram de aumentar. Eles que arrastarão consigo a terra prometida do povo judeu que não merecia esta mancha na sua longa e triste história.

14.11.23

Marcelismo vs Democracia

Parece-me que Marcelo Rebelo de Sousa ficará para a história como o PR que, em Democracia, pior fez à Democracia.

Curiosamente, foi em parte a posição de Marcello Caetano, padrinho deste Marcelo 2.0, a propósito da guerra, a colonial, que, mesmo com as promessas primaveris, deu origem a tempos tão ou mais obscuros que os do salazarismo. A conversa que o Marcelo de agora fez sobre o conflito israelo-palestiniano, com subsequente presença numa manifestação; tal como o caso da cunha para as gémeas, a ser revelada quando, precisamente nesta guerra comentada com aquela ligeireza, são as crianças que em maior número são suas vítimas; estas duas situações guiaram-no num caminho de cegueira para o qual arrastou a Justiça. E os estragos também terão a sua assinatura. O que aconteceu na semana passada foi mais um espectáculo para os meios de comunicação às massas, como tudo em que este PR está envolvido; um jogo “Marcelismo vs Democracia” da primeira mão de um importante campeonato: o do Centenário do Regime.

Explico a comparação: Marcelo agiu como o governante que mexe os seus cordelinhos sem pudor de, ao fazer bem a uns (as gémeas serão provavelmente um caso entre muitos), prejudicar o todo. Se sabemos que as “cunhas” são um pão nosso de cada dia mordiscado em todas as esferas, todas, também acabaremos por concluir, mais cedo ou mais tarde, que as influências, os conselhos e as negociações têm de ter base sólida de argumentação que aguente e sirva para melhorar práticas e resolver problemas sem criar outros, e até mais graves. Que se aconselhe alguém para um cargo para o qual seja efectivamente útil e competente; ou que se sugira um procedimento para outro alguém que melhore os procedimentos para todos os que vêm a seguir, melhorando um sistema que esteja montado e apresente falhas de eficiência, é exercer uma magistratura de influência; o resto são simulacros próprios da incompetência em lugares de poder.

E também não deixa de ser tristemente curioso que a crise política mais grave do regime tenha sido espoletada por palavras. Palavras proferidas, por escrito, por autor-sombra - o gabinete de comunicação da Procuradora - com o pior estilo de “innuendo” de mau jornalismo, revelando a mediocridade de quem deveria ter o sentido de Estado equivalente ao peso institucional do lugar que ocupa. Pôs-se a responsabilidade nas mãos de quem, com comportamentos de “influencers”, põe em causa um trabalho em curso de um projecto para o País que era bastante defensável, embora sempre democraticamente criticável.

Continuaremos, na segunda parte do Centenário, a percorrer o caminho que repare as brechas no Regime e o reforce? Ou voltaremos atrás, a achar muita piada, muita gracinha, a um Portugal dos Pequenitos dos tempos do padrinho de Marcelo? A estas perguntas, para além de tentarmos defender o que pensamos ou queremos, pouco mais poderemos responder do que lançando búzios.

 

7.11.23

O filme todo

Às vezes tento imaginar o que pensa quem tem mais que fazer do que assistir, vendo ou só ouvindo, às dezenas, senão centenas, de opiniões debitadas na bolha política, comentando as catadupas de casos quotidianos. Casos que se misturam sem hierarquia que, se bem nos levam a mais assuntos, tendem a dar a impressão de que da importância nuclear à espuma dos dias a via é livre e rápida. E sim, a concorrência das redes sociais sentida por uma comunicação social ameaçada, e revelando-se frágil ao não conseguir ser mais competente na investigação da informação que divulga, é a prova de que, em larga escala, a “má moeda” não faz circular a “boa moeda”: abafa-a.

Passamos o tempo a ver e ouvir banalizarem-se notícias, em “loop”, comentadas por opinadores com uma agenda que, não poucas vezes, é panfletária. Ver estes “filmes” até ao fim e quando já se transformaram em sagas (como as das reformas na saúde, no ensino ou na habitação, todas três dependentes de sistemas em que todos, repito todos, os envolvidos estão lá para servir cidadãos primeiro), ver até ao fim “estes filmes” também permite, a quem está na bolha e atenta, deparar-se com pessoas que fazem do discurso acções, ou propostas para essas acções, dizerem “tudo e o seu contrário”, ao longo dos “episódios”. Triste é quando isto se passa, também, com ou quem nos governa, ou nos representa na AR, órgão que legisla a nossa vida. Nem falo de Marcelo que está imparável naquilo que sempre fez muito bem: ser inconveniente para fingir, com prepotência paternalista, que não é a “gravitas” necessária ao lugar da responsabilidade que ocupa que afasta o Povo do Poder.

Se nunca conseguiremos saber como e quando estas sagas vão acabar, até porque o padrão diz-nos que são cíclicas e reclamam novos protagonismos, vale a pena ver o filme todo, mas desde o início mais disponível, para conversar com calma sobre assuntos complicados. E fazerem-se conversas que esclareçam públicos deixando-os formar uma opinião.

Naturalmente que, nesta torrente, ninguém, ou quase, o fará. As pessoas acabam por se limitar a ver trailers e cartazes, ou seja, soundbites e decibéis, piadolas e “trolices”. O resultado é termos alcateias que lutam entre si e que arrastam consigo rebanhos que as seguem, mais ou menos satisfeitos.

E para terminar com a metáfora de “ver o filme”: seja para assistir a um clássico, a uma pepineira ou a uma obra-prima, os espectadores que saem para ir ao cinema serão muito menos que os que ficam em casa, e assim se perdem cidadãos interessados para a causa pública. E se criam claques em vez de gente informada que pensa, conversa e vota.


31.10.23

Ouvir até ao fim

As reacções às declarações de António Guterres que as acusam de serem inapropriadas e até perigosas, são bem o espelho do pior que a leveza contemporânea faz com a comunicação, seja esta social ou individual. Ninguém parece ler ou ouvir nada até ao fim, muitos descontextualizam o que lêem ou ouvem quando retransmitem conteúdos acabando por distorcê-los para que caibam na sua opinião. Ou forçando, inclusivamente, a ideia de que perceber esses conteúdos de uma determinada maneira é estar a assumir uma trincheira.

Aprender a ouvir tudo até ao fim é um bom treino para começar a ler mais do que só saber juntar sílabas e tirar alguma informação a partir desses enunciados. Os textos têm contextos e pretextos e saber ouvi-los, mesmo lidos em silêncio, é fundamental quando se procuram os seus sentidos. Sobretudo quando se pretende criticá-los, ou aprender um pouco mais sobre o que nos dizem.

Saber contar histórias, as que soltam textos de livros ou os guardam na memória, é por isso ofício a considerar muito. Quem o faz sabe escolher o texto da história certa para o lugar, o tempo e os ouvintes que estão ao pé de si. Nem sempre consola, muitas vezes inquieta e desinquieta, deixa gente que, presa à voz que ouviu até ao fim, a pensar. Pensar a partir do seu lugar, mas também do lugar dos outros, assim se tenha vagar para escutar entre as palavras que se ouvem até ao fim. Para que não haja tresleituras, para que não se desrespeite quem fala para dizer e não para odiar.

Amanhã, dia da Universidade de Évora, há uma contadora de histórias que vai receber um Prémio na cerimónia anual que marca o início solene do ano lectivo. A Bru Junça sabe contar histórias, ó se sabe!, porque aprendeu a ouvir e a ver os outros e os lugares. A história da vida da Bru vai poder ser contada durante muito tempo pela Universidade que lhe reconheceu o talento e o valor. A história da Bru vai ter um início mais completo do que as das histórias que conta e que nos envolvem e ensinam a escutar até ao fim. A história da Bru vai começar assim: “Era uma vez, era uma voz…”.

Parabéns, Bru. E obrigada por me ter dado a oportunidade de fazer a proposta que, ao dar-lhe justamente o Prémio, deixa na nossa Universidade a sua marca: a que nos ensina a ouvir até ao fim, com vagar, a pensar com critério, sem que nos deixe esquecer que aqui temos de aprender também com o coração. Como faz quem tem à sua frente 193 pessoas-histórias a quem tem de dar voz para que não se desmorone tudo, como numa turma, ou uma plateia, irrequieta e belicosa.


24.10.23

Sem vagar para mudar

 Assisti à última Assembleia Municipal de Évora, que foi extraordinária, convocada para se discutir sobre uma alteração ao PDM. Muito brevemente, estas siglas referem-se a um plano estratégico que dita onde se pode ou não construir num concelho. Estava bom de ver, para quem está atenta, tratar-se de assunto que facilmente cairia no tema, tão discutido no momento que atravessamos, da habitação. Para não falar de como este instrumento técnico condiciona opções políticas, no sentido literal de projectar e ordenar a cidade. Só revela que quem chegou àquela sessão sem perceber que assim seria ou sofre de falsa ingenuidade, ou da arrogância do absolutismo sonhado (até moral) que, mesmo sem maioria absoluta, pauta a governação.

O que saiu das discussões que ali aconteceram foi muito claro: Évora só muda quando alguém lá de cima manda mudar, o que é uma chatice porque dá trabalho; e não há nenhuma ambição, nem visão de futuro, por parte destes que estão no poder em Évora.Talvez por isso não haja grande interesse em mexer muito no assunto da habitação quando a oposição nacional é poder local.

Confrontados com esta evidência do problema da habitação, foi com muita alegria de quem dá lições, e “enfiando-nos Lisboa pelos olhos dentro”, que a força política que apoia o governo local se entusiasmou. Fugindo com o dito à seringa, lá o chutou para cima, chegando ao argumento de que os problemas da habitação até já chegaram ao Québec. Curiosamente, ao chutar tão alto e tão longe deixa-me à espera de na outra Assembleia, a da República, ouvir da bancada desse mesmo Partido que não vale a pena aborrecerem mais o Governo português ou a Europa. Pois se até já chegou ao Québec…

O que, no final, foi simultaneamente espantoso e revelador, uma espécie de cereja cristalizada em cima de um bolo de arroz, foi ouvir alguém comunista assumir que, afinal, há inevitabilidades. Basta irem lá espreitar ao canal do YouTube da Assembleia Municipal de Évora para confirmarem. E deixem-me citar o Jerónimo de Sousa do princípio da Geringonça que, ao concluir a sua intervenção na AR sobre o programa político de governo, afirmava e cito: “Houve uma derrota que ainda aqui não foi falada, a da ideologia das inevitabilidades, que tudo justificava e tudo impunha.”

