28.12.11

Melhor é o ano tardio, do que o vazio

Não me apetece nada mudar de ano. Pela primeira vez, o momento da passagem de ano, que tem para mim um significado especial, com o qual não vos maçarei, desta vez aparece-me como uma espécie de “chatice” que tem mesmo de ser. São tantos os maus agoiros, e tão prováveis que se concretizem, que parecem apelar a que se adormeça a 31 de Dezembro deste ano e se acorde só em 2013. Bem sei que esta espécie de “síndrome bela-adormecida” poderia trazer dissabores e a falta de esperança que se generaliza, e que quem nos governa também não vai dando, poderia vir a fazer falta viver um dia atrás do outro o lento retrocesso que se anuncia. E o choque do despertar seria ainda pior.

Pois o melhor é mesmo mantermo-nos de olhos bem abertos e não ceder a estas tentações egoístas. Vamos lá andar para a frente, a reboque do Tempo, e fazendo sempre o nosso melhor para que, mesmo parecendo sem forças para contrariar rumos e marés, se ir trabalhando para evitar naufrágios e encalhamentos. Esta espécie de marcar passo, em ritmo de Procissão de Senhor dos Passos, parece-me melhor do que ficar à margem a ver passar a caravana, ou seguir aqueles conselhos que nos mandam mudar de zona. Afinal, «melhor é o ano tardio, do que o vazio». Há pois que ir fazendo por nós, a quem e quando é de fazer por nós; e fazer para os outros, a quem é de fazer para os outros.

Bem sei que às vezes parece que há para aí vozinhas que nos mandam desistir. Algumas até são grandes vozeirões que, em frente a um micro, não contêm as palavras em rascunho que lhes bailam na ideia. Mas há que perdoar-lhes, porque se bem sabem o que pensam, não medem o que dizem nem como dizem. Os conselhos dos nossos atuais governantes lembram-me o que escreveu uma vez Almada Negreiros, um moderno do século XX, artista mais ou menos protegido de Salazar e que, ainda ciente do humor, lá foi dizendo: «Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades!».

De facto, as palavras de ordem de quem nos governa têm sido desastrosas, até porque se escondem numa espécie de transparência que, à partida, parecia algo de louvar. No meu entender, tanta transparência assim “vira” quase pornografia. Um pouco de decência nunca fez mal a ninguém, já que por vezes mostrar tudo implica dar-se azo a olhar sem ver, não perceber o que é importante do que é acessório e, as mais das vezes, afasta o bom observador e retém apenas o olhar do basbaque. Popularucho e pouco sério.

Este ano que aí chega é pois um ano de resistência. Não de inércia, nem de defesa contra o ataque, mas como também se define no dicionário, usando as forças que nos restam para reagir contra açãoas forças negativas que nos vão surgir pelo caminho. Vai ser difícil, mas não nos poderão acusar de que a nossa resistência será o bloqueio de outros.

Boas saídas e melhores entradas e até para o ano.

23.12.11

A desgraça de Portugal dá-lhe três cheias antes do Natal


Porque esta é a última crónica antes do Dia de Natal, lá procurei nas minhas fontes um provérbio que à quadra se referisse. E não é que encontrei um que a modos que me lembrava a situação de muitos portugueses face à austeridade instalada? Dizia assim a primeira versão: «A desgraça de Portugal dá-lhe três cheias antes do Natal». Das outras versões, uma parece confirmar o sentido desta, mas a outra parece dizer precisamente o seu contrário.
Confusa com estas variantes, tentei vários exercícios de interpretação, que foi coisa que eu durante toda a minha vida tenho feito, enquanto professora de literatura, mas não só. E não é que cheguei à conclusão, talvez um bocado ficcionada porque isto nas crónicas pode ter destas liberdades, de que há nestas três versões uma gradual atualização, um upgrade como agora se diz! Vejamos as versões do provérbio pela tal ordem que acabei por lhes dar: 1º «A desgraça de Portugal dá-lhe três cheias antes do Natal»; 2º «Se queres a desgraça de Portugal dá-lhe três cheias antes do Natal»; e 3º «Mal vai Portugal se não há três cheias antes do Natal».
Ou seja, de uma constatação sobre a meteorologia, que sempre deu um jeitaço a quem usa da sabedoria proverbial para se orientar no mundo rural e agrícola, a sentença popular evoluiu para uma erudita versão irónica sobre uma certa maneira de olhar para Portugal. Uma certa maneira até fatalista. Senão vejamos…
O provérbio confirmado pelas duas versões semelhantes parece atestar que uma das desgraças de Portugal são as três cheias antes do Natal. Este ano ainda não dei por nenhuma grande cheia e ainda bem. Se calhar houve-as e quem me ouve há-de estar a dizer que eu vivo num mundo aparte e que havia de ter à minha porta a desgraça que lá têm à deles. O que é certo é que até hoje, dia em que escrevo estas linhas e faltam uns dias para o Natal, não houve assim notícia de grandes inundações provocadas por amostras do Dilúvio. Outras notícias de outras enxurradas, e mais de três, e algumas que têm a ver com Natal e férias, têm sido muito noticiadas e comentadas, e têm-nos feito a alguns mais desgraçados, mas enfim, isto são desabafos. E nem ouso dizer que existiram esses fenómenos porque se quis a desgraça de Portugal…
A última versão «Mal vai Portugal se não há três cheias antes do Natal» faz do nosso país um lugar onde a desgraça é uma espécie de estado civil da nacionalidade, e nem se é bom português se não se souber e sentir na pele o que é um trio de desgraças (e antes cheias que outras piores) para comemorar o nascimento do Menino como uma espécie de final o mais feliz possível a rematar o ano civil. Para quê lamentarmo-nos de mais alguma coisa se conseguimos ultrapassar as malfadadas três cheias da praxe?!  
Esta convivência com a desgraça, e muito em particular com as cheias, que parece o provérbio ditar-nos, entrega-nos ao lamento e ao conformismo, o que afinal só nos prepara para irmos levando com elas e as ir encarando como um património imaterial, mais natural porque meteorológico, muito próprio, e que importa acarinhar como parte intrínseca de um modo de ser português. Eu cá prefiro mesmo achar que estamos a ser castigados através da intempérie por erros de sempre, lá do tempo de Afonso Henriques, e que a expiação um dia terminará. Não sabemos é quando, porque as coisas já pareceram melhor encaminhadas…
A lógica de tudo isto, retirando a explicação geográfica e meteorológica, científica portanto, e que deve existir mas eu desconheço, a lógica deve ser a mesma do Fado e da Saudade. Explique-a quem o canta e quem a sente, se conseguir! Entretanto, um Feliz Natal a todos os ouvintes e até para a semana! 

13.12.11

Ano de bugalhos, ano de trabalhos

Nas festas de aniversário para além de darmos os parabéns aos aniversariantes, muitas vezes recordamos episódios e momentos vividos em comum. Às vezes também falamos do Futuro, muitas vezes mais em tom de desejo do que em planos concretos. É assim com pessoas, mas também com instituições. Quando é com instituições, o convívio faz-se entre instituições, muito embora saibamos que estas só se fazem com pessoas e as histórias trocadas sejam episódios de vidas humanas. No último aniversário de uma instituição em que estive presente, também em representação da Câmara Municipal, fiz pois um pequeno balanço dessa minha relação com instituições como a aniversariante que, no caso, era uma associação cultural que vive na nossa Cidade há 111 anos, a SOIR, Sociedade Operária de Instrução e Recreio Joaquim António d’ Aguiar. Neste último ano tiveram estas associações comigo e com a Câmara Municipal uma relação difícil, constante mas agitada, desencontrada por vezes mas com um respeito que nestes momentos de festa se reata, num gesto que diria quase natural de cordialidade, substantivo que tem na sua origem a mesma raiz de coração. Foi um «ano de bugalhos», pois como diz o Povo «Ano de bugalhos, ano de trabalhos». Trago-vos pois o último troço da minha conversa, em forma de discurso, que com eles tive na sua festa de aniversário, e que diz assim:
«Não cedemos nunca aos coros de tantas vozes que os senhores bem conhecem e que, se calhar de forma mais em surdina e sussurrada do que as que vos apoiam, vos vão chamando de “subsídio-dependentes” e reclamando que acabem convosco. São esses os que nunca assistem aos vossos espetáculos, os que mesmo em dias em que vários de vós têm em simultâneo atividades em diferentes áreas continuam a dizer que não se passa nada em Évora. São esses que, numa concordância que seria fácil se quiséssemos ceder a populismos, nós também combatemos, porque sabemos que sem conhecer é muito fácil falar, mas também é fácil errar juízos. E também é por isso que mesmo não seguindo princípios ideológicos ou de interesses de grupo, que muitas vezes orientam as atividades de muitas das associações e instituições deste Concelho, este nunca poderia ser por si só um fator a ponderar por nós. Pena é que muitas vezes na contestação ao desempenho das minhas funções essa, pareça pelo menos, ser uma forma de atuação. Para mim a Cultura não tem cor política, nem valores discriminatórios, e respeita a variedade e multiplicidade de gostos de quem a faz e de quem a recebe, apesar de eu achar que a atividade artística, uma das partes de fazer Cultura, tenha sempre um triplo papel estético, ético e político.
Bem sei que o que digo são só palavras a fazerem falar as ideias. Os gestos, muitas vezes, traduzem-nas a condizer, outras vezes não, sem que por isso se imputem culpas a quem as diz e tem, ou a quem as ouve e delas discorda. Mas o caminho que nos espera para percorrermos será sempre mais fácil, ou menos difícil, se a boa-fé que todos temos andar lado a lado num mesmo objetivo: servir a comunidade, acreditando no que fazemos.» Foi assim o final desta festa de aniversário.

