26.11.13

Judiarias

Há naturalmente notícias que nos interessam mais do que outras. Foi o que aconteceu a semana passada nas notícias divulgadas a partir de um comunicado da Câmara Municipal de Évora. O assunto era a Rede de Judiarias de Portugal e a eleição do município de Évora para os seus órgãos sociais. Já agora acrescento para informação dos ouvintes e leitores, e para nos irmos limitando a factos, que é o que normalmente um órgão de comunicação institucional deve fazer, que foi eleita para último vogal do Conselho Fiscal. Mas, entretanto, aliás no mesmo dia do comunicado da CM, houve declarações à Lusa sobre este ato eleitoral que se tinha realizado em Belmonte, sem que tenham sido convocadas as entidades regionais de turismo do Centro e do Porto e Norte, pelo que, e cito «denunciou hoje o presidente do Turismo do Centro, Pedro Machado, que reclamou a nulidade do voto». Parece que este presidente admitiu recorrer a uma providência cautelar caso não sejam repetidas as eleições, para as quais aquela entidade não foi convocada Afinal, tendo tido eu um papel no assunto desde há dois anos era natural que me interessasse pela notícia e procurasse saber mais. E aproveito agora para relembrar alguns detalhes, que não serão pormenores, antes “pormaiores”, neologismo que me agrada bastante.
Foi mais propriamente na Assembleia Municipal de dezembro de 2011 que foi aprovada por unanimidade a integração de Évora nesta rede, acabada de ser constituída. Facto: as eleições de 2013 são por isso as primeiras dos órgãos sociais para que Évora poderia ser convidada, e foi, fruto seguramente do prestígio de Évora e do trabalho que se adivinhava profícuo para a sua integração ativa na rede. Foi, nessa sessão da AM, com a declaração de uma saudosa investigadora da cultura judaica da Universidade de Évora, deputada na altura, que foi alertada a CM por ser, e cito, «o caso de Évora estranho, porque se conhecia muito do ponto de vista científico, mas pouco no plano turístico, lembrando que esta atividade poderia ser um recurso económico, nomeadamente de carácter religioso, não olvidando que a cidade se encontrava no roteiro de muitos grupos vindos de Israel, dos EUA ou de França, não existindo na Câmara local, segundo sabia, qualquer preocupação em se produzirem brochuras especializadas ou na feitura de sinalização adequada, que pudessem rentabilizar tal património.». Manifestou ainda um desejo: «tendo o [município] de Évora sido convidado para o efeito, [esperava] que este tivesse vontade política para agarrar a oportunidade, promovendo vários eventos». Estávamos em dezembro de 2011, discutia-se o orçamento de 2012, onde a promoção de eventos se teria de limitar aos apertos que todos conhecemos. Mas o que fizemos pôs-nos, como se vê agora, no bom caminho.
Com a entrada na Rede, foram inúmeros os contactos feitos com parceiros, incluindo a integração de uma comitiva oficial, para a sua divulgação em Israel, corria o mês de fevereiro já deste ano, resultado de um trabalho que ainda que silencioso e interno, começava a dar frutos. A divulgação de Évora foi importante ao ponto de estarem programadas diversas iniciativas, que não sei se se realizarão, relacionadas com o turismo judaico e religioso. E também se continuaram as negociações, encetadas em 2012, com representante dos muitos herdeiros de um espaço para albergar a Casa da Cultura Judaica Diogo Pires, espaço aliás já alvo de inúmeras e longas intimações pelo estado de degradação e constituição de perigo para a segurança pública. Um exemplo recorrente no centro histórico e que os eborenses conhecem bem. A boa notícia que tivemos, só já em setembro deste ano, é que efetivamente haveria verbas, 280 mil euros, para podermos fazer propostas concretas e arrancar com o projeto.
Lamentável é que um comunicado oficial da CME venha com o discurso que, os mais atentos já deram conta, vai sendo feito por outros executivos camarários que o PCP conquistou de novo nestas autárquicas e que é, ao melhor estilo de Relvas, desculpar o não-feito ou a não-fazer com o feito antes. Mas que espécie de notícia oficial de uma instituição com o mínimo de sentido de estado afirma, com recurso a inverdades, ainda por cima, que «Nada disto se concretizou, em tempo útil, por razões que a razão desconhece e que terão de ser imputadas ao anterior executivo.»? Enfim, diz tudo sobre o seu autor…

