29.12.15

Futuro

E vamos chegando ao final deste ano de 2015, em que a novidade parece ter sido a palavra que descreve a vida política, a portuguesa e não só já que tivemos as reviravoltas na Grécia e as surpresas na Espanha, e assistimos a lampejos de situações que muitos diziam possível, mas quase só no campo dos desejos que imaginamos, incrédulos.
Estranhámos que vencesse eleições um governo austero e armado em justiceiro cego, que não é o mesmo que ser da família da Justiça que venda – ou devia vendar - os olhos para agir, desconfiando que afinal quem tanto reclamava não se deu ao trabalho de sair de casa para contribuir para alguma mudança. Estranhámos que aqueles que acabaram, nesta legislatura, a representar no Parlamento os outros que saíram de casa e votaram, se combinassem para mudar o rumo político. Tanta novidade que estranhámos promete-nos, em termos políticos, um pouco mais de expectativas para 2016. E depois, também houve quem quisesse ver, ou fazer ver, novidades em coisas que já se faziam há bem mais de um par de anos, mas isso tem só que ver com assuntos da “nossa rua”, locais quero dizer, e a que darão importância os mais atentos e com melhor visão para estas minudências.  
Ao terminarmos este ano em que, na minha maneira de gostar de ver Portugal a construir-se, se lançaram os dados para uma ponderação e moderação de um sistema de governação que amadurece, não posso deixar de alimentar uma esperança que sentia ansiosamente pronta a manifestar-se, mas ainda sem oportunidade. Muito do que temos em nós de otimismo, tantas vezes reprimimos – quase supersticiosamente – com medo que a realidade o roube. E é por isso que alguns tomam cautelas, mesmo quando por princípio sentem confiança no cenário montado mas aguardam com expectativa o desempenho dos atores.
«Crer para ver» escreveu o Vergílio Ferreira, e são estes os verbos que traduzem o meu presente e que projetam no futuro próximo (próximo porque a idade e a condição humana não permitem grandes voos) o meu e o de muitos otimistas.

Um bom 2016 a todas e a todos.

22.12.15

Natal e Amor

«O vocabulário do amor é restrito e repetitivo, porque a sua melhor expressão é o silêncio. Mas é deste silêncio que nasce todo o vocabulário do mundo.» É também assim que Vergílio Ferreira pensa a expressão do Amor, esse conceito que tem alturas do ano nos calendários coletivos ou particulares para se celebrar. E o Natal é a quadra que o mundo ocidental de influência judaico-cristã escolheu para comemorar o Amor (com maiúscula mesmo) e re-atualizar o nascimento de um messias de nome Jesus.
Se me importava aproveitar a crónica de hoje para desejar um bom Natal aos ouvintes e leitores, não deixei de achar estimulante associar aos votos da quadra a reflexão sobre o uso – bom ou mau – das palavras e a valorização do silêncio que Vergílio Ferreira faz, tão mais importante quanto associada a esse universal sentimento. Esta dádiva que é ter o privilégio de que um silêncio signifique tanto para, pelo menos, duas pessoas, que se transforme em símbolo de uma intimidade construída na base do entendimento e da reciprocidade, só pode também ter que ser relacionada com as trocas de presentes que, quais Reis Magos, repetimos por esta altura. E será assim que também passámos a aplicar a máxima do Natal ser quando um Homem quiser.  
Aquilo que damos para agradar aos outros é entendido, mesmo sem palavras, no gesto e no objeto da nossa dádiva, como um mútuo conhecimento e um reconhecimento do que cada um representa para o outro. Sem alardes nem ostentação, é o que tem ou o que pode ser. Um ter e um poder que, mais do que o ruidoso embrulho de papel e laço brilhantes e coloridos, prometem uma entrega que não é vazia mas silenciosa, e recebida assim mesmo. Um silêncio que só será ensurdecedor para os desentendidos. E se os há, aos silêncios, dolorosos, é porque se comunica assim a dor e se recebe resposta de quem a entende. E entender esse silêncio é também uma prova de Amor. É nesta relação das palavras ao silêncio que se joga não só no campo do Amor, mas no da Inteligência e das suas diversas variantes, mas isso é assunto que está para além da quadra, claro!     
Deve ter sido a pensar nesse silêncio pacificador que o padre alemão Joseph Mohr escreveu em 1818 a Stille Nacht uma das canções natalícias mais ouvidas e a que a tradução mais comum para o português interpretou como Noite Feliz.

