31.1.17

Machadinhas


A distopia é um conceito filosófico que se aplica a uma sociedade imaginária controlada por meios extremos de opressão, normalmente criando condições de vida insuportáveis aos indivíduos e que tem como modelo a realidade da sociedade, idealizada num futuro que, por definição, é incerto. São não-lugares povoados por seres e coisas de lugares. De uma forma mais simplificada, e saindo até do domínio da ficção literária e cultural que é bastante rica em distopias, poderíamos aplicar o termo àquilo que é feito fora de um contexto real e previsível de uma norma de costume, e num contexto apenas imaginável num mundo de fantasia. Olhem, como o PSD votar contra a diminuição da TSU para as empresas, por exemplo. 
Suponho que situações distópicas possam ter acontecido em circunstâncias várias ao longo da história da Humanidade. Umas por razões tácticas, mais do que por ideologias políticas, e que revelam sobretudo atitudes e posturas éticas pouco recomendáveis. Outras porque a realidade é tão obviamente insuportável para determinados colectivos por opressão de tácticas de cúpula de petits comités, e que saltam fora de qualquer solução dentro do que é então o comum pensar-se que aconteceria. As distopias tornam sempre o mundo um lugar surpreendente e, como está bom de ver, as surpresas nem sempre são todas boas.
Alguns traços característicos de uma sociedade distópica ficcionada, e que podemos estender (não sem alguma liberdade de cronista de opinião sempre boa quando discutível) para momentos delimitados e contextualizados de uma real sociedade são: o poder político totalitário, mantido por uma minoria, e o consequente desespero do colectivo que tende a tornar-se, por instinto de sobrevivência, corruptível. Estou certa que cada um dos ouvintes/leitores já terá passado por este tipo de colectivo, até inadvertidamente, por julgar tratar-se de um grupo de gente de bem onde a quase trissecular liberdade-igualdade-fraternidade serviriam de farol de orientação.
Ora tudo isto só, e mais algumas coisas que entretanto se vão passando – talvez até influenciada pelo regresso dos musicais de Hollywood ao top dos mais premiáveis – trouxe-me à memória a canção infantil da Machadinha. Aquela que serve às crianças para fazerem, em grupo, uma rodinha que lhes permite escolher parceiros, gerando tantos ciúmes como fugazes relações eternas (uma humana contradição, como terão percebido). Tudo gira como no poema Autopsicografia de Fernando Pessoa “nas calhas de roda”, “a entreter a razão, /Esse comboio de corda /Que se chama coração”.
Na cantilena infantil, do coro de vozes, sempre puerilmente efeminadas, ouve-se por entre as várias repetições típicas do seu paralelismo, dois pares de versos que nos últimos dias me têm preenchido os silêncios das rotinas. E dizem assim, os marotos: “Sabendo que és minha, também eu sou tua, /Salta machadinha, lá p'ró meio da rua”, “No meio da rua não hei-de eu ficar,/Eu hei-de ir à roda escolher o meu par.” Às vezes isto tudo da vida que é para se levar a sério parece-me mesmo uma brincadeira de recreio. O defeito será provavelmente meu e assim, hoje, termino por aqui.