Mas falta ainda a dita citação com que me comprometi nesta série de crónicas. A propósito de propaganda, já que foi a utilização desta técnica que despoletou os meus comentários e informações, cito Sinclair Lewis, o primeiro americano premiado com o Nobel da literatura, que diz com ironia: "A propaganda é um fator económico valioso porque é o meio mais barato de se vender bens, especialmente se os bens não valem nada."

20.11.13

Empreendedorismo

A propósito da sugestão de introduzir a disciplina de empreendedorismo na escolaridade obrigatória, vontade aparentemente só manifestada por ministro que não é da Educação, encontrei uma frase atribuída a Freud, mas de uma banalidade desconcertante que diz «Não se deve empreender coisa alguma de que se não goste realmente.» Mas Freud é Freud e vamos lá ser justos e a partir desta banalidade que o deve ser pela descontextualização, levar a água ao nosso moinho. 
Presumo que a ideia que partiu do ministro da Economia num debate na Assembleia da República onde, sabe-se lá porquê (embora desconfie), resolveu meter a foice em seara alheia, seria então criar uma nova disciplina obrigatória. Aprendizagens em torno do empreendedorismo têm sido experimentadas em alguns projetos pontuais, já que desde 2007 que existe um guião do Ministério da Educação para esta área, intitulado «Promoção do Empreendedorismo na Escola», de que aconselho vivamente a leitura aos interessados na matéria, mas que obviamente está datado do tempo dos “malditos” Sócrates e Maria de Lurdes Rodrigues (agora estamos muito melhor!). Sem o caráter de disciplina obrigatória devo dizer que já assisti a experiências bem interessantes nesta área, com alunos que de forma aparentemente voluntária se empenhavam com gosto e, por isso, empreendiam.
Pergunta: quem é que iria proporcionar estas aprendizagens, com caráter obrigatório, aos adolescentes portugueses? É óbvio que o da Economia atirou com a ideia, como se de um pastel de nata se tratasse, imiscuindo-se ao vivo e sem rede em assuntos de ministério alheio, o que até certo ponto vem contribuir para se ir percebendo o rumo e a coesão do governo de coligação.
Em publicação que consultei sobre a matéria do empreendedorismo na Escola, diz-se que «Os programas implementados são devidamente adaptados à realidade portuguesa, aos níveis de escolaridade e aos escalões etários. São leccionados em parceria entre os voluntários das empresas associadas e os professores das escolas aderentes, com o intuito de construir e ministrar conteúdos didácticos interessantes e motivadores do ponto de vista da sua aplicabilidade.»
Confesso que com a má disposição com que a classe docente anda por estes tempos, mesmo sendo das classes profissionais mais incitada à contestação à face do país (arriscando-se por isso o “Super Mário das Manifs”  a que haja quem já não o oiça) o que felizmente acumulam enquanto profissionais, e na sua grande maioria, com um enorme esforço para que essa contestação não se reflita no sistema de ensino-aprendizagem e, por isso, nos seus alunos. Com esta disposição, não estou a ver tarefa fácil em trabalhar estes assuntos com turmas que parecem hordas, pela quantidade de cabeças e hormonas por sala. E o voluntariado de empresas faz-me logo imaginar, injustamente talvez mas não posso evitar, sessões de distribuição de amostras gratuitas. Mas enfim, deve ser influência das ações de marketing que nos acontecem em todo o lado. Afinal trata-se de empreendedorismo, não de marketing.