7.12.11

Mais do que o dado, vale a maneira de o dar

Nunca aqui, no espaço destas crónicas, me tenho referido de forma direta a pessoas individualmente. Mas hoje vou fazê-lo, falando do Mestre João Cutileiro, um pouco nos mesmos termos com que a ele me dirigi no passado dia 25 quando da sessão solene comemorativa dos 25 anos de Évora Património Mundial. Fi-lo a propósito da sua oferta à Câmara Municipal, e à Cidade portanto, da conceção da medalha também comemorativa da efeméride. E, na lógica que também tem pautado estas minhas crónicas, o provérbio que achei, o mais pertinente pela forma como todo o processo decorreu, diz assim: «Mais do que o dado, vale a maneira de o dar». Não que ache que a medalha não vale. Para mim vale, também esteticamente. Mas porque sei que não é numa medalha que cabe e se acaba a obra de um Mestre. Também sei que os elogios a alguém também não se acabam nas palavras que sobre esse alguém são ditas. Aliás, já Shakespeare disse uma vez «falais baixo se falais de amor», numa clara alusão ao pouco alcance das palavras na expressão de sentimentos mais nobres.

Se o Centro Histórico de Évora é há 25 anos, oficialmente, Património da Humanidade, Évora já era e será sempre a Cidade de João Cutileiro. Falar de Évora obriga-nos sempre a falar do Mestre. E eu gosto disso. Cutileiro, entre mulheres, árvores e cavalos, esculpe na pedra e alinha na folha o perfil da Cidade onde, sem ornamento inútil de sinalética, reconhecemos de imediato Évora. Podia até não sê-lo, num trocar de voltas com que o seu espírito brincalhão, certeiro e não menos das vezes acutilante – o nome também o moldou - tantas vezes nos desafia. Mas o seu traço evoca imediatamente esse lugar, e é por isso que um não pode viver sem o outro.

Pedir a João Cutileiro que oferecesse a Évora por altura deste aniversário a medalha comemorativa pareceu-me natural e foi sem espanto que o sim chegou de imediato, acompanhado de uma condição também ela natural – que a medalha assentasse em cubo de pedra, pois claro! Também seria natural, mas correríamos sempre o risco de uma surpresa, que fosse redonda. Quem melhor do que ele para arredondar as coisas que saem das suas mãos? Faltava ainda ver o que nela esculpiria. Foi por isso emocionante ver no molde cor de tijolo a figura do cavaleiro, e perceber que a lenda deste homem intrépido, ainda que como qualquer figura de ficção com uma conduta pejada de detalhes obscuros, o Geraldo, vindo de fora para aqui tentar a sua sorte e acabando por ajudar à reconquista do território, permanece uma personagem inspiradora. Na medalha de João Cutileiro podemos ler ainda, e misturando a numeração romana com o alfabeto, “dois mil anos de história”, numa referência tão fina como o traço de Cutileiro aos tempos anteriores mesmo à Liberalitas Julia.

Se Évora é há 25 anos património mundial, Évora enquanto inspiração é intemporal. E tal como a obra de arte, pelo tempo que permanece se transforma em obra-prima, a relação de Évora com o Escultor sê-lo-á por mais de 2000 anos de história do Futuro, e muito para além da medalha. Mas esta é uma marca deste ano, nesta história de João Cutileiro e de Évora.

29.11.11

Fui a casa da minha vizinha, envergonhei-me; vim para a minha e governei-me

Cada vez estou mais convencida de que os problemas quotidianos que se colocam e se propõem ser resolvidos ao nível das chamadas políticas de proximidade, como são as exercidas pelo poder local, tantas vezes, diria mesmo na esmagadora maioria das vezes, são casos de má vizinhança. Podemos até chamar-lhe falta de sentido de cidadania, incivilidade, mas pela quantidade de vezes que os problemas surgem entre gente que até preenche estes, ou parte destes, requisitos, leva-me a pensar que é mesmo a má relação de vizinhança que estraga tudo. Também é certo que uma boa educação, e falo no sentido não frívolo das boas maneiras, apesar de com essas também se evitar muito conflito, mas sim numa educação para valores éticos, permitem a convivência em sociedade. 

A este propósito encontrei um ditado popular, quase narrativo, que diz assim: «Fui a casa da minha vizinha, envergonhei-me; vim para a minha e governei-me». Esta minúscula história de vida, deixou-me cheia de curiosidade. O que diabo se vai fazer a casa de uma vizinha que nos deixe envergonhado e nos impele a realizarmos nós mesmos tal tarefa? Deixando de lado as brejeirices que reconhecemos ao gosto popular, muito mais do anedotário do que do provérbio da voz do povo, esta lição refere-se a quê? Dirige-se a quem? Um mistério que nem pretendo resolver, mas que me permite, ainda assim, tecer algumas considerações sobre isto da “vizinhança”.

Como em quase todos estes textos, ainda que formas simples, os sentidos são plurais e as interpretações podem multiplicar-se com a mesma legitimidade com que se avançam argumentos. A mim agrada-me pensar que a ida a casa da vizinha poderia ter origem, ou dar origem, a alguma situação conflituosa e que o confronto com as circunstâncias de atuação ou situação do outro, a vizinha neste caso, teria impedido que o “eu” do provérbio se travasse de razões logo ali, adiando-se ou melhor, resolvendo-se também logo ali o problema. São tantas as circunstâncias em que, sem sopesar factos e argumentos, se parte logo para o conflito e para impor o seu fim sempre às custas do outro, ou, como não raras vezes, a quem tenha de vir de fora resolver a questiúncula governando as partes em conflito, que o final feliz deste provérbio leva-me a elegê-lo para o meu Top Ten de máximas e sentenças.

Acho este provérbio uma lição da vida em comunidade, em que as relações se tornam possíveis porque cada um, mesmo com o vizinho ali ao lado para o bem ou para o mal, se governa num sentido positivo, já que a vergonha normalmente implica que se reencontre um bom caminho, distinto do que se tomava antes.

Estas viagens de ida e volta, entre a minha casa e a do vizinho, parecem levar o tempo necessário para refletir, ponderar posições e encontrar soluções. Uma verdadeira auto-mediação que releva do mais alto sentido de responsabilidade de quem conclui que procurar primeiro em si a resolução de conflitos, não só nos impede de nos envergonharmos perante os outros, mas sobretudo perante nós mesmos, como nos permitirá, mais cedo ou mais tarde, impormo-nos regras de conduta que só servirão de exemplo a quem se deslocar à nossa casa e decida comportar-se de igual forma. Pense-se nisto a outras escalas e veja-se como teríamos todos mais momentos na vida para sermos felizes, ou pelo menos não tão infelizes, já que como se sabe os tempos não vão permitindo muitos contentamentos.