Desejo-vos a todas e a todos um Feliz Natal! 

15.12.15

Encenações

Já o disse antes, e confirmo-me essa opinião, que os tempos no mundo da Política portuguesa estão em mudança. O que dela resultará é o que interessa aos mais distraídos ou aos que conscientemente se querem ver afastados do quotidiano deste mundo. O que faz quem vive estes momentos, como numa decisão real de decidirmos que caminho tomar numa encruzilhada, é escolher o que se entende ser o melhor para que se chegue a algum lado, numa rede de vontades, possibilidades e disponibilidades. Parece-me que no Mundo em geral, esse a que o bom velho Shakespeare chamou um palco, misturando-lhe a Vida com os atores a entrarem e a saírem de cena a seu tempo e representando os seus papéis, os cidadãos comungam de um juízo apriorístico relativamente aos atores políticos independentemente do texto que sobe à cena. E a honestidade não entra, pela positiva, nesse juízo, o que mais do que levar à procura de culpados para que assim seja, resulta logo num prejuízo para todos. Quanto mais não seja porque leva aos que o são, os honestos portanto, muito mais energias a prová-lo quando poderiam a estar a aplicá-la ao serviço dos outros e não na defesa da sua própria identidade e honra.
Sobre a honestidade e a sua adaptação infeliz quando há entre os indivíduos pouco saudáveis relações de poder (e dinheiro, sim, o dinheirinho que faz girar o Mundo mas também põe tudo de “pernas para o ar”), o Vergílio Ferreira, que dividia muito mais a sociedade em classes pela existência dos indivíduos que a compõem enquanto Homens que são e não pelo que têm, ou seja por valores e não por preços, afirmou: «A honestidade é própria das classes médias. As de baixo não a ignoram, mas não sabem para que serve. As de cima não a ignoram, mas não sabem para que ainda serve.»
Mas voltemos à metáfora shakespeariana e pensemos em aplicá-la ao mundo da atualidade política. Eu deixo a ideia e os meus caros ouvintes e leitores farão o exercício de a pensar e aplicar ao que lhes interesse, se estiverem para aí virados. Como num palco, também aqui se adaptam os textos definidos e decididos por quem encena, de acordo com quem escolheu ou podia ter escolhido para tal, e o levará ao público que são, também esses mas, todos os outros. E aqui, nestes momentos iniciais, projeta-se a encenação, preparam-se os atores, ensaiam-se todas as artes e técnicas, naturalmente e como tem de ser no recato sem espectadores, para se proporcionar a esses mesmos espectadores, que são a razão de ser de tudo aquilo, algo de útil… até mesmo a felicidade de cada um.
Nos ensaios haverá muitas situações que o espectador desconhece e que apenas dizem respeito a quem lá está, a trabalhar antes que o pano suba e se prepare o que interessa, o resultado final. É para estes bastidores que alguns tentam espreitar para conhecer o making of e essa impossibilidade gera a especulação. Se as há, a esse tipo de especulação, que criam expectativas que nos fazem ser melhores espectadores, também as há que estão mais interessadas em desviar as atenções e tirar antes mesmo da estreia o valor àqueles que como os espectadores pagaram bilhete para assistir e julgar, com argumentos, se é bom ou mau ou assim-assim e se há ou haverá quem faça ou faria melhor para o deixar satisfeito.
Ora são muitas vezes esse tipo de especulações com agenda própria que levam a que bons textos, com determinados encenadores, atores e técnicos acabem com salas vazias e outros, não forçosamente melhores, sejam sucessos de bilheteira. Mas é quando “chega uma companhia nova à cidade” que temos a oportunidade de, sem pré-conceitos, ajuizar do seu valor e, já agora, arrumar onde têm de ser arrumados os paparazzi com ambições de fazedores de opinião, o que não é a mesma coisa que ser um comentador.