Nunca pensei…


17.10.23

A política e a religião entram num bar…

Uma possibilidade para aligeirar um tema ou assunto fracturante, e que não seja sequer facilmente risível, pode ser continuar a levar figuras que conflituam entre si a “entrarem num bar”. Não ficamos à espera de piadas, mas fazemos da gravidade uma conversa de café ou, como preferimos aqui em Évora, de “debaixo dos arcos”. Reconhece-se a importância do assunto, trocam-se opiniões, acendem-se discussões se as opiniões forem inabaláveis e opostas entre os envolvidos que tomem partidos diferentes.
Quando as opiniões são sobre conflitos duradouros, como o de que agora todos ouvimos falar e vemos acontecer, e reclamam algum pingo de humanidade a quem se sente ao ponto de sobre eles falar, à discussão parece juntar-se, com mais força e menos argumentos, a busca da culpa. Na conversa, como na realidade, o resultado parece ser nenhum, o que parece justificar a duração dos conflitos e a aparente inocuidade de se tornarem em anedóticas conversas de café.

É na busca desta culpa que, por atavismos, traumas ou mesmo defeitos de carácter, se tende a generalizar, a descontextualizar, a censurar factos para caberem nos retratos que queremos mostrar. Ignoram-se história e circunstâncias e perpetua-se essa ignorância para fazer sobreviver as suas tribos. Voltemos, então, ao tema em concreto.

A não-partilha do espaço da Terra Santa, o que confere identidade para quem precisa, para além de um chão de origem, um lugar para sobreviver, é sinónimo do que é feito em nome de Deus e não coincide com o que é feito em nome dos Povos. Religião e Política são conceitos com muito mais afinidades do que aquela cerimónia, as boas-maneiras, com que são tratados para não indispor pessoas em salões de jogo social. Se não falamos delas nesses lugares de lazer é porque estamos conscientes das regras ali seguidas. Fazê-lo é arriscar a desagradabilidade e não saber retribuir a hospitalidade de quem nos recebe para o ócio. Talvez por isso, quem não tem a possibilidade ou o hábito de frequentar espaços de debate se fique por conclusões genéricas, o que não tem mal nenhum, até ao dia em que o mal, ou o resultado dele, nos bater à porta. Se nunca pensámos nas origens do incómodo, nos vários patamares em que se exacerba, numa recorrência pouco dependente da passagem do tempo regular rumo a progressos nunca garantidos; se nunca avaliarmos tudo isto a discussão é estéril e, de facto, nem vale a pena o incómodo incomodar-nos. Mas quando não é assim, infelizmente a solução também não acontece e replica-se o jogo de salão. Na certeza, porém, de que ficará uma espécie de réstia de esperança: como se aquela discussão contribuísse para a opinião pública mundial - uma utopia mesmo na globalização - e possa vir a contribuir para que à disponibilidade de discutir o assunto, quando no bar em que entraram Política e Religião aparecerem as vítimas dos seus conflitos, os outros “clientes” revelem o tal pingo de humanidade que não impeça o socorro sem julgamentos apressados.

E é assim que, sentada confortavelmente a assistir no ecrã monstruoso onde desta vez não passa um jogo de uma qualquer final de campeonato, no mesmo bar onde a Política e a Religião entraram, declaro os dois princípios que pautarão qualquer discussão em que me envolva: distinguir quem está no poder sem ser em nome da religião, o que não é forçosamente mau, de quem usa a religião para contaminar o poder e enganar quem crê sem questionar, o que é sempre mau; e, também assim, e aqui no caso concreto, me declaro nem anti-semita, nem islamofóbica.

10.10.23

Ditos e datas

Ignorar datas, como a desculpa esfarrapada de quem não gosta do Natal e diz que este é todos os dias ou quando um homem quiser, é desvalorizar essas datas. Mas falar com redobrada excitação sobre datas que nunca ou raramente se celebram, pode também ser uma boa manobra para empolar um falso espírito festivo. É fazer-se parecer mais empenhado do que realmente se é.

Moedas mostrou, de novo, a sua pequenez e desajeitada demagogia na desajustada forma de falar para uma sala que parece ter dificuldade em ler; seja a sala uma casa inundada com gente dentro a passar cuidados, ou os espectadores de um discurso institucional de comemoração da Implantação da República. Vi jeitos de o ouvir anunciar também que, doravante, para consolar os restos de monárquicos que por aí circulam, a Câmara Municipal de Lisboa passaria a comemorar oficialmente com arromba - baile no Picadeiro e ceia também para esses lados de Belém - o 1º de Dezembro. Mostrando ao mesmo tempo um novo PSD longe dos idos de 2011-2015. Ou longe do actual líder do seu Partido que, já agora, nem sequer esteve no adro da celebração de quinta-feira passada.

Armado em enfant terrível, foi com tom de ameaça (talvez desejasse equiparar-se a um pegador de toiros na posição de caras) que Moedas anunciou com pompa a “enoooorme” inclusão do 25 de Novembro nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Alguém ainda achará, no povo eleitor de Lisboa, até no que não ficou a dormir no domingo das últimas eleições autárquicas e foi lá votar nele, que este é um tema que deva preocupar e ocupar o Presidente da Câmara da sua cidade?

Parece-me que já se perdeu alguma esperança que a História ia mostrando, em que quando gente impreparada chega a certos cargos, acabe por ganhar alguma noção e cresça. Já são vários os tristes casos em que tal não se dá. E em várias casas. E é pena.

3.10.23

A emergência climática e o chão comum

Não podemos apontar um dedo acusador que seja a nenhum jovem que se sinta envolvido e empenhado numa causa universal e de impacto público, como a que nos leva a acorrer à emergência climática. Mas devemos recusar qualquer acto de violência civil, ou seja, por e contra civis. Quem é pela paz e pelo civismo pode, e diria que deve, expressar e manifestar a sua discordância ou disseminar a sua causa, respeitando a integridade dos cidadãos e abstendo-se de incitar ao ódio.

Foi longo o caminho para aqui chegarmos, a este poder e dever, inclusivamente assinalando-se como marco histórico a publicação em 1948, está a fazer 75 anos portanto, da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Usando a expressão “chão comum” - que se entende como a necessidade de termos uma base de entendimento no território que partilhamos e que diz respeito a todos - os actos de reivindicação não o devem pôr em causa.

Não é, pois, de desvalorizar quando acontecem protestos que, mesmo em versão TikTok, assumem esses contornos de violência. Não os desvalorizar é criticá-los sem alaridos. Dar-lhes palco através dos meios que se encarregam de comunicar também essas reivindicações com as massas, cada vez mais diversas em várias vertentes, pouco mais se acrescenta de inteligível ao acto violento.

E depois temos os “Famous Six” de Leiria que foram ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos processar 32 países como criminosos por negligência e incumprimento de metas para reverter os desastres ambientais. E fizeram-no porque a lentidão nos processos de descarbonização dos governos desses países foram considerados, digamos assim, violência contra civis, ou seja, crime. Uma forma de luta que angariou apoios e seguiu a via correcta.

Não percamos de vista estes jovens, não os esqueçamos e dê-se-lhes todos os palcos que merecem. Estes são os jovens que nos ensinam com o seu protesto a respeitar e partilhar o nosso chão comum.

26.9.23

Levar a sério

“Levar a sério” podia ser expressão para tema vertido em vários assuntos e a vários níveis, do mais íntimo ao mais global. Levar a sério é, afinal, o que a confiança nos deixa fazer. Levamos a sério quem cumpre com o que se compromete, ou quem não “faz de conta” só para se desenvencilhar de chatices ou da sua própria incompetência.

Na última semana assistimos a dois momentos na AR que encaixam nisto de se desvalorizar o que se devia levar a sério: uma moção de censura ao Governo que não foi uma moção de censura ao Governo; e uma proposta de baixa de impostos feita pela oposição que é inconstitucional. Se a primeira foi armada como um carrossel de feira, a outra foi disposta como as cartas para um jogo de “crapaud”. Ou seja, a histriónica moção só serviu para fazer de conta que era perigosa e requeria poderes especiais a quem tivesse a ousadia de o fazer. E a inconstitucionalidade da proposta fiscal é tão difícil de explicar como os complicados meandros da alta finança, o que leva o cidadão a entender bem só duas palavras: baixar impostos. Nada disto foi, pois, para levar a sério.

Como cada vez se lê mais, mas se lê pior - porque a pressa é o ritmo que marca as vidas, tal como a maior quantidade de suportes multifuncionais nos retira concentração - não está a comunicação de informação a ajudar muito a que, mesmo podendo haver interesse em aprofundar os assuntos, estes se levem a sério. A variedade, a pluralidade e a quantidade de vozes ouvidas não deveria dispensar uma hierarquização que ajudasse a levar a sério, de facto, assuntos sérios. Essa é uma opção de gestão da informação, uma linha política que inspire e devolva confiança, mantendo-lhe a liberdade de acesso e melhorando o seu uso na autoformação de cidadãos.

Porque, nestes dois casos em concreto, o que aconteceu foi que a moção de censura, com o óbvio chumbo, se transformou em moção de confiança ao Governo e ataque a parte da oposição; e a proposta de acto de governação vinda dessa oposição atacada, acabou por ser um exercício de simulação de naufrágio à beira-mar, daqueles simulacros que marcam calendário e que por vezes se banalizam em coreografias esvaziadas e não evitam o naufrágio em si.

Fora destes casos, já agora, a cereja em cima do bolo do que se diz e faz para que os humanos não levem as instituições a sério, foi a “kalimerice” do Secretário Geral das Nações Unidas, ao dizer que não tem poder nenhum. Enfim…

Será que chegará o dia em que até quem está um bocado zangado com o Governo, e zangado com tudo em geral, há-de começar a perceber que acumula razões para não levar a sério quem o queira vir a substituir? É que já vimos o quão a sério se levou a palavra prometida lá na Pérola do Atlântico…

19.9.23

Todos, todos, todos!

Apesar de nos parecer ter sido há muito tempo e de até já ter havido coisas da bola, entre outras, a darem que falar, não adianta arranjar desculpas e fazer de conta que durante esta pausa estival não foi a visita de Estado do Papa a Portugal o evento nacional mais importante. A meu ver ultrapassou o êxito das Jornadas e as críticas que suscitaram, até no debitar de comentários e opiniões sobre tudo em todo o lado ao mesmo tempo. E apesar das desastrosas intervenções de muitos jornalistas e comentadores, com excepções evidentes, dando mais argumento à necessidade de se reverem as práticas de formação, e talvez até os princípios de referência, da imprescindível comunicação social.

