28.11.23

Há poesia enquanto esperamos…

 Quando a contemporaneidade ocidental nos traz, pela via da Democracia, o direito a reclamar aos Estados igualdade de oportunidades, rapidamente se percebe, olhando à nossa volta, que esse é ainda um direito “em construção”. Para além de que os direitos equivalem a deveres, quanto mais não seja de prestação de contas pelo seu usufruto. Este da “igualdade de oportunidades” é, pois,um desígnio difícil de exercer, pelo que não fará mal exercitá-lo noutros domínios: por exemplo, o das palavras, o de ler e ouvir sobre assuntos de Política, actividade para a grande maioria dos cidadãos bastante aborrecida.

Mas o domínio do discurso e, consequentemente, da comunicação, talvez seja aquele em que exercemos de forma mais acessível, essa igualdade com direitos, e sem deveres ainda em prática instituída. Coisa que acontece há relativamente pouco tempo, diria que desde o advento das redes sociais, onde quem as frequente pode dizer praticamente tudo sobre todos. Fazendo-o , ou ouvindo fazer, ensaia-se pelo uso das palavras as acções, ou pelo menos as intenções de acção. E muitas são reveladoras de carácter e propaladoras de ideologias ou formas de gerir e viver em comunidade de quem as produz, apoia ou contra-argumenta.

As palavras são as mesmas da matéria-prima de poetas que, no seu ofício, e como cavaleiros errantes, experimentam enquanto percorrem o caminho de as alinhar, organizam em pensamento sensações, emoções e tudo o que lhes parece indizível ou ainda por dizer. E é talvez por isso, gosto de pensar assim, que dou particular atenção à escolha dos poemas cujos versos são lidos por quem nos habitua a ouvir mais sobre números ou outros assuntos que não o do exercício da arte verbal ou do seu estudo. E que me faça dar ainda mais atenção a novos sentidos que possam acrescentar -se àqueles textos relidos em mais tempos e noutros contextos.

Vem isto a propósito do poema “Abandono” de David Mourão-Ferreira, conhecido como “Fado Peniche” em referência aos presos políticos do Estado Novo, citado parcialmente por Centeno, nestes momentos em que, suspensos, aguardamos, com um voto na mão, os destinos políticos próximos.

Enquanto estamos à espera da noite de 10 de Março do 50º ano da Democracia, talvez não seja desajuizado ir ouvindo com mais atenção o que nos dizem, não apenas os que terão nas mãos a gestão do País num futuro de quatro anos, mas quem os comente. E sobretudo, aproveitemos para recordar como sobrevivemos, nós neste cantinho, ao que assolou e assola o Mundo; mas também não esquecermos, na memória de curto prazo que parece ter arrastado 2020 e 2021 para um tempo fora da linha de Cronos, o que, apesar de tudo, se conquistou nos últimos oito anos. Por muito que os gritos de quem pouco ou nada contribuiu se façam ouvir em modo repetitivo, sem acrescentarem nada de concreto e de concretamente demonstrável. E, já agora, ir ouvindo os poetas que nos desafiam com a exigência de uma boa leitura que construa os sentidos dos versos mais enigmáticos.

21.11.23

Escolher lados

 Enquanto simpatizante do Partido em cujos princípios me revejo, vou poder participar na eleição que decidirá qual o candidato do PS a PM do próximo Governo. É simpático: envolve-nos e compromete-nos, mas com os limites que respeitam as nossas próprias vontades em limitarmo-nos ao grau zero e basilar de participação numa associação de pessoas que se preparam para gerir um País. Os efeitos mais marcantes da militância, normalmente, implicam outro estilo de participação em que até acontece parecerem-se os militantes mais com antipatizantes; pelo menos é o que por vezes transparece para quem está de fora, mas atenta, a ouvir rádio ou ver televisão. Faz tudo parte de um padrão de comportamentos dos seres sociais que somos, mas, no caso, de que não tenho por livre vontade de fazer parte.

Não é fácil escolher lados, quando se partilha um chão comum com as duas pessoas adversárias que nele se movem e dele cuidam. Há que ler os respectivos programas com muita atenção e a partir deles, mais do que dizem os que em funções de militante, sejam claques ou senadores, avançam a argumentar vantagens e problemas de um ou outro, optar; é a partir dos programas e da actuação dos candidatos que me empenharei a accionar os princípios muito meus que pesarão na escolha. Felizmente, posso sentir-me à vontade com qualquer das decisões que o Partido tomar, o que também me descansa por ser o Partido que é o meu que, por um ou outro, não deixará cair as conquistas destes últimos oito anos.

São princípios que equacionam as exigências das experiências passadas, princípios que comparam reacções perante os homólogos dos concorrentes às legislativas, e princípios que percepcionem as capacidades que cada um terá quer em não deixar perder-se a memória de passados irrepetíveis, quer em atrair as novas gerações, as que ainda irão a tempo de despolarizar, para a participação no exercício de direitos e deveres conquistados com a Democracia.

Apesar destas ponderações, que dão o seu trabalho aos neurónios e agitam algumas sinapses, nada se compara com o aperto no coração e a revolta nas entranhas que cada vez mais me torna insuportável ouvir ou vislumbrar qualquer representante do governo israelita. Não há dúvidas, nesta altura, sobre que lado escolher. É que neles só se veem os algozes dos milhares de palestinianos mortos e encarcerados, com números que não páram de aumentar. Eles que arrastarão consigo a terra prometida do povo judeu que não merecia esta mancha na sua longa e triste história.