23.11.11

A verdadeira afeição na longa ausência se prova

Fala-se ultimamente também muito em afetos. Pergunto-me se não é um sinal de tentativas, não naturais mas culturais porque pela mão do Homem, de encontrar o equilíbrio necessário a um ecossistema social que ameaça descambar. E às vezes começa-se pela linguagem, para chegar ao sentimento e acabar no gesto.
Li esta semana uma citação de Florbela Espanca que circula pelas redes sociais, extraída da sua correspondência e datada de 1916, que diz o seguinte: "Eu não sou como muita gente: entusiasmada até à loucura no princípio das afeições e depois, passado um mês, completamente desinteressada delas. Eu sou ao contrário: o tempo passa e a afeição vai crescendo, morrendo apenas quando a ingratidão e a maldade a fizerem morrer." Confesso que desconhecendo o contexto de tais afirmações da poetisa, se possa no entanto entendê-las como reflexo da angústia pessoal e sentimental que caracterizou a sua vida.
Afinal, quando falamos de afetos falamos sempre de subjetividades e sentimentos, pelo que quando assistimos a um discurso de um líder político ou a alguém que não nos é próximo e com quem temos só, e eventualmente, uma relação profissional – ou seja uma relação que decorre de cada uma das profissões que cada um exerce e nada mais – possamos estranhar que se invoquem os afetos. Parece linguagem que se esperaria mais pragmática e menos poética.
Pondo, então, de lado qualquer referência ao discurso amoroso que, como dizia o velho mas tão atual Eça, é coisa da poesia aninhada nas saias já enxovalhadas das eternas damas que canta, fiquemo-nos pelo afeto no discurso mais prosaico. Julgo que a expressão verbal dos afetos seja um caminho para se falar diretamente das pessoas enquanto “não-números”. Se os números são importantes e espelham realidades, eles, de facto, refletem a racionalidade que vulgarmente se adjetiva de fria e distante. A alguém que evoque a afeição sem perder de vista a razão tem, forçosamente, que se dar tempo para se saber se não é apenas figura de retórica e se os sentimentos se transformarão em atos ou se permanecerão unicamente no domínio do discurso. A ação de um político que inspire confiança, ainda que pelo discurso possa evocar os afetos, não pode, no entanto, pôr de lado a razão na ação, obrigando-se à ponderação, à moderação e à não transformação da paixão em não-solução ou solução inviável ainda que sentimentalmente atraente.
Também devo acrescentar que já ouvi ao vivo e expressamente dirigido a mim um discurso sobre afetos que me deixou absolutamente perplexa. Tratava-se de falar de verbas e contrapunha-se a sua ausência com o tal apelo aos afetos, dando afinal como resultado desta equação, aparentemente tão sentimental, que se esse resultado não se traduzisse em euros então os afetos também não estariam lá. Não querendo também misturar alhos e bugalhos, parece-me que estas buzzwords ou palavras da moda, como tantas outras que por aí surgem, precisam de tempo para passarem a ter conteúdo e refletir ação, deixando de ser ornamentos. É como diz o provérbio «A verdadeira afeição, na longa ausência se prova».

16.11.11

Quem sai aos seus não degenera

Quem tem tido a paciência de me ir ouvindo ou lendo nestas crónicas, já terá reparado que a questão das gerações mais jovens é uma preocupação minha. Não só por razões pessoais, porque tenho filhos, mas porque lido no dia-a-dia com situações sociais várias em que vários ciclos, sobretudo de más práticas, tantas vezes não se conseguem quebrar. Por outro lado, e vivendo numa cidade de média dimensão, vou-me dando conta de fenómenos que têm maior visibilidade quando as relações entre as pessoas se tornam estreitas por força da proximidade, uma tão proclamada vantagem dos meios mais pequenos.

Tem esta minha crónica a ver com as relações familiares que assumem, na continuidade, relações de hereditariedade fora do círculo familiar, em que alguns nomes de família são quase bilhete de identidade para certas competências e passaporte para determinadas funções. E, não raras vezes, esses nomes são até mais pomposos, pouco usuais ou mesmo estrangeirados, remetendo para o anonimato os numerosos Silvas, Santos ou outros, com aparente prejuízo destes.

Eu até acho interessante e engraçado o folclore de cada família, muitas vezes expresso em costumes idênticos, datas sempre festejadas, assobios comuns a gerações e gerações, que dão precisamente, e no seu sentido por isso folclórico, identidade própria àquela ou a esta família. Também é natural que o convívio e a genética propiciem aptidões comuns e, por isso, vocações semelhantes.

Confesso, no entanto, que acho este fenómeno assustador. Para mim é assustador. Não só me imagino a carregar uma espécie de fatal destino das gerações anteriores, como me parece que o lugar da autodeterminação de cada indivíduo de tais tipos de famílias se torna estreito e apertado. Alguns considerá-lo-ão aconchegante e confortável. Nada contra. Desde que não obriguem a que outros, fora deste esquema, tomem essa regra interna e sua, e usem o nome como palavra-passe para entrar em lugar onde o direito de admissão não é reservado a privilégios desse tipo. Também é certo que, mesmo querendo permanecer no anonimato e não desejar usar de forma alguma este tipo de prorrogativa, a própria sociedade, ou comunidade, por vezes se encarrega, sem que ninguém lho encomende, de fazer este tipo de segregação. Suponho que será difícil qualquer Champalimaud, Kennedy ou Grimaldi, em determinados meios, passar incógnito, mesmo não tendo interesse nenhum em ser reconhecido por esse facto. Até porque estes “clãs”, chamemos-lhe assim sem nenhum menosprezo, muitas vezes se cruzam com outros, mais ou menos coesos, que acabam por se tornar “chegadiços” quando são menos sonantes, ou engrossar com mais “seiva boa” uma árvore genealógica de grande porte, e aqui estou a ser um bocadinho irónica.
E o que é para mim mais impressionante, é que este sistema também se dá em meios normalmente mais avessos a estas práticas de espírito monárquico, como o é, por exemplo, o meio artístico. Veja-se por exemplo o caso dos portugueses circos Chen e Cardinali. E haverá seguramente outros exemplos, quer a nível internacional, quer a nível local.
Mas, enfim, o que me leva a falar deste assunto é o ditado que diz «Quem sai aos seus não degenera», o que me parece uma terrível condenação profética que sugere, nalguns casos, mais valer até não saber, nem dizer, de que terra se é! O risco que, nas terras mais pequenas, se corre por se ser avaliado à nascença só pelo nome é uma herança que acaba por se tornar injusta para todos. Se joga a favor, exclui os que não o têm, se joga contra condena quem o carrega. Preocupante…

9.11.11

A inveja produz injúria e gera ódio

Há dias fui assistir a um jogo de futebol entre juniores, em fase de preparação para o campeonato distrital. O jogo decorreu em concelho limítrofe a Évora e a esmagadora maioria dos adeptos era-o da equipa local. Confesso que o jogo da rapaziada me agradou. Não sendo propriamente fervorosa espectadora de futebol, já tive o privilégio de em 2004 assistir a um Portugal - Espanha ao vivo e, confesso, vim de lá muito mais impressionada com o espectáculo fora do relvado do que dentro. A quantidade de jogadores que, quando não tem a bola, pouco se mexe revelou-me uma realidade que as imagens de televisão, seguindo sempre a bola e quem a tem nos pés, não me deixavam perceber.

Também naquele sábado acabei por ficar muito mais impressionada com o espectáculo da meia centena de adeptos nas bancadas do que com o jogo. Mas muito mal impressionada. Presumo que em se tratando de jogadores adolescentes, 16-17 anos, muitos daqueles fossem pais ou familiares dos jogadores. Pois cheguei ao fim a pensar que aqueles pais não mereciam os filhos que ali estavam. Os insultos ao árbitro e juízes de linha (e fiquei a saber pelos moços que também aos próprios jogadores), com palavrões de fino recorte vicentino, foram tantos que eu duvido que algum dos rapazes que durante 90 minutos se esfalfaram a jogar à bola quisesse ser visto na companhia de tamanhos “malcriadões”, ainda para mais com idade para serem seus pais (e se calhar eram!). Por outro lado, a impassibilidade dos insultados deixou-me satisfeita e até, confesso, um bocadinho vingada. Eu explico.

Sendo politicamente activa há 2 anos, em cargo com poder executivo, o que me dá direito a ser insultada quer individualmente, quer quando metida no “saco” de todos os políticos, aquele confronto com juízes e árbitros fez nascer em mim uma enorme onda de solidariedade para quem como aqueles homens se prestam a uma actividade que tem tanto de útil como de impopular. Um verdadeiro serviço público em prol da existência, gostemos ou não, do decorrer daqueles 90 minutos. Levando mais longe as minhas meditações, perguntava-me até se não seria a inveja de não estarem ali, dentro das 4 linhas em vez de estarem nas bancadas a beber umas “minis”, que os faria ser tão activos na verborreia insultuosa. O que o Povo diz sobre estas manifestações é que “a inveja produz injúria e gera ódio” e eu acho que a coisa não deve andar longe disso.

De maneira que, tal como aqueles senhores árbitros que, quando lhe vestem assumida e empenhadamente a pele, se transfiguram e passam a ser motivo de insulto, sinto que quem se preocupa com os destinos de uma comunidade, optando ou propondo rumos na sua governação, exercendo por isso actividade política efectiva, se transfigura também, e aos olhos de quem assiste de bancada, em motivo de insulto automático. No dia em que um jogo de futebol correr mal às duas equipas em jogo, única e exclusivamente por culpa dos árbitros e juízes, talvez acredite que mereçam ser corridos definitivamente das suas funções, como o deverão ser todos aqueles que, de forma ilegal, exercem essa ou qualquer outra actividade. Mas a legalidade e o seu cumprimento não abrangem só o mundo do futebol e da política, pois não?

2.11.11

A calma é uma virtude que não vem da indiferença

Antevêem-se tempos conturbados. A indignação começou a tocar aqueles que, mais ensimesmados, resmungavam vagamente contra um generalizado estado das coisas. Eram tantas as de que se queixavam, e tocavam tantas áreas, que seria difícil canalizar todas as forças necessárias para um objectivo mais concreto e facilmente defensável. Parecia até pouco credível que, continuando o mundo a funcionar, estivesse tudo assim tão mal. Dizemo-lo, nós, agora.

