24.10.12

DISCURSAR

Confesso que atonitamente tenho assistido a um desfilar de verbos por parte do governo, ou melhor, do ministro Gaspar e do PM que começo a pensar que ou vimos todos o «5 prá meia-noite» durante o verão, ou o discurso político passou a fazer uso dos verbos para justificar as complicadas ações ou falta delas, incompreensíveis para o comum dos cidadãos… e até mesmo para outros especialistas em economia. Senão, vejamos. Em notícia de terça-feira passada li assim: «O ministro das Finanças pediu hoje aos deputados do PSD e do CDS para que estes apresentem propostas de corte na despesa pública entre 500 a mil milhões de euros para “calibrar” o aumento de impostos. Uma nova palavra no léxico do governo que falava antes em “mitigar” ou “suavizar” o aumento de impostos.». Mitigar, suavizar e calibrar eis a sucessão cronológica deste pequeno dicionário.

Todos sabemos que o discurso é um dos instrumentos de trabalho do político, muito para além de todas as questões filosóficas ou de análise do discurso. Político é, ou tem sido, retratado e caricaturado a proferir discursos, mais ou menos, inflamados. O uso da palavra que é dita para convencer, aliás razão de ser da linguagem – a criatura fala para obter uma resposta – é o seu uso mais corrente. Até mesmo quando parece limitar-se a informar, nada mais se está a fazer do que tornar mais claras determinadas ações ou o esclarecer o desenrolar de determinados factos. É na escolha das palavras, ou da sua ordem nas frases, que o estilo se altera de emissor para emissor, o que faz muitas vezes com que a mesma coisa, ou melhor conteúdo idêntico, dito por diferentes emissores possa parecer outra coisa e convencer em diferentes graus diferentes recetores. Normalmente quando as palavras não correspondem às ações dos próprios ou às intenções para com os outros, e sobretudo quando aplicado a políticos, temos o exercício do conceito de demagogia.

Mas vejamos os três verbos usados pelos membros do governo central a propósito da contrapartida às medidas que aumentam os impostos de uma forma tão aterradora. Mitigar significa reduzir riscos ou minimizar efeitos. Suavizar é, como se vê logo, tornar suave. Nem mais nem menos suave, é tornar suave. Dois verbos quase poéticos, o primeiro, então, chega a ser musical. Já calibrar me parece muito mais técnico, mais à altura do que é, afinal, o ministro Vitor Gaspar, especialista em números e medidas com eles. Ora em «calibrar» encontramos as seguintes definições: medir o calibre de; dar o calibre conveniente a; adicionar ou retirar ar de um pneu para que a pressão interna fique adequada; ajustar um equipamento para que ele funcione conforme especificado. Das quatro definições não sei, muito sinceramente, ao que querem fazer do aumento de impostos…

Medir o calibre ou dar o calibre conveniente ao aumento de impostos, parece que é obrigação do ministro das finanças: saber o que fazer, face às implicações do calibre das medidas propostas, até pela amostra dos resultados na vida dos portugueses às que já foram implementadas nesta área. Já a definição que tem a ver com ar de pneus me parece mais próxima do discurso das gorduras do estado. Parece-me também é que esta como se diz na definição terá a ver com “pressões internas”, e isto de resolver as nossas vidinhas é muito mais difícil do que resolver a dos outros, claro. Resta o ajuste do equipamento para que ele funcione conforme especificado. Será isto um sinal de remodelação governamental, e calibrar é a senha que o das finanças enviou ao primeiro? Tudo em linguagem clara, correta, sem que se lixem à mistura, porque isso do lixarem-se não é verbo, é pena que quem anda a pagar estas medidas sente muito bem na pele e nem precisa que lhe digam que é o que lhe estão a fazer… Ficamos na dúvida.

REZAR - 16 de Outubro

Nesta semana que passou fiz uma coisa que não fazia há muito. Fui à missa. Igreja católica na cidade de Évora. Um homem bom que conheci e com quem convivi alguns anos morreu, velhote, e fui à missa que assinalava o sétimo dia da sua morte. Não senti que lhe tivesse servido já de muito este meu gesto, mas cedi afinal à tentação de aliviar a minha consciência com esta espécie de homenagem. Se eu fosse sempre à missa a coisa diluir-se-ia na banalização da prática, mas aquela hora que usei ali serviu-me para pensar nele, na vida, dos outros e claro também na minha. Egoísmos…

Igreja cheia com novos e velhos, mulheres e homens. Apresentação powerpoint de orações, que eu ainda sabia de cor, com ligeiras alterações musicais e a roçar o modelo de entretenimento, o que só mostra atenção ao que se passa no resto do mundo. Parece que o dia também era excecional para o próprio calendário e agenda interna da Igreja Católica o que justificou o número de padres a celebrarem o ofício, as vestes de festa, a incursão do turíbulo por entre os fiéis e pelo menos uma assistente de ocasião… talvez houvesse outros como eu. Enfim, senti-me bem mas de visita num lugar a que não pertenço mas ao qual voltarei as vezes que forem precisas.

