30.6.15

SOS

As siglas são cada vez mais usadas quer no discurso oral, quer no escrito. E saindo sobretudo de campos específicos em que poderiam ser consideradas um jargão próprio de uma actividade, invadem o mundo do discurso corrente. Umas vezes usadas por quem até já nem consegue com precisão desenvolver a sigla e refazer as palavras que lhe deram origem, outras parece que usadas de forma que até nem se entenda muito bem o que querem dizer. Também é verdade que o uso corrente, popular e familiar que fazemos de uma língua vai transportando para a norma, ou pelo menos para uma aceitação tolerante, erros que se cometem face a uma regra por inerência rígida, precisa e com uma história que a explica. A palavra ou conjunto de letras que vos trago hoje, após uma semana de desgraça provocada pelo terrorismo e de crise política pela situação extrema da Grécia, parece estar a propósito, e confundir-se com uma sigla: SOS.
SOS é um código, universal, de socorro, uma mensagem rápida e facilmente entendida para alertar quando se está em situação de perigo de vida e se necessita de auxílio rápido. Mas as letras SOS não significam mais nada para além disso.
Muitas vezes “explicada” como sendo uma sigla de expressões como Save Our Ship  ("Salvem nosso navio", em inglês), ou mesmo Save Our Souls ("Salvem as nossas almas"), essas relações, até metafóricas, só foram criadas para ajudar as pessoas a lembrarem-se das letras do código. Não resultando de nenhuma expressão e tratando-se de um grupo de letras que não significam absolutamente nada, o código em si é inconfundível. O sinal foi criado no início da Era da Radiotelegrafia, em 1906, quando as comunicações eram feitas principalmente por código Morse, e o SOS era o conjunto de letras mais fácil de reproduzir e menos difícil de confundir.
Antes de surgir o SOS, o código de alerta usado era o CQD, que também não possuía nenhum significado e foi escolhido por ser formado por letras que juntas não dariam margem para qualquer outro tipo de interpretação. Porém, escrever CQD em código Morse não era nada prático. O SOS só foi oficializado em 1908, mas era comum utilizarem-se os dois códigos. Em 1912, por exemplo, quando o Titanic afundou foram emitidos sinais de socorro em SOS e CQD. Valeu-lhes de pouco…
De qualquer modo, mesmo se o código Morse já está em desuso desde 1999, ano em que o sistema de comunicações marítimas terá deixado de ser oficialmente esse, o SOS continua aí. Usado com mais ou menos frequência por e para situações de maior ou menor perigo, a sua banalização ou utilização com propriedade e rigor vai, algumas vezes e cada vez mais, dependendo também da maior ou menor capacidade de os cidadãos se organizarem e conseguirem chamar a atenção de quem possa e queira ajudar às situações de real emergência ou urgência. Longe vão os tempos do Morse ou das mensagens em garrafas, mas persistem os perigos que, directa ou indirectamente, a Humanidade, ou parte dela, continua a infligir a si própria.