Há dias cruzei-me com um bom homem na cidade, participativo em associações lá do bairro dele. Quando o conheci, há coisa de 2 anos, já reivindicativo, apetecia-me dizer que quase naturalmente reivindicativo, as queixas que fazia, iam sendo desfiadas de forma ténue, mais em sinal de apelo à boa vontade e à colaboração. Mas, no outro dia em que o encontrei, dizia-me: «Estávamos tão bem! No que nos fomos meter!»

Desconheço as opções políticas do senhor ou o seu sentido de voto. O que sinto nele é um profundo respeito e uma completa incorporação do espírito democrático que o leva a incluir-se num colectivo que, quando teve a sua oportunidade para escolher o fez, assumindo a escolha desse colectivo como sendo sua também. Pela sua idade, sei que viveu grande parte da vida em ditadura e terá, eventualmente, vivido com alguma euforia a chegada da democracia. Já uma vez, aliás, em discussão de amigos, ouvi alguém mais novo (pouco mais velho que a democracia portuguesa), com claras orientações de esquerda, vociferar contra um PM de direita, em final de mandato, e acrescentando que aquele não teria o seu voto outra vez. Olhámo-lo estupefactos e ele, entendendo o nosso espanto, lá “desceu” da sua encarnação democrática e disse: «Ah! é verdade, eu não votei nele!».  

A calma daquele senhor com que me cruzei há dias, ao pronunciar aquelas palavras de tom sereno, não foi, pois, a de quem assiste indiferente ao rumo do seu país. «A calma» como diz o Povo «é uma virtude que não vem da indiferença», e acrescento eu que a calma pode ser a reacção de quem tudo fez para evitar que chegássemos onde chegámos. Sendo assim, quando a perdemos, a esta calma, quererá dizer o quê? Talvez queira dizer que já não vamos em conversas e medidas populistas, que apenas servem para mascarar culpas não assumidas; talvez queira dizer que não suportamos que cada vez que alguns chegam ao poder arrasem tudo o que foi feito por quem lá esteve antes, com desculpas que não os ilibam de quando já foram também “tetra-governo”. É que ao fim de 37 anos começamos a reconhecer padrões e a não suportar determinadas desculpas, sendo que a calma, mesmo virtuosa, pode dar lugar à insurgência de quem vê, ouve e lê e não pode ignorar. Há que, apenas, começar a acontecer que mais vejam, oiçam e leiam, e a calma talvez não dure.

25.10.11

Sonhar com…

Dizem-me que a esperança é a última a morrer, mas a mim, funcionária pública portuguesa hoje, parece-me que ela pode moribundar durante muito tempo, o que é uma forma de morrer devagar, tão de vagar que às vezes a esperança não sobrevive ao tempo de vida de quem a podia sentir. Uma espécie de coma do qual se acordará, eventualmente, quando o passado já não é recuperável e o futuro é demasiado curto mesmo para ser futuro.

Já há pelo menos 35 anos que oiço anunciar-se ciclicamente momentos de contenção e austeridade. Acho que o ouvi tantas vezes, numa família que sempre teve uma estabilidade económica razoável, fruto de trabalho e poupança, mas também conseguida em alguns casos na participação activa em causas políticas que reclamando para um colectivo se fizeram lutas e se conquistaram direitos de que viemos a usufruir. Ouvi-o tantas vezes que os esforços me pareceram sempre mais pequenos e os períodos de contenção não me chegaram a marcar. Antes de ouvir um «não pode ser», eu já sabia que teria de encontrar uma solução e esperar por melhores dias que, de uma forma ou de outra, lá foram chegando.

Não sei como hei-de dar esperança aos meus filhos adolescentes que se aproximam do fim da escolaridade obrigatória com objectivos cumpridos. Agora que já lhes expliquei como as coisas que já não estavam fáceis nos últimos dois anos, vão ficar rapidamente mesmo muito mais difíceis; que o que costumavam poupar para gastar no que considerávamos pequenos luxos, vai ter de servir para o que é básico e necessário para se viver, e que qualquer semelhança entre as oportunidades que eu tive enquanto estudante e que me permitiram alcançar o nível de vida que temos, não são oportunidades mas obrigações para eles mesmos poderem criar as suas próprias oportunidades, com muito trabalho e sorte à mistura.  
E quando me perguntarem porquê, eu vou ter que falar não apenas daquilo que eles vão ouvindo nas notícias e nos comentários, mas em casos de pessoas e situações que eles tinham como honestas e que em tanto contribuíram, afinal, para que chegássemos aqui: as pessoas que nos vendiam afectuosamente o seu trabalho e os seus produtos e não declaravam ao Estado aquilo que lhes pagávamos; as que pagavam mensalidades mais reduzidas que nós no colégio, mas afinal até tinham mordomias que eles invejavam; as que justificavam faltas e incumprimentos dos seus colegas com razões que eles sabiam não ser verdade; e outras de que não vale a pena aqui desfiar o rosário, e que a pouco e pouco foram contribuindo para que o Estado desconfiasse tanto de nós.

Não espero contestação por uma mesada maior, nem sequer um protesto por um corte na que já têm, e com a qual se vão amanhando melhor que muitos outros. Espero alguma tristeza, espero alguma desilusão, porque também eu assim estou. Sei que vão pensar que assim, à custa deles, vai ser mais fácil suportar a crise, mas que não o vão dizer porque sabem que lá em casa e no meu trabalho o que faço é com as pessoas e não contra as pessoas, sem lhes criar expectativas ou perspectivas que não se podem realizar, nem fazê-las acreditar que faço para elas colocando-as à espera que o faça em vez delas. Mas não vai ser fácil.

Eu queria era sonhar com figos e com chaves, já que o povo também diz que quando se sonha com figos é sinal de dinheiro e com chaves de dinheiro enterrado. E vou deixando as aranhas que aparecem circular à vontade.

17.10.11

«Quem cala, consente»

Comecei esta crónica no dia a seguir à divulgação do OE para 2012 e acabo-a depois das manifestações dos Indignados. Mas arrisco a dá-la a ouvir, ainda assim, com este ritmo de dois tempos.
Com as austeridades anunciadas já começaram a surgir entre os meus conhecidos aquilo que previ: declarações de não voto neste governo PSD/CDS nas últimas eleições. Lá fico outra vez com a sensação, como na última maioria absoluta em eleições legislativas do Professor Cavaco, de que vieram os votos ali de Badajoz. Já que o chumbo do PEC IV, que levou à queda do anterior governo e à eleição mais que previsível deste governo e teve o alto patrocínio do BE e do PCP, também assisto incrédula aos que, depois de terem cavalgado a onda desse chumbo e do movimento anti-Sócrates, me vêm dizer que, ou nem sequer foram votar, ou não votaram em nenhum partido, ou pelo menos em nenhum partido com representação na Assembleia da República. Esta forma de não participação, e que exclui a terceira opção dos eleitores, ou de participação muda, leva-me ao aforismo popular «Quem cala, consente».
Alegarão os praticantes da modalidade que estão no seu direito e que foi uma forma de protesto. Não contesto, mas desconfio da sua eficácia. Acho até uma desculpa manhosa para se porem sempre de fora do sistema democrático na sua totalidade, utilizando apenas o instrumento do protesto em forma de desabafo e de contestação, em concentrações, desfiles, abaixo-assinados, e “manifs”, ou nas redes sociais, todas elas obviamente legítimas num estado democrático. Devo aliás esclarecer que em idade adulta participei activamente em três tipos de manifestações: no apoio à causa timorense; naquela em que a palavra de ordem era «Durão, Bush e Blair esta guerra ninguém quer!»; e numa série de comícios de campanha eleitoral, ao lado de propostas políticas que julgo melhor defenderem a Democracia, o Estado, o País e as Pessoas.
Dir-me-ão, também, que poderia usar e juntar a minha voz às recentes manifestações de indignados por várias razões, todas elas decorrentes de uma generalizada crise financeira e que veio pôr a nu opções políticas tomadas num passado não tão recente como isso. Mas acho este tipo de manifestação, ainda que representando escapes na tensão em que obviamente os cidadãos se encontram, pouco eficaz. Como o foi, aliás, a primeira indignação, tão participada, na Av. da Liberdade em Março deste ano, e que afinal não teve mais do que o efeito de dar conforto à oposição do governo de então para o derrubar e acabarmos naquilo que temos hoje, e que desconfio que ainda seja só um começo. Aliás, tendo sido a deste sábado menos participada, ainda que pulverizada por outras cidades, suponho que aqueles que tiveram o tal objectivo em Março já não tenham tido necessidade de se envolver agora nesta.
Também não confundo estas manifestações com outro tipo de assembleias populares, onde aquilo que se discute, decide e se faz mesmo, em associações e estruturas mais fechadas, saia à praça pública, de forma afectiva, para dar a conhecer à restante população, mais distante, os seus problemas e encontrar soluções comuns.
As manifestações têm de ter objectivos muito concretos, concordemos ou não com eles. Aproveitar uma eventual multidão para desatar a disparar em alvos vários, às vezes em movimento, é a meu ver desperdiçar, vá lá, munições, apesar de me desagradar esta imagem bélica. Mas também me parece que é muito mais perigoso organizar estas manifestações de maior precisão. É preciso dar a conhecer todos os contornos daquilo que se contesta e propor alternativas no caminho da solução. Quando tanto se fala da participação dos cidadãos e da cidadania activa, parece-me que esta deve começar a ter contornos mais condignos com o direito à informação de que todos dispomos democraticamente. O problema é que, mesmo quando se tenta informar há sempre quem insista na desinformação, mascarada de informação ou opinião, ou lá o que se lhe queira chamar, com medo de criar silêncios que possam parecer consentimentos e optando pelo tanto barulho que ninguém ouve nada. E é por isso que tantas vezes quando me calo eu não consinto, só não me apetece é ficar a falar para o boneco. E é também por isso que votar me parece a melhor voz que o Povo tem para mais ordenar.