Nem de propósito, mas por coincidências em que acredito, tinha estado durante a tarde com um casal de idosos que viveu uma boa parte da sua juventude em Évora. Ela professora primária reformada, ele sei que pintor nas horas vagas. O senhor quer oferecer uma obra sua ao município e pediu-me que, antes de começar a pintá-la o visitasse para que conversássemos um pouco e me mostrasse os seus quadros. Perante isto, e aproveitando uma ida em trabalho à capital, não pude deixar de fazer um desvio, até como reconhecimento deste seu gesto para com a Cidade que será mais uma vez retratada. Era o mínimo. Foi um bocado de tarde bem passado que me confirmou o quanto podemos aprender com quem vive neste mundo há mais um pedaço de tempo do que nós. 

Entre um e outro assunto falou-me o artista de duas obras que acabara de pintar e que, na sua visão do mundo, representavam, em par, as duas atitudes que ele via restarem a quem vive este presente que rezará, certamente, para a história como um período negro. Uma idosa a rezar, um jovem de braços cruzados. Rezar e esperar. Afinal espécie de sinónimos, mesmo que em sentido figurado rezar possa ter o significado de resmungar.

A impotência que os cidadãos portugueses vão sentindo perante notícias que parecem desabar sobre eles a um ritmo com cadência demasiado frequente, a par de enérgicas manifestações que enchem avenidas e cidades, reflete-se também um pouco por cada paróquia e família em pesadas esperas. Esperas em que as palavras de ordem são substituídas por rezas, tudo vozes que se não chegarem a uns talvez cheguem ao Céu. Nem umas nem outras parecem, no entanto, estar a segurar aquela que costuma ser a última a desaparecer: a esperança. E, talvez pior do que isso, é não se estar a ser capaz de explicar a estas pessoas alternativas, porque esta foi a última que os foi convencendo, pelo menos à maioria que se deu ao trabalho de demonstrar que acreditava nela, votando. Que mais pedir-lhes agora?

13.10.12

IMPLANTAR

Na manhã do dia 5 de outubro de 1910, o embaixador da Alemanha saiu à rua com uma bandeira branca a pedir tréguas para que os cidadãos estrangeiros residentes em Lisboa pudessem sair da cidade. Grupos de soldados monárquicos, julgando que a bandeira branca significava que os oficiais se tinham rendido, decidem largar armas e confraternizar com os republicanos. Implantou-se definitivamente a República, com a ajuda deste erro de comunicação.
 
No ano em que comemorar a Implantação da República parece ser um luxo a que deixaremos de ter direito no futuro, muito tem implantado o Governo de Portugal! Implantou bandeirinhas de Portugal nas lapelas dos senhores ministros e restantes membros do executivo governamental. Implantou medidas de austeridade que parecem estar a ser feitas à semelhança dos iogurtes light que persisto em comer e que não têm tido o efeito anunciado ou previsto, não sei à base de que estudo científico-académico, na redução das gorduras. Implantou também uma espécie de caos nas mentes e almas mais extremistas que, em meu entender, poderão ser parte de todo um programa de implantações em que as contestações mais violentas virão a reverter em favor do próprio governo. É que eu continuo a ouvir dizer por aí que do que nós precisamos é de um outro Salazar que “ponha mão nisto”. Aliás, até já se viram figuras relevantes de um dos partidos mais alinhados com a contestação na rua serem insultados nas próprias manifestações. Como naquela historieta, que o meu avô me contava como se tendo passado com ele, de em plena procissão ter atirado com uma pedra ao ar, ter fugido e a pedra ter vindo aterrar na sua própria cabeça, como que por milagre.
 
Se há um milhão de cidadãos que persistentemente sai à rua para contestar, implantando um hábito que parece-me ou cairá num extremo da banalização rotineira, ou num outro extremo da violência que mata gente, haverá cerca de nove milhões de portugueses que continuam encurralados entre várias movimentações e implantações, a assistir aflitos ao desenrolar de um filme em que contra vontade têm de participar. Recusaram um governo socialista, elegeram um de coligação de direita que parece estar a desiludi-los (digo parece porque não sei quantos dos que o elegeram assim o pensam) e assistem a piruetas de discursos e moções que continuam a querer atingir o partido desse governo anterior, em requintadas manobras de campanha para umas eleições que, mesmo que alguns esperem para breve, normalmente demorariam três anos a acontecer. Implantou-se por isso um clima que vai desde o inovador “se estar nas tintas para as eleições” ao costumeiro “rua, já!”.
 
E implantou-se um ódio aos políticos, como se neste governo eles não fossem relativamente menos dos que os “ministros-técnicos” que o PM escolheu para ministérios estratégicos. Implantou-se um ódio aos partidos como se não fossem estas associações lugares em que se reúnem cidadãos oriundos da sociedade civil, pessoas de boa ou má vontade, como as há em toda a parte, numa semelhança que, apesar de si mesma, não faz de todos iguais uns aos outros, nem mesmo dentro do mesmo partido.
 
