25.4.17

Bem-vindos à Liberdade!

De forma particular este ano, fico satisfeita pelo facto de a minha crónica ir para o ar num dia 25 de Abril, quando termino um ciclo e recomeço outro, que a vida não pára e anda depressa. Foram oito anos em que estive directamente ligada a funções políticas públicas neste Portugal democrático, neste Alentejo do interior do rectângulo mais ocidental da Europa, nesta Cidade – ela também maravilhosa como a outra lusófona – que transpira a grande História e resiste pequenina, persistentemente, à mudança de ciclos, para o bem e para o mal. Mas deixemos as questões individuais. Não que elas não sejam importantes para falar da Liberdade, já que não podemos falar dela sem falar de Cidadania, ou Política como queiram. E esta é feita de e para indivíduos, nos seus modos diferentes de só a apregoar ou de, efectivamente, nela actuar.
Aos 43 anos de Liberdade instituída, Portugal, o Alentejo e Évora têm cada vez mais Cidadãos que se assemelham aos do resto do Mundo. Quer queiramos ou não, crenças e fés à parte, todos devemos tudo ao Sul, à África, a esse pedaço de terra que transpira em tradições perpetuadas, outra vez para o bem e para o mal, e onde, ou para onde, parece que teremos sempre de voltar para medir o nosso progresso enquanto Humanidade e percebermos o tanto que há ainda por fazer. Mas mesmo nessas diferenças, também intercontinentais, somos todos espécimes de uma imensa espécie, a humana.
Com a Liberdade instituída passámos, naturalmente, às instituições as responsabilidades. Mas cada vez mais nos “encostámos” a elas, esquecendo que também elas são feitas da mesma matéria de Cidadãos como nós. E esquecemos que usar a Liberdade, num sentido colectivo, é também saber usar essa faculdade que é o livre-arbítrio, uma possibilidade de escolher, sempre, mesmo quando não se vive em Liberdade. Quando pomos a uso o livre-arbítrio sentimo-nos, e seremos, seres humanos livres. E saber usar é coisa que requer, para além da natural inteligência de cada um, o auto-domínio, esse que, mesmo posto em prática, não nos evita sermos por vezes reféns das nossas emoções mais feridas e, como tal, incómodas. Com a vivência plena da Liberdade instituída surge, nos tempos contemporâneos, uma tendência reflectindo desgaste do seu uso: a proliferação das teorias da conspiração. Exercícios que requerem, e muito, o uso da inteligência mas que são, normalmente, resultado – transparente nos discursos e atitudes – das ditas emoções ameaçadas ou feridas. E tão anti-Liberdade...
Haverá algumas chaves para evitar essas perniciosas teorias da conspiração que, como está visto, atingem já indivíduos eleitos para governar no Novo Mundo, e que servirão para combater esse uso, exacerbado, descontrolado e tão massificado, da louvável, até historicamente, inteligência céptica. Avançarei duas. Não há teoria que resista se não houver provas, evidências, que não cabem a cada indivíduo apurar e é um fardo que recai sobre as instituições; se o tentarmos tomar isoladamente, como se fossemos os únicos inteligentes e capazes de o fazer, sem a humildade necessária, afastamo-nos até ainda mais dos que, excepcionalmente, foram um dia os cépticos inteligentes que mudaram o Mundo e fizeram evoluir a Humanidade. E depois. a confiança básica que é abalada pelo medo, esse sim uma emoção que a História já nos mostrou que, em formato colectivo, foi tão prejudicial à Humanidade, sujeitando esse colectivo a uma existência próxima do, ou mesmo, miserável.
A Liberdade requer benevolência inicial com exigência constante àqueles que escolhemos, conscientemente claro, para serem os que garantem os nossos direitos e nos exigem os nossos deveres. Uma difícil mistura equilibrada entre dúvida e confiança. Bem-vindos à Vida, bem-vindos à Liberdade!