23.6.15

Parade

Eis-nos mais uma vez em plenas Festas da Cidade de Évora, a Feira de São João. Mais ou menos ansiosos por que chegue mais uma edição, mais ou menos distraídos sobre o que acontece de novo no rossio, os que vivem, nasceram, passam ou passaram frequentemente por Évora não deixam de reparar nela. Nem que seja, no caso dos declarada e convictamente anti- feiras e quejandos, para a contornar e evitar.
Tratando-se de uma iniciativa municipal, os sucessivos executivos no poder acabam sempre por ser julgados, de ano para ano, pelo impacto que cada ano e nesse mesmo ano a Feira tem nos seus frequentadores. Sim, porque deixemos passar um par de anos e lá nos esquecemos nós do que de bom ou mau lhe encontrámos e achámos. Não sendo possível, nunca, agradar a todos, quando esses todos formam uma sociedade plural e livre para o também livre-arbítrio, os políticos em posição de governo tratam, por estas alturas também e sobretudo em períodos pré-eleitorais, de agradar ao maior número possível e cativar os cidadãos, potenciais eleitores. Abrem-se os cordões à bolsa que antes se dizia vazia, furada no fundo - por outros, claro!, sempre por outros, nunca por quem exigia, mesmo na oposição, que se gastasse mais aqui e ali, e não se gastasse nem nestes, nem noutros, afinal já em tempos em que se “faziam oitos com pernas de noves”, o que significa faltar alguma coisa nalgum lado. Uma bolsa sempre a perder recheio que, alinhavada por argumentos que outrora pareciam não servir, miraculosamente em ano de eleições, estancam e arrecadam aqui e ali alguns cobres, para que os cordões se abram e que, mesmo lembrando aos cidadãos que, se em casa continuam sem pão – culpa dos outros, claro! sempre dos outros, e que jeito dá aqui e ali meter essa bucha de relembrar esses outros que são os que nos tiram o pão e nos obrigam a dar-vos bolos – na rua há circo para esquecer.
Desfila-se diligentemente entre os cidadãos, atrás, à frente, no meio ou de lado – conforme dê mais jeito e onde se seja melhor visto pelos que assistem quanto mais deslumbrados melhor - aos cortejos que também se chamam, por vezes, paradas, versão das modernas e internacionais e históricas parades. Desfile, marcha, cortejo, procissão ou parada são eventos comemorativos onde pessoas e objetos móveis percorrem um determinado caminho, sucedendo-se uns aos outros de forma coordenada. Se o desfile é o termo mais neutro, o cortejo é o mais alegórico e carregado de simbologias e a procissão o de carácter religioso. Já marcha se usa mais para a manifestação política e a parada, em português, se associa aos movimentos militares quotidianos. Mas a parade, ah! a parade mistura tudo, numa explosão de festa e de cores que celebra alegrias, num alarido sonoro que chama as atenções, com disfarces que realizam sonhos no tempo, curto, do desfilar, desejos negados pela realidade do dia-a-dia.
Este ano a Feira de São João celebra o Palácio, o nosso o do Dom Manuel, que cresceu pedra sobre pedra na mesma época em que tantos outros palácios se erguiam no que é este espaço chamado Portugal, para albergar os poderosos, os que se sucediam dinasticamente, os filhos ou sobrinhos aos pais e aos avós, numa linhagem sempre desejavelmente pura, mas só no sangue Os que governavam os outros, longe, muito longe ainda do tempo desta Democracia que dá o poder, também do voto e do veto, ao Povo.
E por mais voltas que se dê quando se celebra alguma coisa faz-se-lhe um lugar na memória. Para uns com nostalgias, para outros com repúdio. E para outros, ainda, dando uma no cravo e outra na ferradura. Uma boa Feira e até para a semana.    




16.6.15

Agent Provocateur

Agent provocateur, que se traduz por agente provocador mas é uma expressão normalmente usada em francês, designa uma pessoa que secretamente um determinado grupo infiltra noutro, para incentivar os membros deste a cometer actos ilícitos ficando-lhes assim associados. O objectivo pode ser mais leve, digamos assim, e tentar-se “só” diminuir a sua credibilidade, levando-os a adoptar comportamentos radicais, ou até mesmo cometendo-os ele próprio em nome do grupo. 
Normalmente, os agents provocateurs são designados para provocar agitação e violência, mas também, e mais discretamente, o debate e a controvérsia até ao limite pretendido do descrédito. Poderíamos usar a metáfora fabulística da raposa no galinheiro, em alguns casos e, noutros, dizer que são assim uma espécie de incendiários disfarçados de bombeiros. Infelizmente, esta sua subespécie menos policial, é mais comum do que raríssima em muitas organizações da sociedade contemporânea, que é a que nos interessa por ser aquela em que vivemos.
A actividade de agent provocateur pode até ser legal em alguma latitude do nosso planeta, mas num sistema democrático como tem sido o nosso dificilmente se justificará. Sendo uma prática que evoca clandestinidades ultrapassadas, suponho que ainda circulará em alguns corpos, socialmente falando, compostos por guerrilheiros e revolucionários de pacotilha, a mando dos mais diversos e inesperados interesses, onde o pessoal não deve ser ignorado.
É talvez mais comum nos dias que correm, e de certa forma aparece branqueado aos ouvidos mais dados à actividade intelectual, apelidarem-se este tipo de activistas de “cínicos”, entendendo-se mesmo por cínico aquele descendente da histórica seita filosófica que desprezava as conveniências sociais. O problema é que quem é mais cauteloso, ou exerce funções para as quais outros delegaram em si um voto de confiança, terá sempre tendência a desconfiar, ou pelo menos a acautelar-se, com aquele tipo de proposta só aparentemente bondosa. Isto cria um clima terrível de constante tensão, exige uma resistência e um savoir vivre por parte de quem circula nestes meios onde as acções que, vulgarmente, o cidadão comum baptiza de “políticas”, tomando o seu sentido mais rasteirinho e muitas, se não a maior parte das vezes, até distante do verdadeiro mundo da política e dos partidos, e próximo de qualquer organização ou instituição que implica as figuras de quem governa e quem é governado.
Num regime civilizado, em que os cidadãos possam confiar nas suas instituições, o agent provocateur poder-se-á juntar à galeria onde figura o espião, até na sua imagem mais romanesca, e ao bufo. Estes estão para os círculos de poder como a alcoviteira, o coscuvilheiro e o intriguista estão para os círculos mais restritos. E são um problema para quando se pretende resolver os assuntos da forma mais transparente, consciente e justa possível. Porque é aqui que o cidadão comum se começa a sentir sozinho e rodeado de agents provocateurs, tornando-se desconfiado e deixando de participar. O que é uma pena porque, desistindo, deixa nas mãos de quem provavelmente não queria os destinos que também o governam.     