8.12.15

O Riso

Muito se riu na Assembleia da República no final da semana passada. Eu que mais uma vez fui de encarregada de educação levar uns jovens à Comic Con Portugal, na Exponor, quase achei que os astros se tinham conjugado com os diferentes calendários levando a que vários grupos societais, como agora se diz, ficassem “apanhados do clima”, que é como se diz há muito tempo. Falo do calendário do firmamento, do da cultura Pop e do do Parlamento.
Até me podia parecer saudável esta nova dimensão de tratar a Política e que não é exclusiva dos Políticos eleitos pelos Cidadãos. Ou então estaria a entrar em contradição comigo mesma, já que faço um esforço para matizar com “proto-larachas” esta e outras crónicas que fiz e farei. A moda de pôr o Povo bem disposto a propósito de coisas muito sérias é velha e teve mestres, do qual Gil Vicente é exemplo maior e conhecido. Mas nos dias corriqueiros de hoje, a função do que se quer hilariante vai desde os comentadores espirituosos da Rádio e da TV que a rir, ou para fazer rir, lá vão dizendo das suas, acertando daqui e dali. O que pode ser útil para manter o cidadão comum desperto mas só muito remotamente contribuir para que, neste campo, exerça melhor o seu direito de eleitor. E vai também até às notícias que recorrem a um estilo estranho e utilizam-no sobretudo nas parangonas mais ou menos discretas, e sim falo nesse aparentemente novo politicamente correto modo de se chamar as coisas por uns nomes, como se “chamar os bois pelos nomes” fosse outra coisa mais do que falar claro e sem subterfúgios. Se não fosse trágico para a profissão dos comunicadores até seria cómico.

Mas ainda mais me convenci do alinhamento astral quando me dei conta das novas metáforas usadas pela galhofeira oposição ao novo governo, recorrendo precisamente à linguagem em siglas próprias e pops das redes sociais em voga. Do BFF ao LOL os deputados estão no bom caminho para entrar no mainstream da linguagem cibernauta e estarem como peixinhos nas águas mais doces e fáceis da cultura pop. É um bradar dos céus (eu sei que é “aos céus” mas como as expressões vêm da nuvem informática, apeteceu-me dizer assim), o que revela bem o nível a que se chegou em matéria de já toda a gente dizer tudo em qualquer lugar, indistintamente. Enfim, o “meu” Vergílio Ferreira tinha, na minha opinião, toda a razão quando dizia a este propósito e destes propósitos: «Rimos francamente, se a piada vem de um tipo do nosso nível. Rimos com deferência, se de um nível superior. E só por condescendência sorrimos, se vem de um tipo de nível inferior. É que o riso é uma concessão e nós somos muito ciosos da nossa importância.»

1.12.15

Saber ler

E pronto, lá temos um governo que se atirou à sua tarefa num ambiente de pioneirismo que acorda esperanças, mas também receios, como qualquer estreia. A novidade política deste 21º Governo de Portugal assume-se, atrevo-me a dizer, como uma espécie de Democracia 2.0. Ou seja, e para me fazer entender pelos menos habituados à linguagem da informática e tecnologias, uma versão actualizada do que tínhamos antes.
Avaliados todos os requisitos legais fundamentais para que tudo isto não descambe para outra coisa que não seja a “boa da Democracia”, que até nos países que ainda são reinos também se instalou, lá se atreveu o Presidente da República a seguir as regras e fazer, mais ou menos contrariado sabe-se lá porquê, o que tinha de fazer. E ao contrário do que acontece quando se seguem as rotinas e que, muitas vezes por inércia, vamos aceitando como “normal”, este momento político é em si-mesmo um momento fracturante. É-o até por exigir que se esteja um pouco mais atento aos palcos da política, talvez resultando, oxalá, numa participação mais expressiva, porque esclarecida, dos eleitores quando tocar a ir às urnas.
Mas não podemos menosprezar o papel dos meios de comunicação social, sobretudo os amadores, e falo das redes sociais, que replicam tantas vezes irreflectidamente a opinião dos, em princípio, profissionais. Não haverá uma democracia sem informação dos cidadãos e, como tal, são aqueles que tratam dessa parte da vida política também actores principais do sistema. Com direito às leituras pessoais num espaço claramente identificado como de opinião, há que não confundir entre o facto e o que se constrói em torno dele. E se de opiniões vamos tendo para todos os gostos e ocasiões, os factos são o que mais difícil, em meu entender, é de transmitir pelos órgãos de comunicação.
Nos dias que correm, e já há muito, não é de agora, não é raro assistirmos e se estivermos atentos, só um bocadinho, como um mesmo indivíduo pode, contraditoriamente, citar uma fonte vociferando de espanto e indignação, para uns dias depois aceitar a dúvida levantada por essa mesma fonte, com o argumento de que onde há fumo há fogo. Ora, se partirmos de um princípio em que, não promovendo a desconfiança mas aconselhando um cepticismo razoável (sempre o instável razoável!) seria prudente fazermos sempre que necessário várias perguntas antes de darmos a nossa própria resposta a uma questão. Poderemos assim ser sempre melhores leitores do que se passa no mundo e à nossa volta.