18.4.17

Carme Chacón, metáfora de Político

Não consigo não falar de Carme Chacón, ex-Ministra espanhola que partiu “entrando tão depressa por essa noite dentro” um eufemismo que peço emprestado ao poeta. Não só porque fosse mulher lutadora, e ainda nova, e tivesse deixado um filho desasado de 9 anos, como acontece a tantas outras menos conhecidas e até menos amadas ou odiadas do que Carme. Mas também por isso, claro, que é o que nos faz sentir como próximos daqueles que não conhecemos realmente. As homenagens prestadas em documentadas intervenções suas a poucos dias de morrer, permitiram-nos uma espécie de convívio especial. Sobretudo porque a apanharam longe das câmaras da comunicação social, num circuito de proximidade, esse sim, que são as aulas e as conferências e onde tantas, mas tantas, vezes a Política pode ser, assim com maiúscula, exercida.  
Se para a fotografia popular ficou a Carme grávida de sete meses a passar revista às tropas espanholas no Afeganistão, impondo a sua feminilidade mais exclusiva perante todos, destas últimas palavras gravadas de que dispusemos como se de uma conferência de imprensa se tratasse, ficou-me a melhor metáfora para falar dessa Política maior. Não por ser mulher, não, que isso começa em certos círculos a ser um discurso contraproducente de tão esvaziado, tentativa de obstáculo para que se possa avaliar as capacidades para além do género (e por isso as Marias Capazes são mais do que Marias e também não precisam de ser Rapazes para serem Capazes!). Parece-me, aliás, este um truque “acaciano”, referência àquela personagem de Eça n’ O Primo Basílio, o Conselheiro Acácio, a quem bastava aparecer para fazer figura, e que a enciclopédia mais popular do mundo até explica muito bem, falando dele como “representação da convencionalidade e mediocridade dos políticos e burocratas portugueses dos finais do século XIX, sendo até à actualidade utilizada para designar a pompa balofa e a postura de pseudo-intelectualidade”. E não menos mau é a prática e consequente elogio do simplismo como alternativa a isto... Em suma, o que não falta por aí é quem tome, sem descriminação de género, Acácio por modelo, gerando-se uma expectável “reacção anti-isto” a quem tenha dois dedos de testa, já que mais não fazem, esses Acácios, do que muito falar e pouco dizer, pouco pensar e muito reproduzir.
Carme proferiu palavras que parecem coincidentes com a sua opção de vida: o reconhecimento do exercício do poder como algo superior, sem falsas modéstias. Quem o teve, ao poder, e o exerceu de facto, sabe o quanto o risco da responsabilidade pode ser viciante, pela possibilidade de melhorar sem deixar os créditos próprios por mãos alheias, e como a recusa de assumir o poder sem noção da responsabilidade estar fora de questão, correndo-se até o risco da impopularidade, de que Carme não esteve isenta.
E depois Carme escolheu o rumo da sua vida (ainda que curta depois disso, mas ninguém podia adivinhá-lo e a vida é isso mesmo, afinal), escolhendo o que sacrificar. Fê-lo até, novamente sem falsas modéstias, alegando a ingratidão dos outros pelos sacrifícios escolhidos na vida política. E isto leva-me a imaginá-la (só isso posso fazer) e a julgá-la pelo que terá feito na vida política também assim, escolhendo o que seria melhor dentro do possível. Não me choca nada e acho natural que Carme passe a ser uma referência feminista. Mas foi por ter sido assim, como a imaginei depois de ver aquela gravação caseira, como um Político que se assume, mais do que por ser mulher e mãe e professora, é que eu não consigo deixar de falar de Carme Chacón e de imaginar também a falta que vai fazer aos que aprendiam, a todos os níveis, com ela. 