13.10.11

«Uma dignidade desonra aquele que a não honra»

A dignidade humana não escolhe género, raça ou condição social. Todo o ser humano é dotado desse preceito, que constitui o princípio máximo do estado democrático de direito. O filósofo alemão Kant, que defendia que as pessoas deveriam ser tratadas como um fim em si mesmas e não como um meio, escreveu o seguinte: «No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade."  
Esta crónica não tem nada a ver com o movimento dos indignados que tem crescido nestes tempos de instabilidade, em que a falta de respostas para um futuro mais próximo cria nas pessoas um medo natural, por vezes incontrolável, e que pode evoluir em acções de grupos, e se exigem soluções onde elas por vezes não existem.  
Esta crónica tem a ver com uma acção lamentável, de que a maior parte dos ouvintes não terá tido notícia completa, e que decorreu durante uma Reunião Pública de Câmara. Estas reuniões públicas são momentos em que todos os vereadores se encontram para decidirem sobre matérias políticas que dizem respeito, grosso modo, ao Concelho, às actividades que nele decorrem e aos cidadãos.  
Ora aconteceu que na semana passada alguns cidadãos de duas freguesias do Concelho foram surpreendidos pela actuação de uma empresa de transportes privada com quem a Câmara Municipal tem relações protocoladas, e em que existe uma comparticipação por parte do município nos serviços por ela prestados e que, naquele dia, por atraso de pagamento da parte da Câmara Municipal decidiu cobrar aos utentes um serviço pelo qual não tinham de ser cobrados. A indignação da população teria sido natural se todo aquele cenário não tivesse sido já previsto, e quem sabe orquestrado, para de forma oportunista jogar com a fragilidade de populações afastadas das escolas e dependentes dos transportes para usufruírem daquilo a que têm direito. Não foram, por isso, as crianças à escola nessa manhã, mas vieram no autocarro da Junta de Freguesia à tarde até ao Salão Nobre da Câmara Municipal acompanhados dos seus Encarregados de Educação. 
Àqueles dois presidentes de Junta, eleitos por aquela gente, não assistiu a dignidade de tratar condignamente o assunto entre instituições – a Junta de Freguesia e a Câmara Municipal – tendo preferido, sabe-se lá à conselho de quem, organizar uma espécie de comício no lugar e no tempo de trabalho da vereação e de esclarecimento de questões públicas.  
Muito mais poderia ser dito sobre este caso em particular, mas dele quero apenas falar-vos da imagem que me assaltou naquele momento em que no final daquela reunião, onde se tratou com o público de esclarecer o que tinha corrido mal e como se tinham resolvido as coisas, o desespero de cidadãos em situação social muito frágil deu lugar a cenas de descontrolo de gente visivelmente transtornada e que deveria ser acompanhada e não exposta daquela maneira.  
Lembrei-me das fotografias de Sebastião Salgado, o fotógrafo brasileiro conhecido por entrar em países e comunidades onde a pobreza e a guerra reinam e onde a dignidade humana parece não ter lugar. E digo parece porque o olhar que se projecta na objectiva da máquina fotográfica daquele artista descobre sempre no meio da desgraça e da miséria a dignidade. Sebastião Salgado não podendo salvar o mundo daquela situação, salva de facto, através da sua Arte cada uma das expressões e dos movimentos – individuais ou colectivos –, a dignidade que existe naqueles seres humanos. E o resultado da sua Arte corre mundo alertando para que algo de maior seja feito por quem, num juntar de competências e vontades, se une para tentar resolver os problemas. 
Quem organizou, idealizou ou sonhou aquela manifestação com aquela gente boa mas desesperada, fazendo a reivindicação através daquelas pessoas, aproveitando-se delas, usando-as por isso como um meio e não como um fim, foi alguém que não sabe o que é a dignidade humana, alguém a quem não foi dado a conhecer o sentido e o sentir do que é a honestidade, o respeito, a integridade ou a justiça. E como diz o Povo: "Uma dignidade desonra aquele que a não honra.” 

4.10.11

"Quem castiga um, cem avisa"

"Quem castiga um, cem avisa", diz o provérbio que a propósito da semana da mobilidade que se comemorou por essa Europa fora há uns dias atrás, me faz falar hoje sobre as multas. As do trânsito, mais precisamente.

Julgo que é inegável que tudo aquilo que se faz enquanto cidadão e que muitas vezes atinge proporções colectivas e caracteriza um povo, ou pelo menos uma comunidade, depende maioritariamente da educação. Às vezes parece genético, mas só assim o é porque quer dizer que a educação, ou falta dela, se cumpriu e houve mudança nos comportamentos. E convenhamos também que nem apenas a escola educa: educa a família, educam as instituições que regulamentam e fiscalizam, educam a cidade e os cidadãos que entre si interagem, formal e informalmente.

Educar para o trânsito é uma das disciplinas que, neste mundo de automobilizados, pode ser considerada nuclear. E por muito fundamental que seja, e é, transmitir noções e regras seguras aos condutores (e já agora aos peões também) é um erro imaginar que educar para o trânsito significa apenas e só isso. Punir quem não cumpre também educa, e é precisamente a aplicação de sanções, ou castigos como sugere o provérbio, que torna eficaz as regras.

O apelo ao bom senso que muitos multados exigem por parte de quem os multa é um desabafo comum. Aliás, ter bom senso nestes casos é não multar, já que normalmente ninguém reclama se deixar de ser multado. E é também um argumento perigoso, apesar do bom senso poder equiparar-se ao princípio da razoabilidade da administração pública. Porque varia de pessoa para pessoa e depende das circunstâncias de cada caso, o bom senso de não multar cai por terra, sobretudo quando apenas há o conflito entre o interesse individual e a segurança do trânsito ou o interesse público. Porque é que quem multa deve ter bom senso na aplicação da lei se o infractor não teve quando lhe desobedeceu?

Ao contrário do que pensa quem se imagina perseguido pelas leis e pelos códigos, o objectivo dos mesmos é que não haja infracções e por isso é também fundamental que o papel da fiscalização passe também pela advertência. Quem fiscaliza deve sempre que possível orientar quem se prepare para infringir: «ponha o capacete», «não se esqueça do cinto», «desligue o telemóvel», «este lugar é reservado a cidadãos portadores de deficiência». Mas depois de cometidas as infracções só existe o dever de multar. Quando quem organiza e fiscaliza o trânsito deixa de punir os infractores para apenas os advertir, transmite a mensagem errada a todos de que a multa é desnecessária. E se o trabalho inicial de advertência for prolongado acaba por tornar-se uma armadilha para quem gere o trânsito, servindo de argumento para futuros infractores, e gerando situações de caos. Pois é, quando não vai a bem… é uma pena!

27.9.11

"A gente julga mal ou bem, conforme o interesse que tem"

Troy Davis foi morto no dia 22 de Setembro de 2011. Matou-o a pena de morte. Ainda em vigor nalguns estados, ditos Unidos, da América, e noutras partes do Mundo que nos parecem mais longe, esta forma de aplicar o castigo em nome da justiça permite ao homem mascarar-se de Deus, o que quer que isso queira dizer.
A notícia esgueirou-se por entre outras de crises económicas, financeiras e políticas. Mas em cada vez que era dada, pela rádio, o incómodo sentia-se na voz de quem lia aquela notícia. A querer parecer-se com guião de filme, como tantos filmes já vistos por tantos sobre o assunto, agora aquilo não era ficção. Aconteceu. E em vez de ter morrido um homem às mãos de outro – o que seria sempre de penalizar – morreram dois, e um deles com causa considerada justa.

Opinar sobre julgamentos é sempre um risco. O povo sabe-o e diz «A gente julga mal ou bem, conforme o interesse que tem». Levantam-se as vozes que vêem no castigo vingança que tem de ser e que só quem sofre a perda de alguém querido pelas mãos de um criminoso poderá descansar por ver este sofrer com o mesmo. Mas a morte de um homem não ressuscita quem já morreu. A morte de um homem como castigo, dizem alguns, que serve de exemplo e evita outras mortes. Duvido. A morte de homem não serve a ninguém porque não serve todos. Em situação de guerra só serve mesmo uma parte. O castigo faz-se pela memória. Lembrar quem morre pela falta que faz, lembrar quem mata pelo que não se deve fazer. E quem faz o que não deve ao ser punido com vida vivida sem livre arbítrio é retirar-lhe precisamente aquilo que faz dessa pessoa um ser humano. Preso e condenado para o resto da vida, quem assim vive não pode ser homem inteiro.