Do tanto que se ouviu, e entretanto se foi talvez esquecendo, houve uma certeza relativamente óbvia que diz respeito, espante-se, a questões de identidade individual com impacto social relacionadas com a intimidade e a sexualidade. Nos tempos que correm, estas são variáveis importantíssimas na redefinição do, chamemos-lhe assim, índice médio de felicidade. Os tempos mudam, em termos gerais a violência contra os seres humanos tem vindo a decrescer, mas não poderemos descansar se quisermos passar pela Vida com algum contributo nesse sentido. E a conclusão que pudemos retirar sobre esta questão concreta que decorre das outras pregadas há séculos, e se o colectivo católico estiver realmente empenhado em avaliar e contribuir, é a de que entre os crentes, mesmo praticantes fiéis e assíduos dos rituais, é muito necessário continuarem a investir na sua formação de acordo com o que é expresso pela actual figura mais importante da instituição. Espero sinceramente que, lá nas cimeiras, os sucessores não descurem o património que Jorge Bergoglio deixará. Todos, todos, todos.

Achei logo graça ao lema escolhido, a referência bíblica, - “Maria levantou-se e partiu apressadamente” - por ser o oposto do lema eborense do ano 2027 - o Vagar - que por aqui temos ouvido mais. Mas adiante, que lema não empata lema, e importam-me mais comentar outras questões de conteúdo. Desde logo a azáfama de Marcelo, a roçar já o preocupante, não só com o que diz, mas com o que faz: então não é que no dia da Via Sacra no Parque Eduardo VII, o senhor chegou com três horas de antecedência para o banho de multidão? Julgará que nós não o estamos a ver? A ele e à sua desmesura toda? E desde aí os episódios de falta de noção não têm abrandado. Regressando ao Papa: muitas vezes ouvi que o mais importante nalguns momentos, a mensagem a sublinhar foi a própria fragilidade do Papa. Que as adaptações para essa fragilidade possam contaminar quem desenha os acessos públicos dos lugares comuns a todos, todos, todos.

Já agora, a outra mensagem do Papa aos jovens foi que não tivessem medo. Eu bem sei que os crentes, por princípio, não temem a morte, e há medos que causam mais cobardes do que bondosos; mas parece-me que há cautelas que o medo provoca que também não fazem mal a ninguém e podem ser tomadas por todos, todos, todos.

O ritual que nasceu do improviso de, em frente à Nunciatura, as famílias pedirem que o Papa tocasse nos seus bebés foi, talvez, o que mais me enterneceu, por razões várias. Primeiro, o à vontade de quem confiou os seus bebés a um segurança que com a desenvoltura de um enfermeiro-pediatra fazia girar a criança. Cada uma daquelas crianças representou para mim, e certamente para este Papa, este Padre que nunca se furtou ao assunto, o oposto do que aconteceu às crianças confiadas a membros da Igreja que foram por eles criminosamente abusadas. Mas também porque nessa mesma semana soubemos a sentença para os que torturaram e mataram a Jéssica. Os requintes de malvadez precisam da denúncia de todos, todos, todos.

Quanto à bagunça expectável em que Lisboa viveu, e que eu escolhi provar brevemente, pareceu-me muito bem. Como também me pareceu bem ao passar pelas filas para o concerto do Harry Styles em Algés, sem insultar ou desdenhar quem escolheu a bagunça. Ou os festejos no Marquês, outro exemplo. Fico sempre mais contente por viver num País que permite estas “loucuras” de felicidade.

Sobre dinheiro, esse deus, amo e senhor que se não criou o Universo faz girar o astro e agarra os humanos à Terra, para além dos números de retorno que foram o que foram, deverá ter uma contabilidade de difícil equação: as horas de felicidade de muitos, de publicidade a Lisboa e de como se poderá confirmar que Portugal é o país que, não sendo uma ilha como a Islândia e a Nova Zelândia que são os dois primeiros, está em sexto lugar no ranking dos países mais seguros. E são 163, os países. O que não vale isto para todos, todos, todos?

Dito isto, prossigamos para mais uma temporada de crónicas na DianaFm, a quem volto a agradecer a confiança. “Ultreia et Suseia!”, como se diziam antigamente, entre eles e elas, os peregrinos.

 

27.6.23

No fim do mês de santos e pecadores (é sobre LGBT+)

Esta crónica foi escrita não apenas, como sempre, para quem calhe a ouvi-la ou lê-la, mas desta vez imaginando ouvintes ou leitores para quem a causa LGBT+ cause incómodo e estranheza. Quem não “lhes quer nada de mal” e que, desde que não venham tentar que “se ache tudo normal”, que “façam lá o que quiserem, mas não me chateiem”. São fiéis seguidores da postura “Don’t Ask, Don’t Tell”, isto é, “Não Perguntes, Não Contes”, que vigorou até final do século passado sobre a manutenção de soldados homossexuais nas Forças Armadas norte-americanas. Postura que evitava chatices, no fundo, e mantinha as tropas vitoriosamente numerosas e fortes. Sempre metidos em guerras, precisavam de todos, apesar de...


O Mundo avançou, o bem-estar acrescentou-se de outros valores para além dos materiais, e agora até parece, a mim parece-me, razoável que quando acreditamos nas intenções benévolas de algumas causas que pensam a felicidade de mais alguns de nós, nem nos importemos, e até cheguemos a agradecer, que haja quem se empenhe por nós, a tempo inteiro, nelas. Imagino, inclusivamente, que possa acontecer, por exemplo, o que acontece com a minha causa de fazer crescer leitores literários. E onde, para além dos momentos (que são quase todos) em que “prego para convertidos”, tento convencer que ser leitor literário é poder ler melhor o mundo. Mas digo também a quem queira ouvir que, para alguns dos já bons leitores literários, e alguns são famosos por outras razões, essa leitura do mundo eventualmente fruto de muitas leituras de bons textos levou a péssimas acções. Outro exemplo, mais próximo do fracturante, é o do bem-estar animal: por mim, agradeço muito a quem para ele contribua, empenhadamente, e conheço pessoas que o fazem sem nos tentar obrigar a todos a repensar a nossa cadeia alimentar, também ela, de resto, cheia de interditos atávicos; ou então a apropriarmo-nos das vidas dos bichinhos com modelos de condições de vida próprias dos seres humanos. (Ou até melhores…)


Entretanto, pensei em destinatários desta crónica dedicados à causa LGBT+ que estão conscientes da dureza que é a revolução das mentalidades instaladas há muitos séculos. Quando as “estranhas formas de vida” eram, e são, varridas para debaixo do tapete. Não pensei, enquanto escrevia, que seria ouvida por quem transforma o desconforto em agressividade, por quem transforma os seus próprios limites em arames farpados para ferir os outros, por quem transforma a sua insegurança em ghettos de acesso impossível e onde quem calhe a entrar inadvertidamente é abatido. É muito disto que é feito quem prega a “ideologia de género” como sendo um “monstro”, colando-a ao movimento, que é causa, LGBT+. Será difícil explicar a quem pensa assim, porque é que à comunidade LGBT+ devemos muito no caminho da felicidade.


Há tanta “ideologia de género” na causa LGBT+, como há “ideologia religiosa” promovida por crentes, nas diferentes orientações da cristã à islâmica, passando pela judaica. Há adultos que educam as suas crianças para vidas em comunidades com que se identificam, seja em workshops e festas em que convivem com pessoas que não são criminosas por assumirem, sem esconder, que se sentem mais identificadas com sinais exteriores de um género do que de outro, ou de todos os géneros (será que toda a gente sabe o que foi na sociedade ocidental as mulheres usarem calças?). E, com a mesma convicção, há adultos que levam as suas crianças a escolas dominicais, madraças, procissões, peregrinações, ou Jornadas Mundiais de juventude. E estas até defendem, fundamentalmente, o amor e a solidariedade, sobretudo com os mais fracos e oprimidos na e pela sociedade.


Não podemos ignorar que há quem tenha adaptado a forma de estar e agir “woke” - que inclui a causa LGBT+ (até porque, nesta comunidade, uma pessoa negra e/ou pobre continua a ser ainda mais discriminada do que outra branca e/ou rica) - e o tenha transformado, ao “woke”, num alvo fácil por confundir o fim da invisibilidade de muitas pessoas que têm os mesmos direitos à dignidade das outras, com tendência a comportarem-se daquela forma a que se aplica a expressão “ser mais papista que o Papa”. Entra-se no disparate, ou seja, naquilo que é contrário à razão, à sensatez.


Com o Junho a chegar ao fim, mês de Santos Populares e dos pobres pecadores que somos, nós as criaturas, perante a perfeição divina, espero que as pessoas para quem imaginei escrever esta crónica ajudem a acabar com a escalada do discurso de ódio contra a causa LGBT+ a que temos assistido. Então até Julho, mês da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Ou seja, até para a semana.

 

20.6.23

P(N)S

Começo por recordar, quem ouve ou lê as crónicas da DianaFm, que fomos para isto convidados por representarmos áreas abrangidas pelos Partidos ou Movimentos políticos em Évora. Também convém esclarecer que, havendo militantes e simpatizantes nestas agremiações, eu sou militantemente simpatizante do PS, identificando-me com os seus princípios fundadores e com a sua orientação na acção política quando eleitos seus têm responsabilidades governativas, mantendo-me atenta às suas tensões internas e até tendo tido a possibilidade de, por uma vez que espero não ter sido única, votar para aconselhar quem seria o secretário-geral do Partido.

Por razões várias, que não quero detalhar, é ao PS nacional que, para já, me interessa dar mais atenção. Ainda assim, consciente de que sendo mais expressivo o factor “pessoa” que governa, não é apenas no poder local que esse factor conta. E é por isso que hoje me apeteceu falar do Pedro Nuno Santos. E não, não me escondo debaixo daquela expressão, cheia de altiva humildade, que o faço “enquanto cidadã”. Essa é uma condição que, assim, se transforma num argumento desperdiçado de quem aparenta não apenas ter falta deles, argumentos, como parece também ter medo, quer de ter uma opinião, quer de poder vir a assumir erros de percepção e de experimentar a possibilidade de correcção de posição.

Entra pelos nossos canais audiovisuais dentro a vontade de Pedro Nuno Santos em suceder a António Costa. Se o desafio de gerir politicamente a Geringonça esteve (bem ou mal, não é este o assunto agora) à altura da sua vontade, a gestão de apenas uma tutela, mas com muitíssimas questões com precisão de croché, tricô ou renda de bilros, deve ter sido para ele um pesadelo. Percebemos agora que ter saído foi o melhor que lhe aconteceu. Sobretudo depois do “faux-pas” de, precipitadamente como é característica da sua geração, ter sido empreendedor, arrojado, mais voluntário do que voluntarioso (não fez birra, fez o que quem tinha de decidir mandou e decidiu, ou não…) no assunto da localização do novo aeroporto. Mas é este o tipo de decisão e de trabalho de estratégia para as políticas públicas que parece apaixonar, e para o qual agora já se percebeu estar talhado, Pedro Nuno. (Ainda terei tempo, e sobretudo tempo mais oportuno, para falar de quem, para mim é óbvio, seria um bom candidato apoiado pelo PS à futura Presidência da República, mas só a minha vontade de me livrar deste de agora é que me fez abrir estes parênteses-desabafo.)