11.4.17

O bom e o mau ladrão

Começo com um aviso aos ouvintes e leitores desta crónica: se o recurso à ironia perpassa muitos textos de forma mais ou menos velada, com intenção até de criar equívocos que podem ser sempre desculpados com a coincidência, embora eu prefira chamar-lhe habilidade em aproveitar beneficamente as circunstâncias, esta crónica é quase toda ela declaradamente irónica. Inspira-se no regresso de Isaltino à vida política institucionalizada e imbui-se do espírito pascal da semana, evocando a parábola dos bom e mau ladrões que, dizem, acompanharam Jesus Cristo na mesma sorte de sentença pela crucificação.
Não tenho grandes dúvidas de que há por esse país fora muitos autarcas (mas não só) que tendo exercido a tempo inteiro, de alma e coração, suor e lágrimas, funções políticas por definição nobres e imprescindíveis, estejam profundamente saudosos das mesmas. O ritmo alucinante que as responsabilidades de tais funções exigem, à partida, deixa uma espécie de síndrome de abstinência. Alguns conseguem ultrapassá-la, outros contorná-la procurando formas de exercerem o mesmo cargo após hiato ou alteração geográfica legalmente possíveis. A Isaltino Morais não terão sido alheios alguns destes sintomas, sobretudo quando amparados por uma legitimação popular expressa no voto, felizmente democrático.
Mas, quer queiramos quer não, e pese embora muitas vezes o valor do conjunto não ser qualitativamente o mesmo que a aritmética soma das partes, a eleição política, em diversos âmbitos institucionais, diz-me muito mais sobre os eleitores do que sobre a pessoa eleita. Até porque, naturalmente, sobre o eleito e enquanto convicta adepta e praticante do voto, tenho por hábito formar a minha opinião enquanto ela ou ele é ainda elegível, independentemente dos resultados que obtenham e que, natural e democraticamente, aceito mesmo quando não gosto. O aceitar é um gesto orgânico por isso dinâmico que, nalguns casos, faz sobre-valer a atitude pontual de bom senso à má impressão do resto da atitude e do comportamento assumidos.
Nesta Semana Santa de uma tradição que distingue o culpado que se arrepende do culpado que tenta o tráfico de influência com Jesus para escaparem todos, solidariamente, da pena, através de uma parábola que na arte de bem contar ganharam os nomes de respectivamente Dimas e Gestas, revejo a atitude esquizofrénica da opinião pública considerada na sua massa informe e indistinta, aquela que, para além do sistema democrático, também permite à ciência e à técnica evoluírem, isolando apenas pontual e excepcionalmente os que são dissonantes desse comportamento do colectivo: os primeiros que, antes de ser provada a culpa ou comprovada a inocência, já estão a crucificar uns proactivamente à aplicação da Justiça, são os mesmo que, depois da Justiça condenar por provas dadas de crime e, cumprida a pena ou parte dela, reintegram na sociedade os que se viram privados de nela participarem durante o cumprimento da sentença. E isto, cristãos ou nãos, só pode deixar uma alma descansada, certo? Embora talvez um pouco baralhada e quase tentada a querer crer que num outro tempo para além da vida, onde nada se passará assim, será um amanhã que canta, num reino que não é deste mundo. 
Eu cá prefiro aproveitar a Páscoa para interromper por breves horas alguma rotina e provar um bom docinho feito de ovos, do que acreditar que o anjinho ou o diabinho que se sentam um em cada ombro de uma alma que dê ouvidos a esses serzinhos, algum dia se vão derrotar um ou outro e deixar a alminha em paz. Bom mesmo, é poder não dar ouvidos a essas vozes e encontrar a conduta que, mesmo solitária e pesada, nos traça um caminho duro mas sem penas. E que é o que desejo a todos os meus amigos, sempre. 
A todos os ouvintes e leitores, os meus votos de uma boa e santa Páscoa! 