14.11.23

Marcelismo vs Democracia

Parece-me que Marcelo Rebelo de Sousa ficará para a história como o PR que, em Democracia, pior fez à Democracia.

Curiosamente, foi em parte a posição de Marcello Caetano, padrinho deste Marcelo 2.0, a propósito da guerra, a colonial, que, mesmo com as promessas primaveris, deu origem a tempos tão ou mais obscuros que os do salazarismo. A conversa que o Marcelo de agora fez sobre o conflito israelo-palestiniano, com subsequente presença numa manifestação; tal como o caso da cunha para as gémeas, a ser revelada quando, precisamente nesta guerra comentada com aquela ligeireza, são as crianças que em maior número são suas vítimas; estas duas situações guiaram-no num caminho de cegueira para o qual arrastou a Justiça. E os estragos também terão a sua assinatura. O que aconteceu na semana passada foi mais um espectáculo para os meios de comunicação às massas, como tudo em que este PR está envolvido; um jogo “Marcelismo vs Democracia” da primeira mão de um importante campeonato: o do Centenário do Regime.

Explico a comparação: Marcelo agiu como o governante que mexe os seus cordelinhos sem pudor de, ao fazer bem a uns (as gémeas serão provavelmente um caso entre muitos), prejudicar o todo. Se sabemos que as “cunhas” são um pão nosso de cada dia mordiscado em todas as esferas, todas, também acabaremos por concluir, mais cedo ou mais tarde, que as influências, os conselhos e as negociações têm de ter base sólida de argumentação que aguente e sirva para melhorar práticas e resolver problemas sem criar outros, e até mais graves. Que se aconselhe alguém para um cargo para o qual seja efectivamente útil e competente; ou que se sugira um procedimento para outro alguém que melhore os procedimentos para todos os que vêm a seguir, melhorando um sistema que esteja montado e apresente falhas de eficiência, é exercer uma magistratura de influência; o resto são simulacros próprios da incompetência em lugares de poder.

E também não deixa de ser tristemente curioso que a crise política mais grave do regime tenha sido espoletada por palavras. Palavras proferidas, por escrito, por autor-sombra - o gabinete de comunicação da Procuradora - com o pior estilo de “innuendo” de mau jornalismo, revelando a mediocridade de quem deveria ter o sentido de Estado equivalente ao peso institucional do lugar que ocupa. Pôs-se a responsabilidade nas mãos de quem, com comportamentos de “influencers”, põe em causa um trabalho em curso de um projecto para o País que era bastante defensável, embora sempre democraticamente criticável.

Continuaremos, na segunda parte do Centenário, a percorrer o caminho que repare as brechas no Regime e o reforce? Ou voltaremos atrás, a achar muita piada, muita gracinha, a um Portugal dos Pequenitos dos tempos do padrinho de Marcelo? A estas perguntas, para além de tentarmos defender o que pensamos ou queremos, pouco mais poderemos responder do que lançando búzios.

 

7.11.23

O filme todo

Às vezes tento imaginar o que pensa quem tem mais que fazer do que assistir, vendo ou só ouvindo, às dezenas, senão centenas, de opiniões debitadas na bolha política, comentando as catadupas de casos quotidianos. Casos que se misturam sem hierarquia que, se bem nos levam a mais assuntos, tendem a dar a impressão de que da importância nuclear à espuma dos dias a via é livre e rápida. E sim, a concorrência das redes sociais sentida por uma comunicação social ameaçada, e revelando-se frágil ao não conseguir ser mais competente na investigação da informação que divulga, é a prova de que, em larga escala, a “má moeda” não faz circular a “boa moeda”: abafa-a.

Passamos o tempo a ver e ouvir banalizarem-se notícias, em “loop”, comentadas por opinadores com uma agenda que, não poucas vezes, é panfletária. Ver estes “filmes” até ao fim e quando já se transformaram em sagas (como as das reformas na saúde, no ensino ou na habitação, todas três dependentes de sistemas em que todos, repito todos, os envolvidos estão lá para servir cidadãos primeiro), ver até ao fim “estes filmes” também permite, a quem está na bolha e atenta, deparar-se com pessoas que fazem do discurso acções, ou propostas para essas acções, dizerem “tudo e o seu contrário”, ao longo dos “episódios”. Triste é quando isto se passa, também, com ou quem nos governa, ou nos representa na AR, órgão que legisla a nossa vida. Nem falo de Marcelo que está imparável naquilo que sempre fez muito bem: ser inconveniente para fingir, com prepotência paternalista, que não é a “gravitas” necessária ao lugar da responsabilidade que ocupa que afasta o Povo do Poder.

Se nunca conseguiremos saber como e quando estas sagas vão acabar, até porque o padrão diz-nos que são cíclicas e reclamam novos protagonismos, vale a pena ver o filme todo, mas desde o início mais disponível, para conversar com calma sobre assuntos complicados. E fazerem-se conversas que esclareçam públicos deixando-os formar uma opinião.

Naturalmente que, nesta torrente, ninguém, ou quase, o fará. As pessoas acabam por se limitar a ver trailers e cartazes, ou seja, soundbites e decibéis, piadolas e “trolices”. O resultado é termos alcateias que lutam entre si e que arrastam consigo rebanhos que as seguem, mais ou menos satisfeitos.

E para terminar com a metáfora de “ver o filme”: seja para assistir a um clássico, a uma pepineira ou a uma obra-prima, os espectadores que saem para ir ao cinema serão muito menos que os que ficam em casa, e assim se perdem cidadãos interessados para a causa pública. E se criam claques em vez de gente informada que pensa, conversa e vota.