E pela primeira vez desde há um par de anos encontro numa pessoa - que como qualquer pessoa é não só ele próprio como as suas circunstâncias - as razões para valorizar a sua ambição. Não basta ter vontade, não basta ter claque, não basta ter ambição, não basta ter muitos seguidores nas redes sociais. A experiência, a capacidade de auto-avaliação, a disponibilidade para criar um espaço próprio e nele entrelaçar vários rumos e assumir uma posição são factores que, a par das companhias que escolhe e que são o dado lançado que não sorteia sempre o seis, de facto importam. Vai ser preciso, havendo batalha interna, adversários à altura. E haverá, certamente, a avaliar pela última sessão da da Comissão da TAP. Nem que seja a um nível ainda mais interno e, como tal, mais distante da opinião pública a quem muitos, como está visto pelos inquiridores, andam a tentar esgotar a paciência.

Em suma, as intervenções do Pedro Nuno Santos na, ou a propósito da, Comissão de Inquérito à TAP revelaram-me um candidato a Primeiro-Ministro. E, na trama das inquirições, não posso deixar de o citar, pelo que tem sido óbvio nestas encenações que se chamam comissões e pouco parecem estar preocupadas com a TAP. Foi um comentário na mouche: “Eu não vou passar a mentir só porque a mentira parece mais verosímil do que a verdade.” Isto é de quem sabe o quanto governar pode ter de inacreditável. E tem.

13.6.23

Análise do discurso

A já demasiado longa “entretenga”, que é a novela sobre a fúria do adjunto do ministro e a intervenção ao “estilo CSI”, chegou à etapa de análise microscópica do tecido verbal em que os acontecimentos, já à distância, se embrulham. Estará na altura de se chamarem outros especialistas a ajudar às tertúlias: os linguistas (eu não sou, pelo que não preciso de fazer nenhuma declaração de interesse).

Talvez muitos ouvintes e leitores desconheçam que existe nos cursos de línguas e literaturas e, suponho, nos de comunicação, uma disciplina da área científica da Linguística chamada Análise do Discurso (e cujos ensinamentos são basilares para a outra disciplina, essa sim, tradicionalmente desenvolvida na minha área da Literatura, a Análise Textual). É sempre com alguma emoção que recordo as aulas que tive com o Poeta Alberto Pimenta, no final dos anos 80, nessa “cadeira” de Análise do Discurso. Imaginem o que é ter um Poeta e Linguista, tudo junto numa personalidade que tinha tanto de bondoso como de exigente e irascível! E para quem os espertalhões simulacros de conhecimento eram tão ofensivos como era importante, para ele, a imaginação criativa ao serviço da dignidade que a realidade quotidiana dos seres humanos, mesmo dos ignorantes, merece. E Alberto Pimenta dedicava-se a esse “serviço” lançando a palavra com precisão, ou dando espaço aos silêncios com uma provocação desarmante, para a qual era, e é ainda, preciso estofo. Aconselho que procurem os seus textos e escutem as entrevistas que andam por aí, na “nuvem”.

Desses tempos aprendi um princípio sobre a intencionalidade dos discursos que tem sido sempre uma espécie de farol. Naturalmente que o partilho com os alunos que vou tendo. E, de entre os que me ouvem, haverá, talvez, os que o escutam e, espero, lhes sirva também para a vida em sociedade. Não é um dogma, nem um mandamento, nem uma lei. Ser um princípio é fazer dele um argumento que dá espaço a mais argumentação, ao aprofundamento, à correcção com algum detalhar, o que me parece uma dinâmica muito mais humana e permite diálogos entre quem diz e quem ouve. Ou, na ausência de quem escreveu, manter o interesse, em quem lê, pelo que está escrito e instigar a investigação de contextos que ajudem a reconhecer pretextos.

Com tudo o que já foi dito sobre aquele episódio ministerial de investigação criminal, há quem queira fazer sequelas, o que, normalmente, significa degradação da qualidade nas séries. Pode ser que me engane, mas quem quer manter espectadores vai ter algum prejuízo se insistir em pagar a produção de mais episódios. Mesmo que se assista a uma constante tentativa de ter um papel importante num filme em que o guião não o inclui. (Pois, tenho de voltar ao de sempre, já que é forçoso lidar com a omnipresença dos insistentes exercícios de “casting” de Marcelo em frente às câmeras…).

Pois bem, o tal princípio é o que alerta quem, perante um texto - seja uma declaração, uma frase ou um verso -, o queira explicar e não comece o exercício por: “o que o autor quer dizer neste verso (ou declaração, ou frase) é…”. Porque, explico como explicou Alberto Pimenta, o que o autor quis dizer, o autor disse ou escreveu. É a quem lê que cabe decifrar a mensagem. Caso lhe interesse, claro. E recorrendo aos contextos disponíveis que ajudem a colocar como hipóteses os pretextos, a tal intenção. Espero que vos venha a servir, este princípio, quando acompanharem discursos e respectivas análises.

Parece que os discursos numéricos também se predispõem a análises cujos argumentos, contrariando quem diz que os números não enganam (imagina-se que ao contrário das palavras), são susceptíveis de se oporem, destruindo-se assim a precisão ditatorial que lhes dão a fama. Tudo isto é tanta pressão sobre os especialistas que muito me admira haver tantos que o queiram ser por amadorismo…

6.6.23

Desporto e malformação de carácter

Nada tenho contra, e até incentivei sempre enquanto eduquei filhos, a prática de desporto. Também considero que a competição é uma fase muito importante dessa prática. E até alguns dos argumentos para a sua relevância são os que, afinal, revelam as falhas na formação de carácter de muitos que levam algumas modalidades do desporto de competição até a um patamar de importância social, nem que seja como espectadores. Não esquecendo as outras, como o futebol é, parece-me, a modalidade imperial no planeta que nos calhou, também é com ele mais visível que não basta ser-se espectador e adepto para se ser um nobre cidadão exemplar.

Já se começa, na Comunicação Social, a ter laivos de denúncia sobre o comportamento dos familiares da criançada que joga à bola nas equipas de formação em escalão lúdico. Mas o assunto está longe de chegar às cada vez mais desinteressantes “breaking news” que bem podem apregoar-se como o último grito da informação, mas não são senão um pipilar na formação de cidadãos mais conscientes. Até o que fazem aos comentadores é, muitas vezes, transformá-los em lançadores de búzios, pedindo-lhes que, na falta de assunto, se deitem a adivinhar sobre o futuro de casos que já foram espremidíssimos. Mas adiante.

Agora que se entrou em pausa no desporto dito rei, talvez seja uma boa oportunidade para os clubes com equipas de pequeninos, se debruçarem sobre soluções para fazer um real “shaming” aos adultos que, em treinos ou jogos à séria, se comportam como trogloditas, ofendendo os seus próprios filhos. Para já não falar da perpétua tradição de insultar o árbitro. É um espectáculo muito, muito triste, que revela e contamina a malformação de caracteres, como um ciclo geracional que teima em não se quebrar.

Quando, num outro escalão e a outro nível, a malformação de carácter assume contornos de posição ideológica, e se confunde com a liberdade de expressão e o direito à opinião, é o momento de intervenção do poder público. É a altura de ser implacável na aplicação dos procedimentos judiciais à séria. Até para que se evitem situações oportunistas de alegar crime como primeira tentativa de certos cidadãos adultos se desenvencilharem de situações pouco claras em que se envolvem e das quais, só quando não corre de feição, apelam “aqui d’el-rei”.

O escândalo dos comportamentos racistas dos adeptos de equipas de futebol que voltaram a ser notícia quase só de rodapé, para além de mexerem com as entranhas de quem foi educado com os princípios do civismo que permitem o progresso com humanismo, merecem acções que, de facto, levem quem apresenta sinais evidentes de malformação de carácter a fazer a terapia mais eficaz. Pelos vistos, não chegam as belas e comoventes acções preventivas que as instituições públicas e algumas iniciativas privadas tão bem têm empreendido.

Só assim a competição revela que os melhores possam ganhar e os que não ganham persistam no esforço de o conseguir. E que uns e outros continuem a comportar-se com o “espírito desportivo” que, de tão esquecido, parece ter abandonado os princípios de socialização, de respeito pelo adversário, de empenho na superação que eram as suas virtudes. E, ao abandono, se torne um lugar propício a gente que não defende, com desportivismo, a equipa do coração, porque está bom de ver que coração não mora ali. 

30.5.23

É urgente

Quando se fala de Eugénio de Andrade, cujo centenário está a ser assinalado este ano, talvez se reconheçam melhor dois dos seus poemas: o que tem como verso inicial “Já gastámos as palavras, meu amor”, e se chama “Adeus”, e o “Urgentemente”. Este segundo poema, que repete as palavras “É urgente” no efeito estilístico que alguns se lembrarão designar-se, tecnicamente, anáfora, aparece-me sempre que as oiço em manifestações políticas, seguidas de reivindicações várias ou genéricas. Mesmo sabendo que o primeiro verso, “É urgente o amor”, é de uma banalização inquietante e requer ler-se o poema até ao fim, e mais além, para lhe reconhecer o que não é nele banal. O cânone escolar tem esta força, já que são, ou foram, estes os poemas que mais se citaram do Poeta nos manuais.

Toda esta conversa não é sobre o sistema nacional de Educação, veio antes inspirada pelas mudanças anunciadas noutro Sistema e visam retirar das urgências dos hospitais doentes que não são urgentes. Os hospitais que se confirmou tratarem-se, como todos reparámos na pandemia da Covid-19, lugares onde se deve praticar, com condições diferentes bem entendido, aquele princípio afixado em alguns sítios de diversão: “É reservado o direito de admissão.” E, neste caso em concreto, a admissão ao que é urgente.

As medidas requerem não apenas mudanças de recursos que, normalmente, são sinónimo de investimento financeiro, como de práticas e procedimentos. Sobre todas estas nada direi, por falta de tempo e, sobretudo, de informação concreta. Apenas assinalo aqui que à mudança corresponde quase sempre a reacção de resistência, mesmo por parte de quem também quer mudança. Para já assim, sem artigo definido ou indefinido. As reacções das corporações envolvidas nas mudanças parecem-me, muitas vezes, as reacções genéricas do “Que chatice, lá vou ter que mudar a minha vidinha” ou “Que boa oportunidade para me livrar de chatices desta vidinha”. Esta última, provavelmente muito mais rara, sendo o ser humano um animal de hábitos.