24.1.17

Pós

E Trump lá tomou posse. Com notícias de curiosidades várias, entre as quais aquelas sobre níveis de popularidade ainda, imagine-se, avaliados por sondagens. Enfim, as manifestações algo violentas num dia de festa mostraram a democracia a funcionar, o que com 200 anos, até seria sempre normal e esperemos que assim continue. Mas sem tentações de recorrer a alucinogénios que me aliviem do que promete este novo mundo (ouviu-se falar numa III Guerra Mundial), debrucei-me sobre os significados metafóricos à volta da palavra “pó”… às tantas por me parecer o diminutivo de pólvora. Sendo assim, “cheirei” ao de leve o conceito de “pós-verdade”, inspirei as estranhas convicções demonstradas, e partilhadas com uma imensa quantidade de cidadãos em todo o Mundo que, tal como Trump, cresceram em Democracia mas só lhes parecem reconhecer uns “pós” dos princípios que este regime político desenvolve; e, por último mas não menos importante, o “pó” que meio-mundo sente por outro meio-mundo, sejam ou não pertencentes a movimentos opostos.
Começo já por este “pó” que tantas vezes usamos para exprimir os nossos sentimentos relativamente a alguém e dizer, por exemplo, “Tenho-lhe um pó, que nem sei!”. São desabafos que variam de intensidade nos discursos apaixonados das redes sociais e das conversas entre amigos reais, normalmente reveladores de uma alergia ou intolerância relativamente a determinada pessoa. Tal como não costumo exprimir adorações e loas híper adjectivadas a figuras de quem só conheço e reconheço, isso sim, as qualidades públicas, não consigo ter “um pó” ao Trump. Isto ainda que o ache apalhaçado, como tantos outros que exercem cargos de poder em vários níveis, o que não lhe retira o reconhecimento de ter conseguido reunir entre os seus compatriotas o necessário para ser eleito Presidente dos EE.U. Isto diz-me é muito mais sobre a maioria deste povo que, estou convicta, está cheínho de imensas e honrosas excepções. Resumindo, o “pó” que tenho é a quem conheço bem, me destratou a mim ou a alguém dos meus, e de quem prefiro manter uma distância anti-histamínica.
Uma das razões que poderá levar a ter-se um “pó” a alguém é quando se é alvo de difamação por parte desse alguém. A difamação, afinal, pode ser o grau mais alto da consequência da “pós-verdade”, o segundo “pó” deste texto de opinião, já que a expressão, que o dicionário Oxford incluiu de novo em 2016, faz referência a circunstâncias em que os factos objectivos têm menos influência na formação de opinião, também pública e em público, do que os apelos emocionais e as opiniões pessoais.
Finalmente, e por esta nova era da Democracia, a mais antiga do outro lado do Atlântico mas também a nossa jovem, parecer estar a assumir possibilidades teóricas inéditas, para o bem ou para o mal só poderemos avaliar ao fim de quatro anos de mandatos democraticamente constituídos, resta-me desejar que não se desfaçam em pó os princípios que regulam o sistema democrático. E termino com as palavras da última carta de Obama aos Americanos, o presidente que se me mostrou, juntamente com a sua Michelle, como a imagem do melhor que os EE.U configuram para mim. O que me deixará não só uma lusa pontinha de saudade, mas sobretudo uma alegria por ter conhecido durante a minha vida o mundo e aquele lugar presidido por este homem: «Quando a margem do progresso parece lenta, lembrem-se: a América não é o projecto de uma única pessoa. A palavra mais poderosa da nossa democracia é a palavra “nós”. Nós, o povo. Nós vamos vencer. Sim, nós podemos.» O que até é válido para organizações, também soi-disant democráticas, mais modestas que os EE.U ou mesmo Portugal. 