Há 102 anos um representante da Alemanha em Lisboa, tão por acaso como Colombo descobriu a América, tornou a Implantação da República um acontecimento menos sangrento do que poderia ter sido. Hoje já não precisamos da alemã Merkel para instilar os ódios porque o PM se encarrega de, não tão por acaso quer-me parecer, criar o ambiente propício a que algo de mais tenebroso possa acontecer. Implantou-se em mim um receio de que tudo isto dê para o torto ainda mais torto, aquele em que morrem pessoas e em que ao clima de violência suceda uma terrível opressão de que os relatos históricos e a memória dos ainda vivos nos devem lembrar de quando em vez. E esta é a vez.

3.10.12

INSTRUMENTALIZAR

Hoje queria falar-vos da habitação social em Évora, área gerida pela empresa exclusivamente municipal Habévora. A propósito deste assunto, o verbo “instrumentalizar” aplica-se por ter sido aquilo que vi fazer a cidadãos fragilizados, pela segunda vez na minha vida de vereadora numa reunião pública de Câmara, por parte da bancada da CDU. Arrogando-se da exclusividade com a preocupação dos mais desprotegidos, esta força política, que esteve aqui no poder quase três décadas, durante os quais pouco ou nada fez em termos de habitação social, vem agora tomar as dores de alguns cidadãos beneficiários de uma casa de renda apoiada. Estes cerca de 30 munícipes que participaram na última reunião pública de câmara estão a ser confrontados com a atualização dos valores das rendas a 45% dos inquilinos da Habévora, num gesto que não apenas faz cumprir a lei, como repõe a equidade face a mais de metade de outros tantos cidadãos que pelo mesmo benefício já têm as suas rendas atualizadas. Eu conto de forma breve o porquê da situação.

Quando em 2006 foi criada a empresa municipal e passou a gestão das casas até então geridas pelo IGAPE para a Habévora fez-se a atualização de tabelas de rendas daquelas que não foram então adquiridas pelos próprios inquilinos. Aos já residentes que mantiveram a situação de arrendamento foi-se adiando essa atualização, correspondendo aos pedidos e dificuldades sentidas, e equacionando em conjunto que mais cedo ou mais tarde se acertariam gradualmente os valores. Fizeram-se, fez a empresa municipal, obras de manutenção, todas as receitas têm sido investidas na melhoria e construção de mais casas, fez-se uma requalificação profunda na freguesia da Malagueira, no conhecido Bairro da Cruz da Picada, e que terminou recentemente com uma gestão tão eficaz que, ao contrário do que infelizmente nos habituámos a ver, teve um custo final inferior, em cerca de meio milhão de euros, ao inicialmente orçamentado. E durante esta meia dúzia de anos, as casas que foram atribuídas a novos inquilinos tiveram logo o valor das rendas atualizadas, criando uma óbvia discriminação entre cidadãos que, ainda assim, não têm levantado questões. Era urgente repor esta situação e os inquilinos antigos foram avisados atempadamente desta necessidade, em comunicações constantes ao longo do processo em que cada situação foi explicada.

É óbvio que esta não é a melhor altura para um português passar a pagar mais de renda de casa. Aliás, atrevo-me a dizer, que nunca é uma boa altura para se pagar mais. Mas também é nestas alturas em que todos, embora sempre uns mais do que outros, estão mesmo aflitos e em risco de ver as suas condições de vida reduzidas a uma miséria de má memória, que os ânimos se exaltam e, infelizmente, surtem mais efeitos os apelos à contestação do que à solidariedade. E a CDU aproveitando a situação e instrumentalizando estes cidadãos que, em reunião pública, uma situação oficial de exposição aos outros, se atropelam para expor casos particulares da sua própria intimidade familiar, mostrando se calhar situações que gostariam de ver resolvidas sem ambiente de palmas, “bocas” ou piadas que depois se renegam. Uma espécie de circo de horrores que não serve a ninguém, já que as situações se resolvem aplicando as medidas mais justas possíveis e tratando cada caso com a solução possível e aplicável.
E os representantes que foram eleitos pelos munícipes de Évora para aquela bancada deixaram de fora na sua carteira de preocupações as cerca de 1000, sim mil, famílias que em Évora estão à espera de uma oportunidade para terem acesso a uma casa de renda apoiada. Gente que até pode auferir rendimentos inferiores a estes antigos inquilinos e que paga prestações em casas que começou a comprar ao banco, ou tem rendas com valores de mercado e não social. Ao propor-se a perpetuação desta situação está-se a colocar mais uma instituição que presta um serviço social, a Habévora, em risco, impedindo que se invista em novo parque habitacional de casas recuperadas, por exemplo, ou negociando com proprietários que têm as suas casas para arrendar, apoiando uma parte da renda, outro exemplo.

Mas a isto também se chama solidariedade, algo muito mais difícil de ser trabalhado com as pessoas desesperadas, do que fazê-las vir exporem-se, instrumentalizando-as, como ilustrações que exibem retirando-lhes a dignidade, quando às vezes a alguns é só mesmo isso que resta.