O Vergílio Ferreira às vezes, muitas, irritava-se com os Portugueses, alguns Portugueses digo eu, tal como outros prosadores e poetas, como o Eça ou até o Camões que põe um ponto final às aventuras dos bravos Lusíadas com a palavra “inveja” (e isto tem de significar qualquer coisa, não está ali só para rimar!). E Vergílio escreveu um dia que nós, os Portugueses, "Somos um povo de analfabetos. Destes há alguns que não sabem ler." Longe de poder parecer um desabafo elitista, o pensador português sabia que nem todos os que têm a oportunidade de aprender, aprendem. O que é uma pena, mas enfim, cada um sabe de si…

24.11.15

Como é viver hoje?

Todo o ambiente político que temos estado a viver nestas últimas semanas - no resto do Mundo e no País e até na região - nos faz pensar, de forma “redonda”, em que pensar de tudo isto. E de como será de agir daqui para a frente na nossa vida quotidiana, pessoal e na comunidade, muitas vezes até apenas exercendo o que continuamos a querer cumprir como dever cívico, e participar na escolha dos que se predispõem a governar-nos em vários níveis. Não me ocuparei, para já, a ensaiar pensar esses que são escolhidos pelos outros. Seguramente não me faltarão oportunidades de tentar mapear e orientar-me no que são as condicionantes e opções, que os governantes tomam, e se nos colocam para avaliarmos e fazermos as nossas próprias opiniões e consequentes ações. E é que para isso precisamos mesmo de reaprender a pensar os factos que temos à frente.
O ambiente político atual passa pelo terror, em que uma forma de guerra nova nos transforma em potenciais e inesperadas vítimas fora de um campo de batalha; e passa por reinterpretações de várias e inquestionáveis lógicas dos atos eleitorais a que nos habituámos, enquanto Povo português, nos últimos 40 anos; mas também passa por assistirmos a quase incompreensíveis reviravoltas de discurso que me fazem pensar que o poder das palavras saiu do domínio da comunicação tout-court e se barricou no discurso onde todos os equívocos são aceitáveis, onde o da ficção tem lugar central.
Tudo isto só pode, logo à partida, baralhar as pessoas. Essas mesmo em nome de quem tudo o resto se diz fazer. Quando queremos responder às perguntas mais simples, porque ingénuas, mas das mais difíceis porque sem resposta direta, teremos sempre de fazer tão longos e demorados discursos, o que é uma forma quase anacrónica de vivermos porque os tempos são de tweets, soundbites e buzzwords. Ou então fazemos poesia, como aquele pai que ensina ao filho que nos protegemos dos “homens maus” (leia-se terroristas) com flores e velas.

Já na reta final da sua vida, Vergílio Ferreira escreveu nalguns dos seus pensamentos o que não poderemos considerar conselhos, pois a ironia sarcástica com que pensou os tempos – os dele que já visionariamente olhava bem por dentro e se prolongaram à flor da pele nos nossos – são mais desabafos do que outra coisa. Um deles diz isto: Não penses para amanhã na urgência de seres agora. Mesmo logo à tarde é muito tarde. Tudo o que és em ti para seres, vê se o és neste instante. Porque antes e depois tudo é morte e insensatez. Não esperes, sê agora. Lê os jornais. O futuro é o embrulho que fizeres com eles ou o papel urgente da retrete quando não houver outro. E este pessimismo é por instantes tão contagiante… Resistamos, porém!