Assim como Freud liga o verbo empreender ao verbo gostar, também me parece que o gosto pela Educação, a haver, terá de ser mais visível por parte de quem gere este ministério, para que o exemplo contagie os alunos e o seu empenho na Escola. O que este episódio breve entre ministérios revelou também, na saga a que assistimos em que aos poucos a Escola Pública definha, é que a eliminação tout court das disciplinas de Formação Cívica e Área Projeto com a desculpa de dar mais tempo e melhorar o Português e a Matemática, mas onde o espaço para criar estas paixões existia, até ao ministro da Economia deve ter parecido um erro.

12.11.13

Quem escreve e quem lê

Albert Camus fez cem anos na semana passada. Leitores e comentadores festejaram, a Academia também. Foi um escritor e filósofo francês, nascido na Argélia, premiado com o Nobel em 1957 e que teve intervenção política. Foi dirigente comunista, expulso depois do partido, e acabou anarquista. Era um pied-noir, o equivalente francês ao conceito português de “retornado”, o que significa para o caso que foi dos que não teve uma vida fácil. Disse um dia que "Quem escreve de um modo claro tem leitores. Quem escreve de um modo obscuro, comentadores." Primeira conclusão: qualquer escritor a quem festejem o centenário tem de ter, por estes parâmetros de Camus, esses dois lados, o claro e o obscuro.

Nesta semana que passou, fomos também brindados (oiçam a ironia, por favor) com o comentário, de alguém que escreve, sobre a reação popular à austeridade. Dessa pessoa não estou à espera que se assinalem, pela sua obra, os cem anos, nem tão pouco considero que tenha tido, ou venha a ter alguma vez, alguma intervenção política, apesar do comentário claramente colado a uma certa direita. E, no entanto, se há quem escreva e tenha leitores em Portugal, é esta pessoa. Como tem, está bom de ver, comentadores que eu já os vi e ouvi, sim senhora. O interessante é precisamente que os comentários, a sério, que se têm feito sobre os seus livros se prendem muito mais com o fenómeno não da sua clareza, mas de outro adjetivo, que Camus nunca poderia ter imaginado, acho eu com poucas certezas, e que é o adjetivo “light”. O “light” está para os livros, como o “pimba está para as canções, sendo que esta é a melhor e mais rápida definição por analogia que me parece, assim de repente, fácil de dar a entender.

 Não vou dissertar aqui sobre as qualidades de Camus, que sob a marca talvez mais consensual do existencialismo tratou grandes questões do indivíduo, da sociedade e da humanidade; ou sobre as banalidades de MRP, como por agora tem sido conhecida no meio a tal pessoa que escreve, de seu nome artístico Margarida Rebelo Pinto. E eu até sou daquelas que acha que mais facilmente se salva para a boa leitura um leitor da MRP do que um não leitor. Com muito trabalho, é certo, mas antes ler MRP que não ler nada. Mas adiante.


Quero apenas salientar o facto de que as leituras literárias não são unívocas, ou seja de sentido único, porque também as obras literárias não simplificam o emaranhado complexo que é a vida, de que também falam; que os muitos leitores se conquistam pela clareza da escrita, e não pelo simplismo, e os bons leitores pela capacidade de nessa clareza encontrarem a profundidade que nela existe e que, por isso, desperta o comentário, mesmo na forma de reflexão individual. Finalmente, salientar que bons leitores de livros, aqueles que se interrogam sobre o que leem, são normalmente bons leitores da realidade que os circunda. E quem leu MRP, como já fiz (ok, um livro e meio, porque dou o benefício da dúvida aos autores de best-sellers e senão não poderia estar aqui a falar assim), perceberá que a única leitura que ela poderia fazer foi aquela que fez, através dos olhos de uma elite alienada, cuja dureza da vida não passa pela sobrevivência nos moldes que a civilização atual deveria proporcionar. Talvez aqueles que nesse mundo cor-de-rosa retratado por MRP encontram a evasão possível à dureza do dia-a-dia, percebam a soberba de quem, mesmo não tendo nem sabendo dar melhor, lhes dá daquilo como se estivesse a atirar pérolas a porcos. 