10.6.15

Meme

Meme é um termo que nos chega do grego e que significa imitação. É conhecido e usado no mundo da Internet para se referir ao fenómeno de tornar viral uma informação, sobretudo em vídeo ou imagem, e que, como um vírus, se espalha entre os vários frequentadores das redes sociais rapidamente, alcançando muita popularidade. Na semana que passou tivemos muitos que começaram no mundo do futebol e logo dispararam para outros mundos, numa expressão de gosto que, para além da estética, dariam muito para discutir. 
No fundo, a ideia de meme pode ser resumida por tudo aquilo que é copiado ou imitado e que se espalha com rapidez entre as pessoas, inclusive as opiniões e críticas para quem, mais do que parar para pensar – porque não lhe apetece ou não vê nisso necessidade – repete as dos outros, sem acrescentar nada de novo à discussão ou reflexão. Ou, acrescentando-lhe o utilizador mais interventivo, ainda que sob um manto de invisibilidade a que talvez se possa chamar anonimato, reanima o fenómeno e faz de cada “infectado” pelo vírus um co-autor do meme. Uma espécie de toca-e-foge a ver se se morde o isco.
O conceito de meme terá sido criado por um zoólogo que publicou em 1976 um livro intitulado O Gene Egoísta. Tal como o gene, o meme é uma unidade de informação com capacidade de se multiplicar, através das ideias e informações que se propagam de indivíduo para indivíduo, como o gene de pais para filhos. Os memes são estudados na Memética, e tudo, onde se aplicam conceitos da teoria da evolução à cultura humana, tentando explicar vários assuntos controversos, como a religião ou os sistemas políticos, usando modelos matemáticos.
Uma vez que a Internet tem a capacidade de atingir milhões de pessoas em alguns instantes, os memes de Internet podem também ser considerados como "informações virais", ainda que as mais repetidas só lá muito no fundo têm a informação como objectivo. De facto, também aqui a persuasão, muitas vezes levada ao limite da manipulação, encontrou um ambiente de cultura favorável para se multiplicar. 
Já se sabe que quanto mais crescemos e envelhecemos mais vimos repetirem-se situações de modo previsível e, portanto, a repetição, recriação ou imitação nesse sentido, tende a tornar-se mais legítima. Sobretudo quando na ânsia de fazer diferente se cai tantas vezes no disparate. Vezes demais, depressa e viralmente divulgadas, levando a retiradas que, não sendo estratégicas, são as únicas que uma táctica do menor estrago possível pode fazer. Os repentismos, a criatividade, o pensamento “fora da caixa” exige trabalho, conhecimento, reflexão, para além da muita perspicácia, mais até do que a inteligência, que nem sempre vai a par com a velocidade de reacção. Numa sociedade contemporânea em que nos aliciam constantemente para que usemos espaços de partilha de emoções e opiniões, o “rascunho” aparece muitas vezes como a forma definitiva. O direito à opinião acaba a abrir espaço para o direito ao disparate. Use-o quem queira, sem queixas, claro! e não achando que é um dever dos outros amparar a coisa para além do limite do tolerável, bem entendido. 