17.11.15

A morte que nos separa

A chacina voltou ao lugar que lhe é estranho: a cidade contemporânea da civilização ocidental. E foi também isso, naturalmente, que consternou talvez mais de meio mundo. Não quero com isto dizer que haja outros lugares onde a chacina não seja condenável. Ou outros tempos em que, por serem Passado, se tentam (e como tentam) que se perdoe. Quero hoje apenas sublinhar um facto que facilmente comprovo na minha condição de cidadã portuguesa, a viver na Europa, ligada por interesses próprios e profissionais a outras culturas tão ocidentais como a minha. É daqui o meu posto de vigia. É daqui que consigo sentir melhor os que estão em condições semelhantes à minha. Em Paris podia ter sido eu. Em Beirute, nem por isso. E a mão que matou foi a mesma, o que acontece é que não está nos meus planos, de momento, ter Beirute como destino.
Os que nasceram em civilizações que parecem ter no seu ADN um gene beligerante também têm direito, um dia, um ano, um século destes, a fartar-se. Cansados da guerra que, como cidadãos comuns que ali nasceram, não conseguem interromper porque a guerra se institucionalizou. Porque ainda não houve força suficiente por parte de alguns que arrastam muitos para se mudar o rumo. Talvez porque os métodos são os mesmos e, naturalmente, se declarar guerra à guerra. Talvez. E partem para outros lugares, os mais próximos daquele que considero o meu lugar.
O sentido inverso também acontece. E há os que nasceram no mesmo cenário que eu e que partem para lá. Vão aprender a matar e a morrer em nome de algo que lhes é apresentado como maior do que o que tiveram à nascença. O que falha nisto tudo? O ser humano, bem entendido. E aqueles que tão seres humanos como os outros se disponibilizam e entregam a governar em nome dos outros. Solução difícil e não à vista.
Se a dor da morte dos que estão mais perto de nós se imagina igual à dor dos outros mais longe o que falta é que o acesso a esse valor da Vida também se globalize. Como no campo do dinheiro e dos negócios, a Coca-Cola ou a Pepsi, a Nike ou a Adidas, a Apple ou a Microsoft. Palpita-me que seja o Amor, a resposta. Mas o Ódio anda-lhe tão próximo…

O Beatle John Lennon pediu-nos para imaginar, cantando a Esperança. O meu Autor, protagonista desta série de crónicas , escreveu-o assim com um pensamento que partilho (e que por vezes, tantas e demais, descamba para o pessimismo cínico): Imaginemos que toda a gente tinha a mesma política, religião, etc. Nem por isso se viveria mais em paz. Porque logo se descobririam diferenças naquilo que a todos unia. E paralelamente surgiriam as discordâncias, invejas e ódios subsequentes. Porque não é a ideologia que no fim de contas divide. A ideologia é apenas um bom pretexto. O que nos divide é a importância da nossa pessoa e o grupo extensivo a que nos recolhemos. O que nos divide é a individualidade que não tem misturas ou só as tem com quem prolongar a pessoa que somos. (Vergilio Ferreira)

10.11.15

Esquerda, Direita, Volver

O ambiente político anda no mínimo interessante em Portugal. Há uma espécie de comemoração de acontecimentos de há pouco mais de uma geração atrás, com alguns protagonistas que não sendo propriamente novos não poderão, à exceção talvez de Jerónimo de Sousa, argumentar, como há 40 anos, estarem ainda a sentir na pele o quase meio-século de um regime totalitário fascista. De facto, os principais atores políticos do momento queixar-se-ão ou dos últimos austeros 4, ou dos democráticos 40 em que não estiveram no governo. Aparentemente, o que resultou das eleições de 4 de outubro poderia dar oportunidade a partidos que nunca estiveram no poder central para exercer ministérios e assumir essa outra responsabilidade na Política que é governar. Parece que assim não será e, num remix inédito, muito se discutiu, acordou, concordou para se manter a alternância que tantos dos que a permitem agora vilipendiaram.
Parece também que este governo de um partido, que alguns considerariam há 4 anos atrás tão de direita como o que será derrubado no Parlamento, volveu à esquerda. Se não o fez já ou fará logo que empossado, terá então de inaugurar-se em Portugal todo um novo léxico para designar os lugares ideológicos. É que ficam, os mais distraídos destes assuntos e que é bom de ver serão a maioria dos Portugueses, um pouco baralhados e com falta de uma mediana como termo de referência. A alguém servirá, num futuro que me atrevo a palpitar não muito distante, esta mudança para parte incerta dos jeitosos conceitos da esquerda e da direita no mundo dos Partidos.
O “meu” autor que viveu com 60 anos o 25 de abril teve à época alguns dissabores por não se ter querido encaixar militando em partidos que, pasme-se, detinham efetivamente por aqueles anos o monopólio da edição de livros e da instituição cultural que é a crítica literária. Talvez por isso, num dos seus últimos livros que intitulou Pensar, ouvimos Vergílio Ferreira a refletir sobre estes lugares medidos a partir de um eixo que nos querem fazer imaginar, dizendo: Os políticos que se dizem de esquerda, por ser o bom sítio de se ser político, estão sempre a afirmar que são de esquerda, não vá a gente esquecer-se ou julgar que mudaram de poiso. Mas dito isso, não é preciso ter de explicar de que sítio são os actos que a necessidade política os vai obrigando a praticar. Como os de direita, aliás, que é um lugar mais espinhoso. O que importa é dizerem onde instalaram a sua reputação, na ideia de que o nome é que dá a realidade às coisas. E se antes disso nos explicassem o que é isso de ser de esquerda ou de direita? Nós trabalhamos com papéis que não sabemos se têm cobertura, como no faz-de-conta infantil. Mas o que é curioso é que o comércio político funciona à mesma com os cheques sem cobertura.
Ser-se de esquerda ou de direita não é o mesmo que se ser canhoto ou destro. Nem mesmo já numa época em que não se contraria esse jeito de segurar as coisas com as mãos. Mais do que nunca, e apesar da dificuldade que é definir outros nomes abstratos mas que nos tocam o dia-a-dia, é preciso saber-se como se atua não à direita, nem à esquerda, mas norteados pelo sentido de justiça, com coragem, sabedoria e moderação. Soa a virtudes cardinais a uma distância platónica? Pois soa, mas ninguém disse que era fácil.