Os artigos definidos - “a” mudança ou “uma” mudança - são tão difíceis de analisar, desmontar ou, como agora é moda dizer, desconstruir, como dá trabalho, e requer perspectivas que considerem vários pontos de vista, fazer uma escolha entre várias opções que se nos apresentam. Há que hierarquizar, prever e/ou inferir a partir de várias hipóteses de que apenas saberemos concretização benéfica quando já estiver em andamento ou, até, quando se chegar a alguma meta.

A hierarquização também é o mais difícil de fazer quando nos deparamos com a abundância, ou, vá lá, com a vantagem de termos por onde escolher. Na hierarquização das possibilidades, na mudança, cria-se a oportunidade de criar conflito e perpetuar a reivindicação. Não tendo a função de criar as opções, mas tendo a possibilidade de ciclicamente escolher quem o faça, é importante que os eleitores relembrem aos eleitos de que há quem esteja e continue atento. É por isso que eu gosto de acreditar (sim é uma questão de fé) que as marchas - não as dos populares Santos - são lugares repletos de eleitores. Mesmo quando as marchas que têm acontecido pelo nosso país, e em todas as democracias de resto, sejam inevitavelmente apropriadas pelos Partidos.

É quase norma, destas organizações, estarem atentas a oportunidades e imitar o molusco Paguro, também conhecido por Casa Alugada (aqueles que, quando encontram uma concha maior vazia, vão, direitinho, ocupá-la). De assinalar que na Marcha por mais SNS, no passado dia 20, organizada pelos sindicatos, ficou bem evidente quais são as conchas e quem é o Paguro. E parece que também chegámos àquela fase da Democracia em que as organizações começam a perceber que a sociedade civil é maior que a soma das corporações que se constituem em lobbies e que as Manifs passem a chamar-se Marchas. E é bom que as associações cívicas, as que de facto organizam e convocam Marchas e Paradas, e ambas só podem crescer na terra democrática e fértil, persistam o seu trabalho de encontrar, no calendário cíclico, a pluralidade para continuarem a não deixar cair as suas causas e procurarem interlocutores com quem vão ter a oportunidade de hierarquizar as suas críticas ou reivindicações e escolher o melhor caminho a propor para o colectivo que é soma das partes. Mesmo sabendo que, para umas partes, será uma chatice e, para outras, uma boa oportunidade.

O que me parece ser urgente é mesmo dar tempo ao Tempo a quem sabemos qual a meta para que corre, urgentemente. Como no poema, o último verso conclui em aparente paradoxo que se, e cito-o, “É urgente o amor, é urgente permanecer.”


23.5.23

Cavaleiros de triste figura ou a cruzada dos inquisidores

Chegámos a uma fase histérica da Democracia. Sim, aquele distúrbio que leva a ansiedade a extremos de alterações no funcionamento até fisiológico de pessoas que, assim, perdem controlo sobre si, sem conseguir disfarçar reacções exacerbadas que acompanham emoções. O primeiro exemplo foi logo a interrupção do prometido silêncio e o já habitual regresso das catacumbas dos Presidentes que, acumulando com Professores, tiveram as suas rábulas. Mas concentremo-nos no mundo dos vivos e deixemos quem trepou ao coqueiro em paz: Marcelo resolveu dar lições a João Galamba sobre responsabilidade e visibilidade de quem ocupa cargos públicos. Olha quem! O homem que há décadas tem contribuído para transformar a política num circo mediático! Eu sou do tempo da banhoca no Tejo. Imaginam aquilo com as “breaking news” de hoje?…
Mas adiante, porque é sobretudo a propósito do que se passou na Comissão da TAP que já quase não é sobre a TAP, com direito a transmissão directa nas rádios e televisões nacionais. É no que isto se tornou a que me refiro com este diagnóstico de psiquiatria de bolso, ignorante que sou na matéria e apenas a ela recorrendo para efeitos estilísticos.

Houve, nas redes sociais, reacções de “body shaming”, próprias dos palhaços do circo, que alguns até, e muito bem, assumem ser, mas desta feita na boca de quem prega inclusão e o fim de descriminações várias. Houve agentes provocadores que, habituados a lutar na lama, angariaram espectadores para o espectáculo, como quem vende pulseiras para as festas brancas no “Allgarve”.

Ouvir e ver aquelas sessões só me lembrou os julgamentos dos casos escabrosos nos tribunais norte-americanos, herança do velho pelourinho. Só que, agora, num país de amadores (e com todo o respeito pelos que dignamente se assumem como tal), tudo a dizer que, não sendo juristas, nem intriguistas, não fizeram senão levantar suspeitas de púlpito errado. (Eu sei, eu sei, é nesta parte que os psiquiatras me podem apontar o efeito boomerang da minha crónica ao falar de histeria).

Consigo imaginar alguns flautistas a transformar certos deputados em ratos e a levá-los para um lugar da Democracia muito pouco digno. Há como que uma espécie de feitiço quase inexplicável (todos sabemos como explicar, na verdade, e por tão óbvia a mesquinhez não queremos nem pronunciar), feitiço antigo que já levou a cruzadas de pobres, ou crianças, com piores destinos do que o lugar de partida e o motivo de viagem deixariam prever. E nesses flautistas não há só políticos, não senhor. Aliás, alguns dos deputados nos intervalos das sessões pareciam ter ido deitar um olho a certos painéis de comentadores. Toda uma produção, minuciosa ao nível da vírgula, que torna difícil a competição por parte de vários especialistas em tiro ao alvo, sendo o alvo alguém que devia era estar a ter tempo para governar. (O senhor que trepou ao coqueiro também se queixava disto, lembram-se?).

Mas tudo aquilo também me fez lembrar a loucura histérica de Dom Quixote: na ânsia de mostrar que quer fazer o bem; na ânsia de defender o comportamento certo no momento certo para um episódio que, não tendo sido presenciado se quis ver relatado para inscrição em livro eterno como se assim tivesse sido; na ânsia de salvar uma Dulcineia - que é Frederico, o que para o caso e a bem da contemporaneidade não importa nada - contra os gigantes que estão no poder; em todas estas ânsias se viram os deputados em tristes figuras.

No final de 2015 fiquei expectante, entusiasmada e optimista com a relevância que o Parlamento português deveria passar a ter no espaço público. O optimismo mantém-se, claro, mas o entusiasmo transmutou-se em vergonha alheia (até com o artificioso Presidente a querer fazer passar a ideia de que está a fazer um favorzinho ao Governo, não usando a “bomba atómica”); e as expectativas resolveram-se definitivamente nestas últimas semanas. Espero que numa próxima, o mais distante possível desta, edição da AR, se os deputados que eu elejo se sentarem na oposição reponham o nível da Casa da Democracia.

16.5.23

Opinião, pares e equipas

Nunca o interior de um Governo foi tão escrutinado como este, e tal como se deseja que continuem a ser os próximos, sendo-o para efeitos de avaliação das políticas propostas que lhes forem confiadas. Desconfio que a coligação suave das Esquerdas entre 2015 e 2019, e subsequente separação, terão alguma influência no assunto, agora que estão novamente libertadas e na muito mais confortável posição de oposição. Como as anteriores coligações da Direita efectivavam o compromisso com o assumir de ministérios e secretarias de Estado por todos, no pós-coligação deu-se menos, ou nada, pelo habitual discurso, revelador de formas de estar nas coisas: se correr bem fomos nós, se correr mal foram eles porque nós ou avisámos, ou não tínhamos nada a ver com aquilo. De facto, com as coligações de Direita o que se perpetuou foi a desculpa com as queixas sobre os que vieram antes.

O escrutínio externo ao interior do Governo devia ser tão isento como é, por princípio e em princípio, a chamada “arbitragem cega por pares” no mundo da investigação científica e respectiva divulgação. Sendo um trabalho muito pouco reconhecido, mesmo ignorado em algumas avaliações curriculares, quem avalia um artigo de revista ou um capítulo de livro tem obrigações muito concretas, como por exemplo: validar a pertinência do estudo no conjunto que é a revista ou o livro; avaliar a coerência entre as metodologias do trabalho, os factos apurados depois de analisados para alcançar o objectivo do estudo e do conjunto; pronunciar-se e garantir a qualidade da comunicação dos conteúdos. Estas obrigações poderiam bem aplicar-se ao tal escrutínio por quem, não sendo um par porque não está na mesma corrida, se ocupa em fazê-lo: se as medidas de governação vão ao encontro do programa que foi a eleições; se são usadas e avaliados os contributos de todas as estruturas envolvidas nas opções tomadas por essas medidas governativas; se se consegue explicar as alterações que trarão e os respectivos impactos na vida dos cidadãos e dos eleitores.

Ora, num escrutínio entre pares e havendo um carreiro estreito pela frente, a tendência é haver também alguns atropelos para chegar lá, à ambicionada meta pelos pares, seja um lugar mais alto na carreira, ou o prestígio de ser especialista e ter trazido avanços ao Conhecimento. Ora havendo este clima de competição, mesmo sendo “avaliação cega”, o apurar dos outros sentidos para tentar desvendar o anonimato obrigatório, ou a liminar intenção pouco séria de ver-se livre de qualquer, até só imaginada, concorrência, pode ocorrer. É o que acontece com o escrutínio dos Governos pela oposição que nos engana alegando isenção, e que vigora não nos Políticos, e muito bem, mas, e muito mal, em comentadores jornalistas sem filiação ou simpatia assumida e declarada.

Aqui chegada, nada do que digo a criticar o simulacro de chamar “pares” na isenção necessária em certas corridas, desvaloriza o que deve ser o escrutínio feroz dentro de equipas que se constituem na base da competência e da confiança. E este é um trabalho muito, mas muito mais difícil e necessário, que evitaria brechas por onde entrasse a oportunidade de a equipa ser derrubada. E muitas vezes nem sempre derrubada por equipas, ou franco-atiradores, melhores.

E é por isso que, nos Governos, deve ser dada completa autonomia para se constituirem equipas, e que não se ceda à tentação de inventar mais um formulário idiota chapa 5 como o inventado para Ministros e Secretários de Estado, desta feita a assessorias técnicas ou políticas. Tudo a ceder ao populista pré-escrutínio de idoneidades que, de resto, já são aferidas por vários instrumentos legais consolidados.

Uma séria avaliação intercalar interna é o que eu também espero que a equipa, entre pares, deste Governo esteja a fazer, com tempo, critérios e soluções que não lhe compliquem ainda mais a vida. Como tem complicado a tão hipócrita e hipocritamente elogiada cooperação entre Belém e São Bento, nome de fachada que se dá ao que basta, quando é sério, relacionamento institucional.