Esta discricionariedade de que fala o povo na sua sentença é também perigosa até porque verdadeira quando as evidências falham, e por vezes, mesmo quando se deixam ver... A balança, a venda nos olhos e a espada na mão de uma mulher – porque vida é feminino e a terra é mãe mesmo quando é pátria -  são a imagem que alinha elementos sem prioridade obrigatória. E a espada às vezes cai sobre os corpos porque a cegueira é sinal só disso mesmo e não sinónimo de isenção no julgamento em que o equilíbrio da balança de nada serviu.
Troy Davis era negro, terá morto um polícia, branco, em 1989, foi julgado e condenado em 1991 e desde então, há 20 anos, que sete das nove testemunhas alteraram os seus depoimentos. Para além disso, segundo a defesa, a acusação nunca obteve provas físicas ligando Davis à morte daquele polícia. A justiça americana, naquele estado da Geórgia, essa está seguramente muito ligada à morte de Davis.

20.9.11

«E o Povo, pá?»

Com o aproximar do regresso para a segunda série das crónicas da Diana, fui pensando em acrescentar a esta edição uma variante. A ideia surgiu-me quando, numa das poucas escapadelas que a minha troika caseira permitiu durante os meses de veraneio, ouvia numa rádio nacional uma dupla de especialistas, julgo mas não juro que eram psicólogos, construírem as suas intervenções em torno de provérbios de origem popular. Entretanto também cá por Évora, e no âmbito desse festival não-pop, não-rock, não de músicas ou danças deste ou de outro mundo, mas muito ousado, e que se tem estendido durante todo o Verão com sede na Igreja de S. Vicente – falo d’ O Escrita na Paisagem – os promotores do Festival começaram a editar o programa num almanaque semanal que, à boa maneira de um tradicional almanaque, põe também na ordem do dia a sabedoria popular.

Não sendo por isso nenhuma inovação, julgo que esta minha nova “pauta” me pode ajudar a alinhar os textos que, convenhamos, têm muita tendência para ter objectos e sujeitos recorrentes, e que é legítimo que surjam ao sabor das circunstâncias que vão merecendo opinião e posição da autora, isto é, eu própria. Assim, em cada crónica estava a pensar que a propósito da sentença popular, ou a propósito de um ou outro caso que me suscite reflexão, lá vá de provérbio. Acho que quer eu, quer os ouvintes poderemos a partir desta raiz popular e colectiva dar asas às nossas reflexões pessoais, sobre um assunto que me interesse e sobre o qual eu gostaria de tornar-vos interessados.

Afinal, os provérbios ou sentenças populares são por definição a voz do povo o que assenta que nem luva ao regime democrático em que vivemos e aos gritos que mais recentemente temos ouvido em manifestações populares e que pode ser condensada no «E o Povo, pá?» Não sendo esta uma pergunta proverbial popular, pois tem autores bem conhecidos, pode ir tendo nas sentenças tradicionais respostas possíveis. Eu dou um exemplo e já agora cito uma das fontes que estará mais à mão de quem faz das tecnologias a sua pena e parte da sua documentação, o sítio da Internet assim chamado Citador, e que a propósito do tema do “político” nos atira como murro no estômago esta sentença fatal: "Bom político, mau cristão”. Apre!, exclamo eu, como isto pode dar “pano para mangas”…
Até para a semana.

12.7.11

A Concertação e o Diálogo

A concertação tem como sinónimo a conciliação; a concertação social é o acordo entre o governo e os vários parceiros sociais (sindicatos, associações profissionais, etc.) sobre medidas laborais. E é por isso que a meu ver, para seguirmos o exemplo de um funcionamento democrático, a concertação entre o poder político e os cidadãos se deverá fazer entre representantes de uns e de outros. Da concertação espera-se que haja um harmonizar de vontades e possibilidades. E, finalmente, a concertação é, no meu entender, o culminar de um processo com várias etapas do qual o diálogo é apenas uma.

As acusações de falta de diálogo entre os políticos e as pessoas ocorrem normalmente quando os recém-eleitos perdem o estado de graça de quando chegam de novo ao poder e se percebe que não são anjos, prestidigitadores ou messias que passaram a ocupar de novo um cargo, com nome igual ou diferente, mas com as mesmas funções governativas de gerir os bens públicos em favor do público em geral e não de corporações, mais ou menos poderosas. Há por isso, nas mudanças governativas, uma das partes que se mantém: aquela que reivindica os seus direitos e se predispõe a contribuir com o seu trabalho para o funcionamento da coisa pública. Há também circunstâncias que se mantêm: o normativo, isto é, determinada legislação, e vários outros instrumentos de governação como os orçamentos ou os quadros administrativos e técnicos das estruturas. É claro que também aqui pode haver propostas de mudanças, umas melhor aceites que outras, mas essas são normalmente mais demoradas do que o simples processo eleitoral, seguindo vias próprias, umas públicas outras mais restritas, e que são facilmente esquecidas por quem não está directamente envolvido no assunto a ser alterado.

O exemplo mais próximo que tenho é o da instituição dos regulamentos de apoio ao associativismo da Câmara Municipal de Évora que originou muito ruído por alguns e muito desconhecimento, e quem sabe desinteresse, pela maioria dos cidadãos. Também é natural que essa minoria queira dar a conhecer à restante população os motivos e as circunstâncias das suas preocupações e se organizem para tal iniciativas públicas. É até um direito democrático que, desde que não choque com os direitos definidos como de todos, é legítimo.

Essas iniciativas têm também, normalmente, promotores, isto é, pessoas que as levam para a frente, movidos por diversas intenções, pessoais ou de grupo. É por isso que importa perceber “quem é quem” neste tipo de iniciativas. Porque aqueles a quem se reivindicam os direitos, esses, toda a gente os conhece e fez questão de votar, ou não, neles. Por isso os promotores das iniciativas se querem jogar limpo devem identificar-se, para que todos saibam de quem se trata, quais os seus interesses e quando começam ou acabam esses interesses. No fundo, é o que qualquer associação idónea que tenha uma finalidade bem definida, isto é uma identidade, faz. Claro que também há na nossa democracia, e felizmente, quem tenha como objectivo não ser esquecido, mas o mais comum nestes casos é escreverem-se livros de memórias. Às vezes esses esquecidos, ou pessoas de perfil mais rasteirinho, a versão portuguesa do low profile entenda-se, conseguem ingressar em fileiras mais organizadas e juntar a sua voz à voz de outros. Tudo legítimo.

O que já me parece nebuloso e pouco claro, mesmo pouco honesto até, para os restantes cidadãos que assistem mais ou menos é que se diga que não há diálogo quando o que se quer é um longo e interminável monólogo. Aceito apelos, aceito manifestações de desagrado perante injustiças. O que não aceito é que feitas todas as explicações, postas as cartas todas na mesa, propostas todas as saídas para minimizar efeitos de situações que são alheias a ambas as partes de quem se quer concertar se continue a dizer que não há diálogo. Que diálogo é esse que se quer: a criação de falsas expectativas? Um elencar de promessas que não se sabe se e quando se podem cumprir?

Às vezes sinto que os que não são políticos (alguns são, mas de vez em quando despem-lhes a pele) querem insistir nesse pré-conceito de que político é mentiroso, e perpetuar essa tradição que os levará sempre a um ciclo que não se acaba. Pois, porque políticos são todos os que gerem, no poder ou na oposição, os destinos das populações que representam. E há uns que parece que esgravatam à procura de quem vive pior para deles se fazer porta-voz e que quantos mais destes houver de mais vozes são portadores. Fazem as suas propostas em cima de inviabilidades e não em soluções alternativas que colmatem as dificuldades. E ao agir assim, parecem eles estar muito mais a servir uma clientela do que o bem público. E outros há que não tendo assunto assim o arranjam. Mas pronto, façam como entenderem e acharem melhor, porque eu também! Agora, não enganem é os cidadãos dizendo que é por falta de diálogo que não há dinheiro. Um problema muito mais de todos do que só de alguns. É uma questão de Verba, senhores, não de Verbo!

Boas férias!

5.7.11

O efeito-pega

Não sou particular aficionada das touradas ou qualquer outro tipo de espectáculo tauromáquico, mas tenho batido o meu record pessoal, fraquito é certo, de sua espectadora neste último ano. Confesso que não sofrendo com os toiros ou os cavalos, não fico muito à-vontade com as espetadelas e as cornadas que se distribuem durante as touradas e incluo-me naquele grande grupo que vê nas pegas a parte mais interessante do alinhamento tradicional. Aprendi também que este é um momento que só formalmente inclui a tourada, ao que parece, desde 1836 quando D. Maria II proibiu os touros de morte, e a pega passou a ser o finalizar da lide dos cavaleiros. À cor, ao quase bailado, à música e ao entusiasmo do público, que considero constituírem a face mais visível destes eventos, culturais dê lá por um der, é na luta homem-toiro que vejo a coragem desta prática tradicional. 