3.11.15

O Futuro

Por muito que a vida dos cidadãos prossiga no dia-a-dia para além das incertezas de quem nos governará, a atual situação deve ainda assim deixar pelo menos expectante muita gente, a avaliar pelos desabafos de com quem me vou cruzando tenho ouvido. No fundo, presumo que, independentemente da margem em que se esteja do rio, mais ou menos a ver passar quem por lá navega, a esperança é que o rio tenha água e que quem dele cuida, porque dele dependemos, o faça da melhor forma. Às vezes sem muita fé, sobretudo na sequência de uma autoinfligida crise de confiança que alguns dos próprios candidatos a governantes atravessam arrastando todos os outros, justa ou injustamente. Só de facto não está submetido ao duro escrutínio de estar no poder quem lá não esteja, e às vezes nem queira estar. Ficar nas margens a ver passar quem governa a corrente é sempre o lugar mais resguardado, quer seja vivenciado com maior ou menor inquietude, atividade, empenho ou indiferença. É que, por muito pouco respeitada que esteja a política pelo cidadão comum as suas vidas dependem muito mais dela do que os indiferentes possam talvez suspeitar…
Quem está por isso mais atento por ter atividade, profissional ou de intervenção ativa, que dependa dos atores e ações dos governantes, deita-se a tentar adivinhar o futuro projetando cenários que, até no “pim-pam-pum” da escolha aparentemente aleatória, são previsíveis. Se na rima lúdica de escolha a contagem das sílabas métricas pode fazer recair sobre um outro escolhido, mais à frente ou atrás na roda, quando se conhece o percurso dos atores que ditarão o futuro do Governo de Portugal talvez seja mais certa a previsão sem certezas antecipadas. O que me parece por demais ridícula é a atitude de quem olha este futuro, nesta área, mais do que colocando hipóteses, que tenho ouvido bem colocadas por gente das duas margens, irrompendo em histerias que vão até mais longe e mais alto do que muitos soundbites lançados por quem deles vive, quais claques de uma regata em que parece só ser possível que ganhe aquele que, por se terem afundado os restantes concorrentes, chega à meta em primeiro.
Bem sei que muitos esquecerão, metidos no mesmo baú trancado e selado, os disparates cuspidos ou as afirmações convictas que antes da corrida chegar ao fim se foram dizendo em público. E é pena. Mas é também humano. É a memória seletiva com que contamos mesmo no interessante exercício intelectual de juntar factos, dados e conjeturar. Pode parecer trabalho a mais para valer, quanto mais não seja, um voto numa urna em dia de eleições, mas olhem que acabará por contar para decidir quem nos governa. O Vergílio Ferreira escreveu que Tentar provar o futuro é muito mais interessante do que poder conhecê-lo. Como no jogo, não o ganhar, mas o poder ganhar. Porque nenhuma vitória se ganha se se não puder perder. E eu concordo. 

27.10.15

Pessoas, Animais, Natureza(s)