2.6.15

Fair play & no hard feelings

Fair play significa jogar limpo e, em português, chega a ser “ter espírito desportivo”. O todo transforma-se na parte para se estender a várias áreas, ou seja, parte-se do princípio que o fair play é uma das características, muito particular, do desporto e usa-se como exemplo de comportamento para as restantes áreas da vida em sociedade e até privada. O fair play acaba a significar um modo leal de agir.
Por outro lado, e reconhecendo no mundo do desporto – mas não só – as posições entre adversários e apoiantes de adversários que, por vezes, se inflamam e levam a discussões a roçar os limites da ofensa em torno do assunto – e este detalhe é importante, porque se deveria no espírito do fair play ficar-se por esse assunto –, a expressão americana “no hard feelings”, que  significa sem mágoas ou ressentimentos, entrou no léxico para além do desporto onde também começou. Por isso, às vezes usando outra área como metáfora também dizemos e ouvimos dizer “Amigos, amigos, negócios à parte”.
Ora o que se está a passar no mundo do futebol, mesmo ao mais alto e vasto nível mundial, com o já chamado “Fifagate”, o caso de corrupção na FIFA, fez-me refletir, e partilhar convosco, sobre uma mão-cheia de questões. O momento de ironia de toda esta história está também no facto de um dos lemas da FIFA ser “My Game is Fair Play” e de haver uma iniciativa baptizada com a expressão “fair play financeiro” criada pela UEFA, que tem como objetivo estabelecer um padrão de decência e honestidade financeira no futebol
Antes de mais dizer-vos que me parece que a conotação do fair play primordialmente com o mundo do desporto tem a ver com o estabelecimento de regras rígidas para que o jogo, elemento necessário à condição da competição, possa funcionar com a equidade no tratamento das partes que jogam. E, bem entendido, com a penalização respectiva e também bem definida, da prevaricação e não cumprimento das regras. É rígido? É. Mas é assim que se defende quem, podendo ser o mais fraco ou estar em situação fragilizada, tem igualdade de tratamento.
Também me parece verdade, e numa segunda questão, que não é por se saber as regras e dizer muitas vezes que se age e deve agir de acordo com elas que não há, e muito, prevaricação. Há até os muito habilidosos em usar as palavras e os actos a que essas se referem de tal maneira que, contornando e prevaricando, parece que não o estão a fazer. Por vezes a técnica é mesmo a de vestir a pele de cordeirinho, alinhar no mesmo rebanho, e, abocanhando aqui e ali, ir agindo como um lobo sem o parecer. 
Depois, este princípio de equidade, que a regra do jogo e o seu cumprimento em fair play devem garantir, quando é quebrado é, normalmente, quando se reverte o adágio popular do “Amigos, amigos” que, à frente de qualquer fair play faz funcionar o jeitinho e a atençãozinha ao que fôr, ou passar a ser, não se sabe até quando e onde, nosso amigo.
O que podemos dizer sobre esta inversão do fair play, agora neste caso concreto, no seu mundo primordial mas espelhando outros mundos, toda a vida aconteceu – com ou sem capitalismo, porque tem a ver com poder, com ilusões de imortalidade, com princípios de educação e civismo, com o sentido de comportamento ético que ou se pratica, e é visível, ou não e, talvez um dia, também seja visível e o crime não compense.
Este caso do “mundo da bola”, que também não é novidade, não nos deve é pôr a ter “hard feelings” com o mundo do desporto e da competição. Ensina-nos só, aos espectadores e seus verdadeiros amantes, que são vários os caminhos que alguns escolhem e que podemos escolher. É que a divertirmo-nos – origem do vocábulo “desporto” – também aprendemos.