 

9.5.23

Microfone vs Corneto: numa televisão perto de si

A tendência em transformar objectos de relevância em quinquilharia atraente faz parte das dinâmicas culturais, acontecendo de forma expressiva no mundo da Arte. Assistimos ao aparecimento de obras que vêm inovar e modificar o panorama encostado ao banal, que logo criam seguidores e influenciam criadores, acabando por dar espaço a sucedâneos piores, ansiosos por igual protagonismo, até ao momento em que lá vem outro abanão.

No caso Galamba, está bom de ver que o jovem adjunto Fred, elogiado por reconhecidas figuras do comentário, pois “levou as suas funções sempre a sério e é apaixonado por conseguir resultados”, cito Ana Drago, imbuiu-se do espírito dos super-heróis e, qual Robin no pesadelo de vir a ser esbofeteado pelo seu Batman, não menos jovem mas seu superior hierárquico, resolveu, finalmente, fazer dos seus já divulgados treinos em partir rapidamente para a “batatada”, um episódio extra que lhe garantisse o seu lugarzinho nos estúdios. Se o Bloco de Esquerda não o acolhe de novo no seu seio, até na Academia de super-heróis de onde saem alguns de muita e variada reputação para os seus quadros, creio que estaremos perante o nascimento de um novo vilão…

Mas mais do que esta empolgante novela jornalística spin-off, que é um fenómeno da ficção audiovisual popular a que estou atenta, do argumento central político que é a gestão da TAP, o que é relevante é, de novo, a contaminação da realidade que deveria estar longe do entretenimento, e perceber quem o faz ou propicia, seja por ignorância ou por oportunismo. Ambos motivos deploráveis e de perigoso efeito. E sobretudo quando só parece que estão a propor-nos que comamos gelados com a testa…

Também me incomoda a displicência que oiço a gente que se diz democrata e tem responsabilidades políticas a sugerir ou concordar com eleições antecipadas, alegando o acumular de intrigas, certamente criticáveis, mas que são só isso mesmo, se comparadas com o rumo da narrativa que é gerir um País. Como se ter ido a eleições, e ter obtido para um período de quatro anos indubitável validação democrática para governar, fosse um pormenor que, agora, dá jeito ignorar. Ao ouvir isto a estes democratas sinto-me insultada. E mais ainda quando, logo a seguir, me pedirem que vote neles. Mas resistirei, sempre!, e lá voltarei ao voto quando este me chamar.

Tenho pena que não seja para mudarmos já de Presidente da República. Não há aí nenhum herói que se lance numa novela a que sugiro desde já o título de “Impeachment”? Estou a ser irónica, claro: quiseram Marcelo, tomem lá Marcelo. Talvez ainda haja tempo para nos divertirmos mais com uma “trilogia do corneto” (é outra referência do cinema que o episódio Santini me recordou). Se bem que, se andarmos muito entretidos com fitas, pode sempre acontecer vir pior… 

25.4.23

Serviço público, imparcialidade, proporcionalidade e lealdade (III)

Termina hoje a tríade de crónicas que teve a carta de princípios éticos da administração como base e os tumultos sociais que, aqui e noutros países da Europa, estão a marcar o primeiro quartel deste ano, como pretexto.

Se quem comunica para todo o Mundo, em massa, já promove comportamentos consentâneos com o que se segue, numa espécie de educação informal, é de notar que um destes princípios detalha, e não é demais lembrar porque ainda há quem não tenha aprendido e faça disso gala, que não se pode “beneficiar ou prejudicar qualquer cidadão em função da sua ascendência, sexo, raça, língua, convicções políticas, ideológicas ou religiosas, situação económica ou condição social”. Pode parecer redundante dizer-se que esta é uma regra para quem é funcionário público, visto tratar-se da condição de base mínima para se ser civilizado. Mas às vezes vê-se e ouve-se cada coisa, que se percebe o porquê de ainda estar na dita “tábua”.

Aliás, há duas das regras que deveriam ser recitadas e comentadas interiormente, pelo menos uma vez por mês, como numa pregação aos seus botões, por quem convive com gente e gosta de evocar o apreço pela empatia e a humildade, virtudes que estão muito na moda. Uma das regras aparenta, num certo momento, roçar a utopia, o que, conselho meu, beneficiaria com o uso, antes e depois de a recitar, de um breve ditado popular. É a regra que diz que “os funcionários devem prestar informações e/ou esclarecimentos de forma clara, simples, cortês e rápida”. E o refrão, está bom de ver, é o que dita que “depressa e bem não há quem”.

Enfim, se as regras parecem apertadas, se a missão pode parecer impossível, se o que se espera de quem depende destes profissionais é que todos para quem trabalham assim os considerem com todo o respeito, parece-me de acrescentar que qualquer sector privado que dependa, para ter lucro, de ter mais e mais clientes, não perdia nada em dar-lhes uma olhadela. Sendo sabido que, normalmente, os limites de tolerância para as falhas no sector privado são bastante mais baixotes, que este medir de esforços não seja desculpa para aumentar a sanha entre os dois sectores.

O último princípio com que encerro estes três capítulos parece-me um bom conselho para quem um dia perceba que tem uma profissão, seja no público ou no privado. É o princípio que diz que os “funcionários agem de forma responsável e competente, dedicada e crítica, empenhando-se na valorização profissional”.

Responsabilidade, competência, dedicação, espírito crítico e empenho na melhoria é o que se pede a todos em funções públicas, na medida exigida para cada função que se alcança. Ou seja pode-se exigir mais a quem tenha mais responsabilidades e que tenha chegado a esse “mais” porque demonstrou competência e dedicação. E que o espírito crítico seja a capacidade de autonomia própria de quem investe a melhorar o trabalho em que o emprega.

Haverá outra melhor tabuada como esta para entoar em ambientes construídos e mantidos em equilíbrio, na articulação hierárquica necessária? E esse equilíbrio não estará, com razões e sem desculpas, no saber multiplicar esta mão cheia de qualidades e dividi-las como quem espalha doses irrecusáveis de respeito conquistado? Um trabalho muito bem empregado, parece-me. Ou tudo isto dito de outra maneira: já que dá trabalho, que fique bem feito, ou o melhor possível.

Agora vou ali descer a Avenida que tem nome de Liberdade. 25 de Abril, sempre.


18.4.23

Serviço público, boa-fé, integridade, lealdade e justiça (II)

Prosseguindo na leitura da carta de dez princípios éticos da administração pública, percebe-se o quanto conta o indivíduo num sistema complexo como este grande colectivo que presta serviço a todos e a que chamamos Estado. Quem o governa, ao Estado, sujeita-se a tomar ou a sofrer as dores do que, como um todo ou uma soma de partes muito díspares e hierarquizadas, o constituem. Em especial os que o põem a trabalhar, funcionários de carreira geral ou nas diferentes carreiras especiais que, mesmo especiais, não são poucas. Por isso se espalham mantras que se ajeitam às dinâmicas: ou se escarnece liminar e facilmente o Governo; ou, em pose quase institucional, se poupa o Governo maldizendo apenas os Governantes.

“Os funcionários, no exercício da sua actividade, devem colaborar com os cidadãos, segundo o princípio da Boa Fé, tendo em vista a realização do interesse da comunidade e fomentar a sua participação na realização da actividade administrativa.” diz o sexto princípio. No fundo, esta é a versão da famosa convocatória de Kennedy para que não perguntássemos apenas o que o Estado pode fazer por nós, mas o que nós podemos fazer pelo Estado. Era mesmo bom que não esquecêssemos este desafio…

Convocam-se, então, os cidadãos especificamente com funções públicas a regerem-se “segundo critérios de honestidade pessoal e de integridade de carácter”. O que lhes confere o estatuto de modelo de comportamento, sendo a exemplaridade condição essencial, como sabemos, quando queremos que os outros se comportem connosco com igual integridade. Tarefa que obriga funcionários públicos a que “no exercício da sua actividade, devem agir de forma leal, solidária e cooperante.” Isto não quer dizer que em cada serviço exista uma tertúlia de amigos, não senhor. Até convém que não se confundam as coisas, o que leva a que, eventualmente acontecendo essa fusão de profissionais com ligações extraprofissionais, por vicissitudes várias, ela tenha de ser bem gerida pelos implicados. E não terem motivos óbvios para ser alvo automático de críticas que a transformam em amiguismo ou family-gate.

As relações interpessoais, internas ou externas aos lugares e momentos em que as pessoas que servem profissionalmente o Estado, tão socialmente naturais, são uma dificuldade acrescida ao indivíduo no cumprimento do princípio da imparcialidade. Quando se aconselha que “no exercício da sua actividade, devem tratar de forma justa e imparcial todos os cidadãos, actuando segundo rigorosos princípios de neutralidade”, e se todos estivermos cientes disto mesmo, talvez não sejamos tão injustos com quem tende a parecer frio ou intransigente quando está “só” a ser competente. Por muito que tenhamos razões de queixas na nossa interacção quotidiana com serviços públicos, imprescindíveis, talvez seja de considerar que, por muito que se queira fazer parecer e haja quem dê razões para tal, ninguém decretou que o serviço público fosse fácil. E será, seguramente, quer menos difícil, quer mais fiável se todos percebermos os princípios éticos que guiam os que o tomam como profissão. E são muitos.

11.4.23

Serviço público, igualdade e proporcionalidade (I)

Nestas próximas três semanas de Abril, a caminho do Dia dos Trabalhadores, falar-vos-ei dos dez princípios de carta ética da administração pública. Não é a primeira vez que a menciono, a esta “tábua” de regras que ajudam as coisas a correr melhor, mas a outra vez já foi há muito tempo e como tem sido grande a conflituosa contestação por direitos no sector público, criando o ambiente social que não nos deixa indiferente, pareceu-me um bom exercício voltar ao assunto. E organizando-o por capítulos, já que também estamos no mês do Livro, em três crónicas assim anunciadas. E hoje é a primeira.

Abre esta Carta a dizer que “Os funcionários [se] encontram (…) ao serviço exclusivo da comunidade e dos cidadãos, prevalecendo sempre o interesse público sobre os interesses particulares ou de grupo.” Com isto percebemos como agem as organizações com consciência do princípio e se concentram em defender direitos de grupos que representam, tal como as há que o ignoram e até excedem a razão da sua existência: por exemplo, ordens profissionais que se transformam em sindicatos, fazendo-lhes concorrência; ou outras agremiações que dão colo a organizações cuja sindicância parece mais interessada em cilindrar os serviços públicos tutelados por certos governos do que outra coisa qualquer. É que, no que diz respeito ao que se espera ser o atencioso serviço público, não se trata aqui de fazer um jeitinho ao primo ou vizinho, ao colega ou sócio do mesmo clube, prática tão comum quanto popular. E sobre isto também se ensina na “tábua” a quem trabalha na administração pública, do Presidente da República a quem desce para trabalhar em catacumbas onde estão serviços que servem todos, funcionários que “não podem beneficiar ou prejudicar qualquer cidadão em função da sua ascendência, sexo, raça, língua, convicções políticas, ideológicas ou religiosas, situação económica ou condição social.”