4.4.17

O aeroporto, o busto e o zeitgeist

O busto não é o tipo de peça de arte que mais me agrada. A imobilidade da expressão em 3D, mesmo quando colorida por tons ditos naturais, lembra-me uma mortalidade que não se aceita. Deve haver muitas técnicas que evoluíram e distinguem, nas características das obras, as épocas de criação e o estilo dos seus criadores. Essa é, aliás, a opinião que mais conta quando alguém, perito, ajuda um leigo interessado a apreciar o que quer que seja. A outra opinião, uma questão de gosto, fica-se pela emoção, necessária mas volúvel, sempre mais sujeita a declarações sem argumento.
Dos bustos que conheço, os que fogem ao chamado “clássico” são sempre objectos criativos e estéticos mais suculentos enquanto tema para discussão, do que as figuras que retratam para uma posteridade sempre efémera. São como os prémios, títulos e galardões: há os que enaltecem a quem são atribuídos, há os que promovem quem os atribui. No fundo, bustos, prémios, títulos e galardões são metáforas de qualidades fragmentárias de um indivíduo ou uma instituição. Vivemos aliás numa época em que até as más qualidades têm direito a prémios com nome e cerimónia própria, como os Razzies, em português Framboesa de Ouro.
É neste espírito de época, o tal zeitgeist, que um baptismo de aeroporto e um busto como legenda desse mesmo acto, podem ser criticados. Eles são uma parte, incontestavelmente coerente, do que se quer dessa época e desse espírito que fique para a dita posteridade. Eles revelam a forma como as instituições se comportam, seja num rectângulo ao fundo de um continente ou numa pérola no meio do oceano. Eles revelam os destinatários previstos da esmagadora maioria dos actos públicos, sejam de que espécie forem. Eles revelam o poder ou a incapacidade de fazer valer argumentos. Eles revelam que aquilo a que chamamos Povo, depois de todo um século que foi o anterior lhe ter sido dedicado, não é uma massa uniforme, mas um caleidoscópio desconcertante, por vezes desconcertado, cuja identidade múltipla é usada, como sempre o foram os grupos, por quem lidera e se constitui como uma elite, mesmo quando saída, por sufrágio, da vontade e da própria matéria que é o dito Povo.
Posto isto, depois da ironia, do ensimesmamento, da autoparódia definitivamente instalados no pós-modernismo popular, e a que podemos chamar também cultura no seu sentido de ciência do costume, tudo o que se passou, para ficar durante um tempo dito para sempre numa gare aonde aterram meios de transportes aéreos, é de uma louvável coerência. Nem que para muitos seja só e apenas isso. Uma coerência consonante com o ano da graça de 2017.

Se fosse noutra época, e fazendo um exercício de equivalências empíricas e sensíveis, estaríamos talvez a falar do baptismo de um bonito apeadeiro de comboio numa bela paisagem que abre, e bem, os braços para receber visitantes; estaríamos a assistir ao apadrinhamento por parte de um defunto monarca, nobre, militar, político, artista (talvez ainda nenhum actor ou nenhuma actriz), engenheiro, médico ou professor, a quem os que governam decidiram (sempre eles, claro, que é para isso que existem, pese embora as diferentes formas de o fazerem), para além do nome, contratar ao abrigo da velha prática do mecenato, quem de renome retratasse o morto em vivo, de pedra ou bronze. No século XXI, em Portugal (mas não só), onde o futebol é a prática que mais espectadores indiferenciados reúne pontualmente para entoar uníssonos, onde nasceu um dos melhores exemplos que proporciona essas reacções, onde os aeroportos são territórios de passagem de multidões, onde o simultaneamente retratado e padrinho está literalmente alive and kicking e tem uma palavra a dizer, e um artista autodidacta, a quem a sociedade inteira disse que lhe era permitido realizar tudo o que sonhasse, o que se passou na Madeira não me levanta dúvidas. E devo acrescentar que não me desagrada, embora tenha tido em mim o tal efeito Coca-Cola e, primeiro, estranhei. O resto? O resto é só efeito de um zeitgeist que teima em ficar, contraditoriamente, para a posteridade.