17.1.17

Uma caixa é uma caixa

Há temas que, sendo da política porque dizem respeito ao que nos governa, confesso ser incapaz de pensar para além de uma lógica quase comum. Falo de temas sobretudo relacionados com as finanças, um mundo que, para além da inevitável matemática vertida em equações e gráficos que só consigo, hélas!, apreciar esteticamente, mexem com a sociedade e as pessoas e, por isso, aparecem não no campo das ciências exactas, mas no das ciências sociais e, porque não, humanas.
Assim o quase-sempiterno assunto da Banca e da Caixa Geral de Depósitos tem-me dado que fazer. Muitos artigos de opinião, o acompanhamento regular das audições em comissões parlamentares onde trabalham aqueles que me representam, já que eu faço parte dos que ainda votam sempre. E, claro está (pois se são estes os momentos em que quem tem mais que fazer do que inteirar-se destas “politiquices” ganha argumentos para emitir opinião), algumas explicações, dos vários lados, aos microfones, em cenários de rua que, como todos os que estudamos e aprendemos em qualquer nível e assunto que seja, da física quântica ao ponto de crochet, podem ser cenários ruidosos e propiciadores de equívocos provocados por curto-circuitos de mensagens truncadas e desenquadradas.
O assunto é delicado já que se trata do Banco de todos nós e que, à semelhança do que devíamos fazer com o banco de jardim que também nos serve quando nos sentamos lá e serve aos outros que lá estão quando nós ainda ou já não estamos, devia ser bem tratado por quem o usa e sobretudo, ou seja como exemplo de cima, por quem dele cuida, mantendo-o útil e eficaz para o que serve. Um banco não é só uma instituição onde se guarda dinheiro e se cobra por isso, mas também é isso. Assim, a nossa Caixa, para além de um banco com todas as transacções que implicam vários tipos de investimentos, é também uma caixa, lugar onde se guardam bens de forma segura, aos cuidados de quem tem de ter a hombridade de se colocar acima dos seus interesses pessoais para corresponder aos interesses daqueles que lá guardam o que é seu mas também o que é de todos. Também é por isso que o chamado “subsídio de falhas”, que quem trabalha directamente com dinheiro nas empresas recebe, serve para casos de acertos por pequenos lapsos e não contempla a fraude. Quem não comete lapsos fica assim com mais dinheiro para se governar. Para isto é preciso que as contas primeiro se façam, depois que batam certo. E é por isso também que a prestação de contas, mesmo quando se trata de outras questões de gestão, é o elemento fundamental para a confiança dos utentes de uma instituição. E falo do governo e da oposição como instituições com as mesmíssimas responsabilidades para este efeito.
Do que li e ouvi sobre e do ex-administrador da Caixa (a quem só cobiço os rendimentos já que o trabalho e a responsabilidade que lhes equivalem me parecem ser exigentíssimos e inalcançáveis o que, por isso e como a cobiça se define, é uma ambição que não chega nem se deve concretizar) gostei de perceber que partilhava de um princípio que demonstrou ter: de que uma equipa vale tanto no momento em que se recebem os louvores ou as críticas por dirigi-la, como merece que dela se afaste quem discorda do seu funcionamento ou, como no caso em apreço, deixe de a ter. E foi ao perder a maior parte da equipa para administrar aquela instituição que o senhor saiu e, porque esse não era um problema dele, lá entregou a sua badalada declaração de património. Tenho pena que alguém assim não tome conta da Caixa onde o país guarda o seu dinheiro. Parece-me que o hábito de “fazer caixinha” tem mais sucesso numa certa maneira de fazer oposição e se perdeu uma boa oportunidade de fazer as coisas bem. O que também demonstra que os 42 anos de democracia são ainda o princípio. Haja esperança! 

10.1.17

O Democrata

Associo-me naturalmente ao luto pela morte de Mário Soares. Os minutos de silêncio preenchê-los-ei com uma afirmação de princípios sua, das muitas que fez ao longo de toda uma vida tão cheia, e com o som da Internacional Socialista. E no jogo das palavras e das metáforas, dele se poderá sempre dizer que não era como um democrata, mas sim o democrata.
«Que continuem os nossos adversários com os seus processos historicamente condenados. Que cheguem às mais degradantes violências, às piores injúrias. Que sejam até ao fim vítimas de si próprios, das suas próprias naturezas e instintos. Nós saberemos manter-nos, serenamente, corajosamente. A consciência nacional, por mais adormecida que pareça, nos julgará – a nós e a eles. E venceremos.» Palavras retiradas do seu Manifesto à Juventude, corria o mês de Março de 1947. O que nos ensinou ficará para sempre.
A pé, ó vítimas da fome
Não mais, não mais a servidão
Que já não há força que dome
A força da nossa razão
Pedra a pedra, rua o passado
A pé, trabalhadores irmãos!
Que o mundo vai ser transformado
Por nossas mãos, por nossas mãos.

(refrão)
Bem unidos façamos,
Nesta luta final,
Uma terra sem amos
A Internacional.

Não mais, não mais o tempo imundo
Em que se é o que se tem
Não mais o rico todo o mundo
E o pobre menos que ninguém
Nunca mais o ser feito de haveres
Enquanto os seres são desfeitos
Não mais direitos sem deveres
Não mais deveres sem direitos.