Sabermos que privilegiar uns pode prejudicar outros não é o mesmo que ignorar especificidades de certos casos que, uma vez resolvidos, até poderão passar a facilitar futuras decisões ou implementar práticas que beneficiem os serviços e, por isso, sirvam todos. De resto, se a ideia é facilitar a vida às pessoas, sem que a rebaldaria seja a consequência em que o jeitinho descamba, quem serve o interesse público deve também saber que “Os funcionários, no exercício da sua actividade, só podem exigir aos cidadãos o indispensável à realização da actividade administrativa.” Isto não só exclui o tal favorzinho que se retribui, e predispõe à opacidade, à ilegalidade e à fraude, como indica uma relação de distância saudável e cordialidade em doses certas entre quem serve o Estado, servindo todos e, consequentemente, a si próprio também.

Voltarei para a semana com outra dose de princípios que, espero, deixem a pensar também quem não é funcionário público, ou seja muito defensor da mítica excelência dos serviços privados. É que ninguém, numa sociedade organizada, consegue dispensar uma constante interacção com a administração pública e muitos dos seus funcionários.


4.4.23

E há um dia em que…

Pode-se ter uma família, amigos, educação, formação mas pode haver um dia em que a adversidade bate à porta e parece que tudo o que é amor de e por pessoas e conhecimento não chega para se continuar a levar a vida com equilíbrio. O equilíbrio é até mais difícil de encontrar do que a paixão, que é o que nos arrebata e move e nos leva a conquistas e a aventuras. E das quais se fazem ilustrados balancetes públicos, e pelas quais até muitos se avaliam como tendo uma vida muito cheia, ou não.

Talvez equilíbrio seja a palavra que significa o que se treslê na palavra amor. Fez-se do amor a âncora da vida humana, mas confundiu-se com paixão e essa confusão fez o seu caminho. Tanto assim é que até se deixou a paixão dentro de nós, na relação com pessoas e coisas, e se entregou o monopólio da representação e distribuição do amor a um ser invisível e omnipotente. Tanto assim é que alguns, nos piores momentos das suas vidas de crentes, se sentem abandonados por essa força superior e inigualável. Até dizem sobre o tema coisas bonitas como poemas ou canções pop: “Não é sobre se eu acredito no amor, mas se o amor acredita em mim.” cantam os U2 num momento de rendição.

É por tudo isto que, sendo uma tragédia, o que aconteceu ao homem que matou duas pessoas no centro Ismaili em Lisboa, é tão humano. Mas ele passou a ser um criminoso apesar da família, dos amigos, da educação, da formação. Esqueceu tudo e num plano em que o desequilíbrio que até àquela manhã foi, heroicamente, conseguindo ultrapassar, se instalou. Nada parecia, apesar de uma vida cheia de drama que alguns foram ajudando a reequilibrar, conduzir àqueles crimes. Não houve lógica, não houve racionalidade, mas naquele dia aconteceu.

E também é por isso que a criatura do ser humano a que chamamos Inteligência Artificial (IA) parece tão ameaçadora a uma certa Humanidade. A frieza do algoritmo depende do equilíbrio de quem torna a máquina replicante uma parceira para a vida: a criatura repete a equação com os estados de alma do criador. A menos que descenda do Hal de Kubrick, o seu comportamento constante, lógico, confortável, recíproco, emula o que parece amor: confortável, calmo, sem discussão nem conflito. Em paz, como o amor quer que estejamos. A IA ameaça-nos ultrapassando-nos em virtudes que achamos inimitáveis, que nos dizem que só dependem do que nos habituaram a chamar amor. Um descanso, parece. E talvez a oportunidade para a percepção do peso das palavras e do seu uso ganhar alguma escala, como se costuma dizer.


28.3.23

Casas, jóias e a tartaruga

 A falta de casas acessíveis volta a ser assunto nacional, mas não só. É como se as palavras, pintadas por muitos muros onde se escreveu em português, mas não só, certo desabafo, tivessem voltado a tinir no despertador das consciências de quem passa na rua e na vida. Mas agora, numa troca dos segmentos da frase: “Tanta casa sem gente, tanta gente sem casa”.

Se o grito inicial começava por “tanta gente sem casa”, até nas falanges mais à esquerda as prioridades parecem baralhadas. Será, muito provavelmente, a reviravolta resultado do investimento, sempre curto, em casas de renda acessível. Depois do importante “boom” das cooperativas de habitação no pós-25 de Abril, que foram entretanto desfalecendo, e do meritório trabalho das associações de moradores que tomaram conta do sentido de bairro nos conjuntos clandestinos de casas, as empresas municipais de habitação revelaram-se peças fundamentais de políticas locais para o assunto. A Habévora, por exemplo, foi uma empresa municipal criada em 2004, durante uma tão vilipendiada legislatura no Concelho.

A preocupação de certos burgos, e burgueses, parece recair agora sobre os proprietários, alguns transformados legitimamente em senhorios, uns bons, mas outros negligentes com paredes e almas. E esquece-se os que não conseguem sequer ser inquilinos e ter o estatuído direito à habitação. Há até alguns proprietários, de entre habitantes, senhorios e dos que só cuidam do título de propriedade guardado em pastas de arquivo, que têm sido isentados de um imposto municipal. Não sem, durante muito tempo, termos andado às voltas em peripécias a que chamamos burocracia, como chama à sua tartaruga, pesada e lenta, a Mafalda do Quino, e que também serve para apanhar burlões.

Depois, durante algum tempo, a tartaruga foi de férias. Mas agora regressou, nesta conjuntura que quer repor justiça no direito à habitação, para que quem tem casa e a usa, para viver nela ou dela, o prove. Até em certos lugares onde, à partida, esses proprietários podem estar isentos do tal imposto. Ou seja, quem tratar a sua casa como um monumento pode ver aprovada a isenção. Enquanto a tartaruga foi de férias e até agora, mesmo quem só tinha ruínas também se regalava com o benefício de ter “nascido” no berço de ouro.

À frente desses certos burgos que se orgulham, e bem, de serem património do mundo todo e terem o poder de isentar do tal imposto as casas cuidadas e usadas, a medida incomoda. Uma chatice porque vai causar reclamações… lá virão dos alguns que vão ter de lidar novamente com a tartaruga, como os que vivemos (como eu) no tal lugar que para alguns é de berço (não é o meu caso) e para todos é de oiro.

E desengane-se quem pensa que quem gere esteja só muito condoído com quem tem de “guardar tartarugas”. As contas certas também entram na equação, debaixo da capa de heróis-autarcas defensores dos proprietários das jóias da coroa. É que em troca da isenção que podem atribuir agilmente querem ver recompensa. Vinda de quem? Do resto do País, o Estado central, claro, no refrão habitual, fácil de trautear.

É que isto de cuidar de berços de oiro e jóias em coroas tem custos e dá trabalho e chatices. E o Mundo todo sabe, por isso são inúmeros os programas, projectos e iniciativas a que estes lugares ao sol se podem candidatar. Dá trabalho? Dá. Implica aceitar as moedas vindas de onde não queriam ter nada a ver, a saber, da Europa? Implica. Precisa de ir mais além da fachada e do palco desmontável na praça? Precisa. Mas é com isto que se cuidam não apenas as paredes em que até se colam cartazes, mas de quem vive lá dentro. E à volta. E até de quem queira vir conviver ou viver connosco.


21.3.23

Comemorar a Social-Poesia

 Felizmente que vai longe o tempo em que se usava chamar a certas pessoas “intelectuais de esquerda” e que o epíteto foi perdendo validade. A expressão revelou durante décadas um tique monopolista a quem dava jeito de vez em quando disfarçar preconceitos e, de quando em vez, criar preconceitos. Um tique que, ao contrário do que o uso do intelecto proporciona - pensamento livre e oportunidade de com ele construir argumentário para discurso crítico -, fez proliferar um rebanho elitista. E até marcado por uma espécie de fardas que desejavam tratamento discriminatório. Mas, pronto, já passou e aos fósseis tratamos com o carinho nostálgico que merece qualquer ser humano.

A conversa vem a propósito de dois aniversários que se comemoram este mês e este ano, um local, outro nacional. O primeiro é o aniversário da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora, que assinalou o seu 14º aniversário na semana passada. O outro, anual, é o centenário de Natália Correia, mulher, poeta, política, intelectual, vulcânica, que morreu fez também na semana passada 30 anos. Em comum têm, estes aniversários, a oportunidade e, diria, o dever para quem tem o trabalho intelectual não apenas do modo tão necessariamente amador, voluntário, autodidacta, mas é por ele remunerado, de colocar as Humanidades ao serviço da “coisa pública”. E que à mesa, redonda, das Humanidades onde se servem as Ciências Sociais, também está sentada a Poesia.

Natália, nos tempos em que a palavra de honra não era a do populismo, seja de que lado do risco ao meio artificioso dos púlpitos este se impinge, era uma intelectual e não era de esquerda. Era o tempo da palavra das ideologias que se assumiam e viviam na acção cidadã. Natália Correia dizia que a intervenção política cabia aos poetas e quem não faz, mas estuda Poesia também sabe disso.

É, no entanto, comum que quem não vive tão próximo da Literatura veja em quem lá vive o lirismo a ser usado como único monóculo para interpretar o mundo e os outros. Não é que não aconteça, mas não é o que define os que sabem que a Literatura pode ter um lugar mais central nas Ciências Sociais do que parece. Às vezes andam é, como tantas outras pessoas que não têm sequer a leitura como o hobby preferido, mais preocupadas com as suas vidinhas. Nada que os transforme em estranhos criaturas, mesmo podendo dar-lhes jeito.

Quem, porque ou escolhe fazer da escrita vida ou é pago para ler essa escrita, está habituado a escrever e a ler vidas - personagens, enredos, sentimentos, vulnerabilidades, reacções - tem a oportunidade de interpretar mundos que transforma em discursos (é o que fazem os escritores) e discursos que revelam mundos (como acontece aos leitores). E muito para além de momentos comemorativos. O caminho para esta oportunidade é mesmo partir do princípio - que tomo como bom, na minha interessada posição de professora de Literatura - de que todo o acto discursivo traz um peso tão mais valioso quanto desvende ou revele sentidos que não podem ser lidos como instruções de manuais de máquinas. Estes manuais, quando não são seguidos à risca, não deixam as máquinas funcionar bem (e é por isso que também estes textos têm de ser de qualidade, não-literária).