7.11.13

Descarrilhar

"A minha única diferença em relação a um homem louco é que eu não sou louco!" terá dito Salvador Dali. Invoco a loucura a propósito do extemporâneo caso Bárbara vs Carrilho que, com uns contornos bem mais leves que julguei que acabaria por assumir quando das primeiras “notícias de última hora”, poderia ter sido o caso e a “novela” da silly season 2013. Ficou para o Outono. E quer-me parecer que à semelhança do que não é feito na altura própria, chamemos-lhe assim apesar de a exploração pública da vida íntima, consentida entenda-se, ser um tema de gosto duvidoso que normalmente me deixa indiferente, parece ter vindo agora, em modo serôdio, dar os seus frutos de uma forma ainda mais espetacular, e que, essa sim, não me deixou, nem deixa, indiferente.
Não me deixa indiferente por se tratar de mais um caso de violência doméstica que envolve crianças e cuja mediatização afetará seguramente ainda mais a vida presente e futura dessas crianças. Não me deixa indiferente, não por se tratar de figuras mediáticas ou de elites sociais, já que a violência, sabemo-lo, não é monopólio de pobres, ignorantes ou grupos socialmente fragilizados. Não me deixa indiferente sobretudo porque surge associado a alguém cujo património intelectual e a formação académica não me deixaria prever, não o caso de violência (todos conhecemos casos tão inesperados e que muito nos chocam), mas a forma como é trazido na primeira pessoa a público. O despudor da conversa fez-me perder o respeito que tinha pelo académico, muito embora pudesse não o ter já pela pessoa de Carrilho. Como pessoa não o conheci para o poder julgar, mas agora já posso. E posso dar razão àqueles que pela postura que o ex-ministro teve na vida político-partidária já me tinham expressado as suas desconfianças e que eu sempre relevei pelo respeito ao seu exercício da pasta da Cultura e à sua produção académica.   
Poderia falar da vergonha. Poderia mesmo falar até do presumível crime, legitimamente, porque o caso é aí mesmo, nessa instância, que está. Mas prefiro falar de loucura, aquela que a voz do povo contrapõe à da sabedoria, transformando-as não em opostos mas em sobrepostos. E se a dose poderia ser equilibrada, tanto de louco como de sábio ou de génio, este disparate que o ex-ministro fez o favor de vir fazer a quem nunca lhe reconheceu valor pelo lado do seu capital intelectual, veio também agora fazer-me ter muito pouca vontade de continuar a reconhecê-lo enquanto sábio.
Muitas vezes a loucura de figuras públicas tem um lado histriónico que desaparece fora do raio dos holofotes, como aliás acontece com outras características que são sobrevalorizadas por quem só as conhece enquanto figuras públicas. Umas vezes pelo que delas dizem, outras pela postura que em público assumem. É sempre um receio que tenho, este de conhecer um pouco melhor alguém por quem nutro alguma admiração. Tal como não me deixa indiferente, nem nego, essa aproximação de alguém por quem, pelo contrário, não sinto grandes simpatias. Há boas e más surpresas.

Neste caso, estou convicta de que dificilmente qualquer outra conversa ou tentativa de mostrar esse outro lado de sábio, me fará esquecer a baixeza das declarações de Carrilho, e não o “diz que disse” ou o “terá feito”, que num período de vida que seguramente o abalou como abala tantos e tantas, teve esse momento em que a máscara caiu para irremediavelmente não conseguir ser recolocada e cumprir a função que até ali teria cumprido. É que se, como acontece à mulher de César, não basta sê-lo há que parece-lo, aqui Carrilho mostrou bem quem é.