(refrão)
Já fomos Grécia e fomos Roma
Tudo fizemos, nada temos
Só a pobreza que é a soma
Dessa riqueza que fizemos
Nunca mais no campo de batalha
Irmãos se voltem contra irmãos
Não mais suor de quem trabalha
Floresça em fruto noutras mãos.

(refrão)



3.1.17

Truz-truz avestruz!

Antes de mais, os meus votos de um bom 2017, ano que será muito marcado, directa ou indirectamente, pelas eleições autárquicas lá mais para o Outono, mas onde seguramente muitos outros assuntos, episódios e casos se levantarão a implicar a sociedade e a suscitarem a opinião pública. Entenda-se esta não apenas como aquela que alguns proferem em público, mas como a que um conjunto de pessoas que se empenharão, por motivações naturalmente pessoais ou de grupo, em ter uma opinião e convencer os outros dela. É este o funcionamento de uma sociedade que se mexe. Ainda que, como disse, por vezes segundo interesses próprios que, para quem tem por dever cuidar do interesse de todos, serão válidos quando servirem para, não só melhorar a vida de uma parte, mas da maior parte. Peço desculpa aos meus benévolos ouvintes (ou leitores) mais assíduos pela insistência nesta tecla, mas cada vez me convenço mais de que, se em alguns casos, o que corre mal a um pode correr mal a todos, o que corre mal a todos corre seguramente mal a cada um. O remédio é, como todos deviam ser, preventivo. Já o disse de muitas maneiras, mas pormo-nos na pele dos outros parece-me um dos melhores exercícios de saúde pública para a cidadania.
Há actualmente, e desejo que assim se mantenha, muitas formas de emitir opinião que faça opinião pública. Umas mais reguladas e arbitradas, outras aparentemente mais saudáveis que se auto-regulam com a intervenção de muitos de opinião diversa. E ainda outras, as oficialmente clandestinas que normalmente se confundem com as anteriores e normalmente têm como objectivo destruí-las e levar a sua avante. Cada um escolhe o ambiente onde se sente mais confortável para nelas participar. Mas para escolher é preciso conhecer.
Por esta altura hão-de estar a perguntar-se se terei algum caso concreto em mente. Tenho vários, muitos, demasiados, que sem tempo nem espaço para discutir como deve ser poderiam confundir-se com aqueles que, isso sim, quero criticar. O caso mexe com valores humanos, com a ética e a política. Trata-se da questão da educação sexual formal num sentido geral e não no apenas feio tema do aborto, tão apetecível por certos grupos que, em posições extremas e em extremos opostos, gostam muito de o trazer, lá está, à opinião pública. E é aqui que, independentemente de quem ocupe o cargo nos Ministérios da Educação e da Saúde, fico descansada quando se tratam estes assuntos e se definem os limites destes dois campos que se cruzam. São normalmente medidas tomadas com consulta a técnicos que permitem aos políticos tomar decisões. As ideologias estarão, sem dúvida, presentes em cada um das centenas de técnicos que formem no trabalho que realizam uma qualquer opinião. Isto é a democracia. E também é democracia saber quando se pode falar em nome próprio ou em nome de outros. Quando os filhos frequentarem a escola na idade dos porquês difíceis, que sim são já aos 10 e 11 anos, seguindo programas homologados, as respostas baseadas no juízo moral não serão na sala de aula. Na escola básica o espaço é o da informação. E o quanto mais completa e variada for melhor os preparará para, individual ou restritamente em grupos que se formam por outros e importantes afectos, emitirem, com conhecimento, opinião em temas que não são consensuais. Permitir-lhes este percurso, com espaços e intervenientes próprios é bater-lhes à porta da consciência e retirar-lhes uma tendência que grassa por aí tanto de fazer-se como a avestruz. Eu cá prefiro que os professores saibam, e o mais cedo possível, até onde podem ir em determinados assuntos difíceis, do que não haver limites que, para um lado ou para o outro, não tenho dúvidas nenhumas, não resistirão quando incitados por mais do que o seu profissionalismo a dar o seu, chamemos-lhe assim, bitaite. Isso fica para outros campeonatos.