Já Hans Christian Andersen (esse mesmo, o dos contos) num pequeno livro-guia que escreveu aquando da sua viagem desde a Dinamarca até Portugal, descreve as suas impressões sobre uma pega, a que assistiu em Setúbal e onde, inclusive, se deu a morte de um dos forcados. Aqueles momentos de confronto são consequentemente momentos de grande tensão, onde o único ser que parece estar calmamente a dominar a situação é o touro.

Mas o que para mim é mais intrigante é toda uma postura do público e das suas manifestações em aplausos em momentos bem definidos. Os forcados são aplaudidos em duas situações: quando sofrem forte e feio o impacto e os arremessos do animal, e parece que quanto mais levam mais aplaudidos são; ou quando a pega custa a dar-se por falta de colaboração do touro – chamemos-lhe assim! – e o primeiro elemento, chamado o forcado da cara, tira o barrete e desiste, recomeçando tudo de novo. Há depois ainda a tal pega de cernelha, para determinadas circunstâncias em que os touros se mostram menos predispostos a colaborar, imagine-se, para que a pega corra bem, para o lado dos forcados, claro. Há no fundo sempre uma solução para que a luta aconteça.

Esta prática ou tradição premeia assim aqueles que mais dificuldades têm, numa demonstração ancestral da máxima que diz que quanto mais forte é o adversário maior é a vitória, e já agora acrescentaria eu, e caso se apliquem as circunstâncias, a derrota (situação que no caso das touradas não acontece mas é tema para anedota popular e conhecida em várias línguas). Vencer ou ser vencido por alguém mais frágil será sempre um desmérito.

É este um princípio da guerra, da luta, da guerrilha, do conflito, que tem como fim o eliminar de um dos adversários e nunca a cooperação. Parece-me bem na tourada. Parece-me menos bem, como estratégia, e mesmo quando eufemísticamente chamamos a algumas situações uma tourada, quando se pretende que de um conflito entre partes nasça algo de positivo para todos.

Confesso que nesta tourada de S. Pedro, onde os Forcados Amadores de Évora aguentaram as pegas todas e com muita bravura, enquanto assistia, pouco atenta, ao desenrolar do espectáculo – um espectáculo que o extinto Ministério da Cultura no relatório final de Julho de 2009 do estudo sobre o sector cultural e criativo em Portugal não inclui directamente, o que me leva a perguntar-me se não estará o toureiro, porque os forcados são amadores, incluído neste sector de actividades, até porque o Regulamento taurino fala-nos de artistas tauromáquicos, mas adiante – dizia eu que enquanto assistia às pegas, me apercebi de que mesmo não morrendo na arena, mesmo quando o sangue no traje do forcado é “só” do touro, todos saem feridos, mas os racionais saem também contentes, permitindo um gozo fátuo mas muito legítimo aos espectadores que pagam para ver, e uma sensação de vitória merecida a quem foi capaz de levar a luta até ao fim.

Fez-me pensar muito esta minha nova maneira de ler as pegas. E só consegui mesmo retirar esse prazer do privilégio de poder, com o exercício dos raciocínios, das lógicas, das associações de ideias e dos simbolismos de bolso, ir construindo visões do meu mundo actual e do relacionamento que tenho tido com tantos. E foi também bom chegar ao fim e continuar a dizer: “The show must go on” o que não é por aí mais além de bonito do que dizer “Olé!”

28.6.11

O Fim

O Fim é o título de uma peça de teatro de António Patrício que, de resto, foi belissimamente encenada pelo CENDREV no início deste ano no âmbito das comemorações do Centenário da República. Neste mesmo contexto, o grupo de teatro a Barraca fez igualmente leituras encenadas deste texto que retrata também a Lisboa num fim tumultuoso e sangrento da monarquia. Uma das personagens a que o Autor chama Desconhecido, que vai reportando o cenário de todos os horrores das armas e do sangue, empenhado em salvar a monarquia e a própria nação do caos, ainda insiste em falar com a Rainha-Mãe D. Maria Pia que, enlouquecida e indiferente à situação apocalíptica, se prepara para um banquete imaginário respondendo ao apelo do Desconhecido com duas palavras «Tenho fome.»

O contexto mundial político, social e sobretudo económico em que vivemos não se compara obviamente à mudança de regime que o texto literário usa como tema. Nem é minha intenção ao referir-me à peça de Patrício, eu republicana convicta, dizer que naquela mudança há uma pobre realeza, coitada, de quem devemos condoer-nos e que representa um regime de que alguma vez devamos ter saudades. Nada disso. É o drama pessoal e íntimo das personagens patente no texto, e revelado na expressão dos actores que lhe deram corpo, que me traz à minha crónica de hoje. O cenário de falência de um paradigma que se esgotou (e não adianta falar da culpa que aliás já foi tema de crónica anterior). Um modelo da vida em torno do que se vende e se compra, mesmo quando alguns (poucos mas capazes) tomam a expressão «ganhar o seu pão» literalmente e acham que o pão nos cai por sorteio ou concurso e não se compra com o trabalho. Esse modo de exercer a vida, a que todos, mais uns que outros, é certo, nos habituámos chegou ele também ao fim.

O Desconhecido e a Rainha somam o desespero e a “irrazoabilidade”, as duas faces de uma mesma moeda (metáfora que vem tão bem a propósito ao caso dos dias de hoje), o estado de espírito de quem se vê confrontado com algo de terrivelmente inevitável, como parecia tão inevitável o estado que precedia este caos.

É o que vou sentindo a crescer nas populações, em desabafos individuais ou acções colectivas, na rua, na praça, na cidade, no país, no mundo. O confronto com a luta, alguns até pela própria sobrevivência, quase faz parecer riquezas as misérias que se choraram antes. Uma luta que para já, e muito pelo próprio evoluir cultural da espécie humana enquanto tal, recusa ou pelo menos faz atrasar o recurso às armas. Como o Desconhecido exige razão e acção a uma Rainha de um regime já inviável, numa quase óbvia extorsão aos olhos de todos, vai-se reclamando, protestando e implorando direitos como se de inevitabilidades se tratassem e que se tornaram tão fatais para o regime que se encontra agora tão moribundo. O protesto que antes se calava com o dinheiro, persiste agora pedindo a vida a quem tenta também sobreviver. 

Como se afirma no texto de apresentação da encenação eborense desta peça para o Centenário «O Fim é uma espécie de laboratório teatral no qual o dramaturgo António Patrício prenuncia não só a extinção do regime monárquico em Portugal (…) mas também toda uma atmosfera de tragédia colectiva que parece ser premonitória dos conflitos bélicos que devastaram o mundo ao longo do século passado.» O tom pretérito do verbo devastar, acertado na sintaxe, parece-me mais um desejo do que a realidade de um futuro mais indicativo do que desejaríamos. Preparemo-nos para ouvir àqueles a quem imploramos que nos façam renascer duas palavras «Tenho fome».

21.6.11

As Feiras (21.06.2011)

As feiras chegam para marcar no calendário das populações uma época de ar livre, de lazer e diversão, de ver e ser visto. Vão-se modificando, elas mesmas, mas também aos olhos de quem as vai vivendo de ano para ano, de quem vai crescendo com elas. Uma espécie de silly season popular, que não sai nas revistas cor-de-rosa mas preenche sobretudo as noites de quem as frequenta ou de quem, não as frequentando, vai delas tendo relatos, apreciações e juízos, ou nela tropeça como se se tratasse de obstáculo a uma rotina que não se quer alterada. Procura-se ambiguamente a novidade e a tradição, ou simplesmente se aceita o que outros fazem para nos marcar os dias, para o bem ou para o mal, consoante se seja mais ou menos festeiro ou pacato cidadão em dias sacrificados por sons, cheiros e movimento.

A elas se colam opiniões e reacções epidérmicas, impressões e expressões, comerciais ou políticas. Há o “gosto mais ou menos do que a edição anterior”. Há o “está mais fraco ou melhor” o negócio, o que trata do ócio mas não só. Há o apropriar da feira por quem a organiza e que, normalmente, procura no sucessor um pior sucesso que aquele que foi o seu, ou do qual se apropriou. Uma espécie de guerra de mordomos de romaria que se quer sempre igual, mas maior e melhor, o que pode ser tão verificável como questionável. Até porque se há lugar por que todos passam de melhor ou pior vontade, mas nunca indiferente, em princípio, esses lugares são estas feiras anuais que se instalam no nosso caminho do dia-a-dia, tornando-se na imensa maioria das vezes completamente incontornáveis.