Com a tomada de posse dos deputados para a 13ª Legislatura na Assembleia da República e consequente estreia de um  deputado que sozinho representará um novo Partido, o PAN, começaram logo a surgir nas redes sociais os ataques que (habitue-se senhor deputado!) fazem parte da vida de quem a passa, até por querer, a ter pública. Nada de estranho, a não ser ouvir de quem se diz democrata argumentos de ataque que se lançam neste ou naquele comentário que, imediatamente, faz com que essa dita atitude democrata, afinal máscara, caia. As opiniões, todas livres de existirem bem entendido, deixam de pertencer a um determinado sistema de argumentação quando lhes ignoram a regra. Passam a ser outras coisas, como insultos ou desabafos, graçolas ou queixinhas, de preferência a dizerem-se em privado, de modo a evitar que todas as restantes afirmações sejam entendidas também não como opiniões a considerar com seriedade, mas fugazes momentos de alguma, até desculpável, humana e saudável loucura, associada a maior parte das vezes ao humor.
Bem, mas para o que eu queria chamar mesmo a vossa atenção era para este novo Partido, tão focado numa causa com a qual não tenho grandes afinidades – a do lugar primordial dos animais na sociedade contemporânea – embora goste muito dos bichos, seja incapaz de maltratar algum e entenda que para muitas pessoas eles sejam absolutamente fundamentais para que possam viver melhor as suas vidas. Também não gosto particularmente do espetáculo tauromáquico, nem em termos estéticos, mas admiro uma boa pega, como aliás há uns anos atrás já o disse numa crónica. Por muito que lide com a minha gata como um dos de cá de casa, e em caso de catástrofe a salvaria primeiro do que qualquer outro bem, bicho é bicho, gente é gente. 
Interessa-me muito seguir o que fará este deputado naquele “circo de feras” em que se consegue transformar a Casa da Democracia, não nos momentos saudáveis de discussão mais ou menos inflamada, mas sobretudo em movimentações mais reservadas. Até porque parece-me ser um Partido completamente arredado das classificações de lateralidades à esquerda, à direita ou ao centro, num baile que já vai sendo, às vezes, mais de piruetas de fim de festa do que de coreografia com princípio, meio e fim. O deputado André Silva (curiosa combinação de nomes já que, etimologicamente, André deriva de “homem” e Silva de “floresta”) vai, talvez, dar que falar, ou não fosse ele representar os votos de aqueles que clara e inequivocamente se declararam Verdes, passando a constituir uma ameaça aos que desde há, mais ou menos décadas, reclamam para si o monopólio dessas causas. Pelos vistos não o fizeram bem ou os que não se sentiram representados não teriam eleito André Silva.
E foi a pensar nestas naturezas dos partidos, das pessoas e dos animais que dei com este breve texto de Vergílio Ferreira que partilho convosco:

Não se constrói o mundo só com a parte minúscula do homem, que é com que os pregadores do futuro julgam poder construí-lo. Há a outra parte, a interesseira, a comilona, e é essa parte que vós acenais para a ilusão. A parte grossa, a parte animal em disputa, a que dá facadas por causa de uma sardinha, a que dá tiros por causa de um olhar em desafio, a que dá pontapés numa pedra só porque tropeçou nela, ainda que fique ele pontapeado, a que rosna por causa de um osso, a que de todos os horizontes possíveis só distingue o da gamela, a pesada e grossa, a gordurosa. Em nove décimos do homem o que pesa é o animal.

20.10.15

A Paz

Alcançar a paz parece-me ser o fim último do indivíduo e da humanidade. Falo do fim com sentido de objetivo ou meta a alcançar. Mais ou menos consciente, por vezes mesmo totalmente ignorada enquanto tal e reconhecível apenas por uma vivência constante no estado oposto de guerra, o indivíduo ao longo da vida, como a humanidade ao longo dos séculos, muitas vezes ou ciclicamente, orienta a sua atuação para a obtenção da paz. Nem que seja para, logo a seguir, encetar outra empresa em que até chegar à paz seguinte muita guerreia se há-de fazer.
É desta forma que a paz reúne em si todas as contradições deste mundo, as que vão da bondade ao cinismo, da espontaneidade ao calculismo, da prudência ao disparate. É também por isso que alcançar a paz é uma tarefa árdua e que se lança mão de muitos instrumentos, ferramentas ou argumentos, quando a paz para que se caminha depende das palavras, dos conceitos e das ideias e a guerra não deixa de ser guerra. Nos momentos em que a guerra para, supostamente, alcançar o melhor, do qual uma paz fará em princípio parte, se combate pelos raciocínios, com opinião, julgamento ou exortação, é quando tantas vezes nos desmascaramos, enquanto indivíduos e por vezes com impacto num coletivo, revelando afinal o lado mais primário da dominadora espécie humana. Curiosamente como com os animais se disputa o parceiro mais forte, o território mais fértil, o lugar mais poderoso, poucas das muitas guerras entre os humanos vão para além disto mesmo.
As lutas são tão mais violentas quantos mais danos colaterais se infligem e, por isso, estar ao lado de quem faz a guerra mesmo que em nome de uma qualquer paz, se ou quando da queda, não se pode ser dano colateral, nem isso ser dado como desculpa para dela se sair o mais ileso possível. Tal como quando toca a repartir os despojos entre os vencedores não haverá quem falte à chamada, e tantas vezes uma outra guerra se inicie, quando fosse para “lamber as feridas” haveria que estar lá também, o que nem sempre acontece. É que um exército composto por quem veio de outro tendo em comum as cicatrizes é um exército que, por muito que combata em nome do que quer que seja, há-de ter a vingança como primeiro troféu. E isso não serve como argumento para se fazer a guerra em nome de outros, mas de si próprio.