A Literatura tem tanto lugar na história da Humanidade que muitos, e muito importantes, lhe entregam as memórias da sua vida. Estou a pensar nas do Comendador Rui Nabeiro, que partiu há uns dias, e que o escritor José Luís Peixoto guardou no seu Almoço de Domingo. E que vale bem a pena ler-se em várias direcções, política inclusive.

Vamos ter tempo, ao longo do ano, para estar atentos e conhecer melhor a figura de Natália Correia pela sua obra que foi palavra e acção política. Na semana passada, pudemos perceber no anfiteatro da nossa Universidade que o Conhecimento sobre Guerra e Paz, título de um clássico russo, suscitou discursos que versaram algumas tipologias, e até géneros, que encontramos na Literatura. E até no público deu para reconhecer “leitores-implícitos” para cada discurso, como quem dá a ler o que se chama um livro de conforto, também conhecidos por best-sellers, que o estudo da Literatura não pode ignorar. Foi bem interessante a festa, pá!

14.3.23

Da esperança triste na fé

Não tinha ainda falado no assunto do processo aberto sobre os abusos sexuais de menores, cometidos por membros com responsabilidades efectivas oficializados pela instituição que é a Igreja Católica, a chamada hierarquia, porque fiquei à espera de este ter chegado à fase em que a comissão independente o devolveu à instituição. Embora não tivéssemos dúvidas sobre os resultados, a novidade está na forma como o que era assunto resolvido casuisticamente, com ou sem direito à reparação possível dos danos, estar a sair do “sempre foi assim” para o “vai ter de ser diferente”. Isto visto de fora, em massa, porque de dentro há muitos, não todos, que mantêm a expressão: “se sempre foi assim porque é que agora é que há-de ser diferente?”. 

A Igreja Católica adaptou-se relativamente bem à mudança de paradigma da caridade da esmola, para ser um importante parceiro da imensa máquina do Estado social que se quer a funcionar bem, sistematicamente. Terá chegado a altura de se adaptar à não imunidade dos seus membros perante a suspeição de crime, reconhecendo inclusivamente que o sacerdócio não retira a humanidade das pessoas que o tomam como forma de vida. E quando provado o crime, como foi pela comissão independente e nós já sabíamos e a Igreja também, a impunidade não se aceita e o crime já não se resolve pelo encobrimento caso a caso, como uma esmolinha.

Esta grave situação, que agora chegou ao sangue das tintas e dos pixéis da comunicação social para ir mais além, deveria servir para as igrejas em geral mudarem muito. Falo no plural, porque sabemos que a Igreja Católica não tem o monopólio do exercício do poder através de práticas sexuais não consensuais, nem o de se achar a coberto dessa tal imunidade em qualquer pensamento, palavra, acto ou omissão desumanos. Há uns bons anos, algumas igrejas, numa espécie de boçalidade de bancada de campeonato de bola, rejubilavam com os crimes da IURD. Nos dias que correm, o que é feito em nome de um Deus a que chamam Alá, envergonha milhões de saudáveis crentes que também continuam a ser social e injustamente enxovalhados. Está visto que o progresso civilizacional acabará por tocar a todos, mesmo se o avanço se faz com vários tropeços e desvios. A grande lição, depois de justiça ser feita, será semelhante à de substituir a caridade pelo serviço social: a sensação de impunidade terá de ser substituída pela vivência plena da apregoado humildade dos e nos fundamentos das instituições que vivem em função da religião. Seja ela qual for. 

Segue uma palavra de solidariedade para os católicos tão tristes e desiludidos de hoje, os que esperavam que as vozes destes oprimidos chegassem finalmente à Terra. Como a envio, esta palavra, aos muçulmanos tão acusados de terroristas, aos judeus gozados pelo zelo do que é propriedade herdada das suas tribos, aos protestantes diabolizados por ousarem desafiar o Vaticano, aos evangélicos olhados de lado pela proliferação de templos e estratégias de catequização populares, e a outras religiões que não conheço bem mas que padecerão das mesmas desconfianças de certa gente de fé de todas as outras. Sim, para todos os que activamente fazem da sua fé um modo de vida segue o meu abraço solidário de descrente, mas com muito respeito por instituições que congregam muitas gerações de boa-vontade, longe das suas cúpulas que as mal representam. Se fossem a votos como nas democracias…  

7.3.23

Mas que m**da é esta?!

Se eu tivesse por hábito ler os títulos destas minhas crónicas quando as gravo para a rádio, talvez não tivesse escrito o que escolhi para a crónica de hoje, perceptível apenas para quem a leia com os olhos. 

Logo aqui me penitencio por não ser habitualmente inclusiva nestas intervenções. Até porque, mesmo sabendo que há já tecnologia para que quem não vê tenha, quando tem, acesso a programas ou aplicações que possam ser esses olhos e lhos leiam em voz alta, sentir-se-ão comigo como eu me sinto quando vou àqueles serviços de atendimento ao público, e muitas vezes serviços públicos, e só se ouve o sinal de que chamam uma senha nova, mas não dizem que número é, nem para que balcão nos devemos dirigir. Fico quase sempre ou colada aos ecrãs, ou em movimentos de vai-e-vem ao toque dos gongos electrónicos. Mas adiante, porque a esses ouvintes destas crónicas garanto que não perdem nada não sabendo delas os títulos, e que este só é assunto por ser a versão menos própria da exclamação que afinal se traduziria por um civilizado “Mas que porcaria é esta?!”

Ora, esta provocação assim explicada serve mesmo para opinar sobre a vaga de moralmente ilegítimas e infantilizantes alterações que certas editoras se propõem fazer a obras literárias no mercado anglo-saxónico. Livros que se caracterizam por serem bastante mais populares do que muitos outros, infelizmente ainda assim entre uma minoria da população mundial que é a que lê literatura. A minha indignação para com esta gente que lê e dá a ler e assume estas ridículas posições, dá ao esforço quotidiano de ensinar a ler e apreciar artes o que se confirma ser um papel importante das chamadas Humanidades Públicas. Trata-se de não apenas “desenredomar” a literatura e tirá-la de uma conversa elitista e inacessível a não iniciados, mas sobretudo trazê-la para o quotidiano das pessoas sempre que vier a jeito. Apesar deste trabalho quotidiano, ou por causa dele, ainda não consigo deixar de sentir que a exclamação deselegante do título da crónica de hoje não faça jus a esta onda censória que, afinal, só ridiculariza a base ou o berço da agenda woke. 

Claro que nos dias que correm, em face dos comportamentos pouco civilizados que os manifestantes, que o são muito legitimamente, têm demonstrado, e perante a porcaria em que se tornaram certos argumentos, também poderia exclamar com o mesmo nível mais grosseiro o que escrevi no título da crónica. Que, diga-se, foi o que exclamei em frente à televisão quando dos assaltos ao Capitólio em Washington e à Praça dos Três Poderes em Brasília. 
Não sendo este o caso, mas outro, ambos revelam a importância do uso e da força da palavra. E da sua manipulação com fins de duvidosa benevolência, a não ser para quem faz muito mais gosto na preguiça ou na provocação do que na explicação. E fica a sensação de que estas provocações, infantilizantes, também podem ser manobras de marketing. E estas, como também já sabemos, podem ser de níveis diferentes. Umas transformam o marketing na venda da banha da cobra, outras puxam de forma quase subliminar pela inteligência humana que, não evitando tantas vezes a satisfação de pequenos prazeres que reconhecemos inúteis ou não aconselháveis, a boa campanha nos “obriga” a comprar.

As palavras têm força quando não se gastam, quando se usam no ou para o contexto próprio. Podendo chocar, e ainda bem que chocam, quem perceba, porque lhe explicaram, que o mundo e a civilização avançaram. Explicar é o papel do adulto que deve e ganha em conhecer o que dá a ler às crianças; explicar é o papel do prefácio, do posfácio ou da nota de rodapé que contextualiza o que não é, ou não queremos que seja, usual e correcto. É esta a forma justa e limpa de lidar, sendo picuinhas como temos de ser, e o Ondjaki ainda há pouco nos aconselhou aqui em Évora a ser, sem censurar, nem tomar leitores por criaturas estúpidas. Ao não o fazer, como parece estar a tornar-se uma tendência, é seguir a via insultuosa, a que contamina e provoca reacções que só baixam o nível da conversa. O título de hoje prova-o, intencionalmente.

28.2.23

A força de vontade e a passagem de um ano

Cresci a ouvir falar na força de vontade que devia ter para ultrapassar as contrariedades e chegar a um muito desejado objectivo. Várias vezes desisti a meio de certos percursos por perceber que, afinal, a meta não merecia tanto esforço. Mesmo que os meio-caminhos feitos me tenham ensinado sempre alguma coisa, desistir não é palavra de que alguém se orgulhe. Embora, em muitas situações, possa ser a saída airosa para evitar que a derrota seja mais estrondosa do que a glória que o rascunho da vitória pressupunha no início da provação. Como escreveu a Clarice Lispector: “ A desistência é uma revelação.”.

Parece, então, que no princípio é que está o desafio. Acostumámo-nos a ouvir aos comentadores da guerra de invasão da Ucrânia: sabemos como começou, não sabemos como vai acabar. Mesmo sabendo todos muito bem quais os objectivos de Putin e da sua gente. Não lhe podemos negar que teve a força de vontade com ele, rodeando-se das circunstâncias que alimentariam essa força. Mas não contou com as forças de resistência, as de quem a única vontade parecia ser viver em paz e democracia.

A guerra na Europa, que ainda não incomoda o Mundo todo mas é assunto mesmo muito europeu, continua a ensinar-nos que a força de quem reage se torna, tendencialmente, maior do que a de quem toma uma iniciativa. E é assim que querer impedir quem quer fazer se torna, apesar de todas as razões ou falta delas, movimento de mais provável sucesso. Mesmo se com o preço alto a pagar de uma maior quantidade de devastação e perdas entre os resistentes.

Um ano depois do início da Guerra, sem dúvidas nenhumas, por óbvio que é distinguir quem é o agressor e quem é a vítima, dos piores momentos que ouvi relatado no dia 1 de Janeiro - tão trágico quanto semelhante a episódio de ficção - foi o que se passou com as tropas russas nessa noite da Passagem de Ano. Autorizados pelos seus superiores a ligarem os telemóveis perto da meia-noite russa para festejarem o momento com as famílias, os jovens soldados russos sem quererem denunciaram massivamente a sua localização através de satélites e foram atacados pelas tropas ucranianas. Não me sai da cabeça, mesmo sabendo que estavam do lado errado, que houve dezenas de jovens soldados que morreram enquanto desejavam um feliz ano novo às suas mães. Na lei da guerra não parece haver espaço para planear calendários. Sabemos como começou, não sabemos como acabará.