Neste sentido, as feiras são como lugares de afirmação de quem as cura, recebendo esse património a que se quer acrescentar mais ou diferente, deixando para a geração seguinte uma herança mais recheada. Se não é assim devia ser, digo eu. O maior e o melhor são, no entanto, barómetros que se calibram por medidas flutuantes, ao sabor mais de verbas do que de verbos de vontade e intenção. E serão sempre medidas sem mediana definida, porque o que agrada mais a uns deixa outros indiferentes e o que incomoda fulano enche as medidas a beltrano.

Ainda assim há todo um enorme esforço dispendido a vários níveis na concepção, montagem e funcionamento de uma feira como é a de São João que chega a Évora, ainda e sempre, nesta semana. Exercícios de fazer oitos com pernas de noves, nesse esforço que será sempre mais reconhecido pelas enchentes que reincidem noite após noite no bulício da festa, do que em qualquer crónica ou opinião de rádio ou jornal. 

Entre farturas, caipirinhas, cachorros e poncha, fica a memória do polvo, de cheiro intenso e de consumo limitado a dentes de leão e a quem gostasse, claro, nas estórias que se vão contando à geração seguinte, crescendo a Feira com as gentes. Uma dinâmica que veio fazer com que a geração que lhes sucede, sobretudo àquelas feiras que ocorriam mais amiúde por ano, seja a dos hipermercados e centros comerciais, aonde acorrem romagens em tudo semelhantes, e que apenas alguns, não sem algum pedante elitismo, vão recusando, acusando a descaracterização, ignorando o efeito do Tempo que passa e de quem não são nem nunca serão donos. Passear, comprar, passar o tempo, encontrar conhecidos, verbos que se conjugam da mesma maneira em cenários que se modificaram na luz, no som e nos cheiros e a que não adianta reagir sob pena de se olhar sempre o Futuro com a nuca.

14.6.11

Lições da campanha (crónica da Rádio Diana, 14.06.2011)

Vou ainda falar das eleições porque esta foi a campanha eleitoral em que estive mais atenta a debates, comentários, reportagens, o que fez com que aprendesse um pouco mais sobre uma parte da vida.
As eleições representam para mim uma conquista da geração dos meus avós e dos meus pais e faz parte da cartilha dos valores democráticos que ensino aos meus filhos. Mas alinho com quem nestas eleições viu oportunismo. Não que o direito de uma maioria interromper o trabalho de um governo não seja legitimamente democrático, porque o é, mas porque afinal se interrompeu um ciclo com argumentos de uma situação que foi resultado de todos e de ninguém: de todos os que foram sendo poder e contra-poder no país, de ninguém porque de todos, mas também por reflexo de uma situação que nos chegou de fora e chegará a outros que alguns têm como melhores que nós. Primeira conclusão minha: não terá sido a queda e subsequente substituição do governo que virá alterar o rumo de Portugal nos, pelo menos, próximos dois anos, o tempo que restaria ao governo que sai agora.
E desta campanha tirei algumas lições: a primeira foi a do fenómeno de “os que cá andam por ver andar os outros”, expressão pouco simpática, é verdade, para designar aqueles que estão normalmente do lado dos que aparentam ser mais fortes e melhor posicionados para a vitória. É um fenómeno acalentado, naturalmente, por aqueles a quem as sondagens, esse novo instrumento de propaganda partidária, dão a vantagem. Afinal, parece-me que a lógica desse cálculo parece estar certa, pois se “todos” acham que uma escolha é a mais certa é porque deve ser mesmo. Também é aquele meio-mundo que pensa assim, o público-alvo do lado mais folclórico das campanhas, que depois é tão criticado pelo outro meio-mundo que aponta a falta de debates sérios entre candidatos. Vejo nestas atitudes a oposição massas-elites e pergunto-me se estamos todos – governantes e governados – preparados para lidar com este fenómeno aplicado a assunto de política, vital para a afirmação de um país. Encarar uma campanha política apenas como uma campanha publicitária, não me parece um bom serviço prestado à Nação.
Por outro lado, outra lição, a taxa de não-participação dos cidadãos faz-me pensar se, aquilo que se apregoa como a grande insatisfação do Povo perante alegado mau governo que alguns quiseram deitar abaixo, não terá sido precisamente a prova de que foram mesmo só alguns que quiseram alterar ou interromper o ciclo eleitoral.
E pergunto-me se este direito ao voto que conquistámos com Abril não deve tornar-se um dever a que só com justa causa se pode falhar, para que de facto se incluam todos os portugueses no destino do país (aliás, o recenseamento automático é já um adiantar de trabalho neste sentido). Um pouco como a escolaridade obrigatória, contra a qual eu não conheço ninguém que esteja, e que alguns não tendo sido abrangidos por ela tiveram nos últimos anos uma nova oportunidade de dela beneficiarem. É certo que não se evitarão os votos em branco, que poderão significar sempre equivocamente protesto ou ignorância, mas talvez leve muitos a estar mais atentos às propostas de quem se organiza em partidos, movimentos e coligações. Parece-me uma medida em prol do bem público, da efectiva educação para uma cidadania que se exerce também com o voto, sensibilizando para a importância de fazer opções, de respeitar as decisões e de perceber que quando se toma partido é porque se deseja uma determinada orientação, forçosamente diferente, muito ou pouco, de outras orientações que se proponham, numa valorização da alternativa. Não faria mal a ninguém, poderia até fazer muito bem a alguns que por uns momentos de tempos a tempos se habituariam a participar na Democracia, o que já representaria, incontestavelmente, um ganho para o país. E para os Portugueses, claro!

8.6.11

Pessimismo (crónica da Rádio Diana, 07.06.2011)

E agora, José? É título de obra de Cardoso Pires e mote a que este Autor dá umas voltas num texto autobiográfico intitulado Fumar ao espelho. Nessas confidências do Autor estão reflexões sobre o pessimismo, um substantivo que me assalta de quando em vez, mesmo quando o meu trabalho é caminhar com o optimismo, para que esse caminho possa dar frutos e não erguer barreiras à construção de um mundo melhor ou, pelo menos, uma cidade melhor. Mas também porque o pessimismo alimenta alguns discursos que ganham a sua força com a miséria dos outros, expondo os casos como atracções de feira para dar força a protestos e exigir medidas que só existem no País das Maravilhas, e de que se conhecem alguns retratos mesmo quando só lá se vai a banhos e luxos.   

Diz Cardoso Pires sobre o assunto: «O pessimismo acaba sempre por funcionar como uma superstição de prudência: prevê o pior para ir acumulando resistências contra o mau mas sempre na esperança de que o mau nunca venha a acontecer. E se acontecer, percebes, também já não perde tudo, ganhou pelo menos a glória da razão.» É o que diz José, o Cardoso Pires.

O ponto de equilíbrio entre o pessimismo e o optimismo parece encontrar-se no realismo. Coisa tão difícil de conseguir como a escolha sempre acertada, como a precisão de um percurso sempre escorreito, com resultados sempre óptimos. Mas o realismo é também ter os pés assentes na terra, o que parece ser sinónimo de esperar sem agir. É por isso que julgo que se há um optimismo e um pessimismo, só pode haver vários realismos. Plurais, circunstanciais, mutáveis como os seres vivos. Resultados de diferentes opções de vida, de diferentes visões do Mundo, de diferentes ideais, de diferentes conceitos como, por exemplo, o de Pátria. Escrevia o Vergílio Ferreira «A pátria, como tudo, és tu. Se for também a do teu adversário político, é já problemático haver pátria que chegue para os dois.»

Governar vai ser agora também um jogo de equilíbrio entre o pessimismo que nos espera e o optimismo que esperam dos governantes. E os governados? Como se governarão? A escolha foi feita, fez-se uma cruz. E os braços? Ficarão cruzados? O que é que cada um pode fazer se tiver a coragem de pôr mãos à obra e não deixar-se prender numa apatia de espera. Olhar-nos-emos ao espelho, todas as manhãs, e pensaremos não só naquilo que vemos reflectido, mas naqueles que nos esperam lá fora. Poderemos ir só deixando passar o tempo e o dia-a-dia, poderemos ir ajustando os realismos e procurando ultrapassar o pessimismo para um dia podermos afirmar o optimismo.   

Pode ser aguentar e ser-se realista, com esse realismo que tem o efeito semelhante ao do nevoeiro num aeroporto. Ou pode ser agir, num círculo de confiança com outros que sentem os mesmos realismos que nós, encontrar outros que engrossem as nossas fileiras e, na hora certa, quando quer que ela chegue ou que nós a façamos, estarmos lá para receber os louros da tal glória da razão de que falava Cardoso Pires, e que trazem consigo a responsabilidade de agir em conformidade com o que fomos esperando, juntos.

«E com esta me despeço,», diz Cardoso Pires e repito eu, e continua «adeus até outro dia, e que a terra nos seja leve por muitos anos e bons neste lugar e nesta companhia.» E exclama ainda «Pá, apaga-me essas rugas. Riscam o espelho, não vês?». E digo eu: valeu a pena a luta, José, Sócrates, fizemo-la juntos, aprendi com ela e continuo a minha, em boa companhia, espero.