Talvez tudo isto, e mais alguma coisa, se encaixe na opinião de Vergílio Ferreira que dizia que O homem não gosta da paz. Gosta só de conquistá-la. Entre uma coisa e outra há muita gente estendida. É a que tem a paz verdadeira.

13.10.15

Meritocracia

Enquanto andam pelas casas e pelos corredores da Democracia a decidir quem há-de fazer o quê para governar o País nos próximos quatro anos – que foi para isso que nos chamaram a nós, cidadãos eleitores, às urnas –, vou falar hoje de meritocracia. Parece-me ser este o mais temível sistema de opção e escolha que, no patamar abaixo da hierarquia que põe no topo a eleição democrática pelo voto, poderia ser considerado, com bondade, o garante para o sucesso da atuação dos eleitos, ou em sistemas mais fechados e menos públicos, dos escolhidos. Devolver-se-ia à escolha, e às eleições, o papel de uma atividade que me é tão cara: a avaliação. (Os meus alunos sabem bem o que para mim significa – em trabalho, em estímulo, em aprendizagem, para mim e para eles – isto da avaliação, mas adiante.)
Digo temível, isto da meritocracia, porque impõe princípios que visam eliminar as falhas, os erros, os experimentalismos, os jeitosos, num caminho para a eliminação dos possíveis telhados de vidro de quem é escolhido, já que se as “saraivadas” podem ocorrer por circunstâncias exteriores, quem com elas leva deve conseguir resistir-lhes. Afinal o jogo do poder, em qualquer nível, mede forças, ainda que forças de campos tão díspares como a real e frágil condição humana, a capacidade de trabalho, os limites de resistência e, último mas não menos importante porque se pode confundir com muitas outras características muito mais relevantes para se ser candidato à escolha pelo mérito, a vontade.
É muito curioso o que se pode ler lá pelo meio, na entrada da mais popular enciclopédia contemporânea, falo da Wikipedia naturalmente, com todas as reservas que só o nomeá-la suscita ao mundo académico, e que diz alguma coisinha a propósito da associação que vos faço de eleições, e respetivas consequências, e da meritocracia. Diz-se, e mesmo desconhecendo o ou a responsável por tal observação tendo a concordar, que numa «democracia representativa, onde o poder está, teoricamente, nas mãos dos representantes eleitos, elementos meritocráticos incluem o uso de consultorias especializadas para ajudar na formulação de políticas, e um serviço civil, meritocrático, para implementá-los.» E tocando no que considero ser o cerne da questão, acrescenta: «O problema perene na defesa da meritocracia é definir, exatamente, o que cada um entende por "mérito". Além disso, um sistema que se diga meritocrático e não o seja na prática será um mero discurso para mascarar privilégios e justificar indicações a cargos públicos.» Eu sei que é a Wikipedia! Mas precisamente porque é a Wikipedia e dá a volta ao mundo, retira qualquer interesse particular no nosso caso, o português e caseiro estado do momento presente.
O Vergílio Ferreira, que muito escreveu, quer em ficção quer em ensaio e reflexão, mais sobre os méritos e desméritos dos insondáveis comportamentos do indivíduo ao longo da vida e perante as realidades que a definem, faz no seu diário, entre 1984-85, uma paródia a um adágio popular que estende ao comportamento coletivo, em sociedade portanto, o que considero um retrato de quem, nos quais me incluo, começa a descrer de alguma vez ver acontecer em tempo de poder assistir à implantação da meritocracia como princípio orientador. Escreveu ele que «Num mundo de cegos quem tem um olho é aleijado.» Felizmente, digo eu, que as muito minhas descrenças não me impedem de acreditar nas gerações futuras e ir tentando abrir alguns olhos no tempo que a mim me resta.

6.10.15

O ano de Vergílio Ferreira

É um prazer estar de volta às Crónicas de Opinião da DianaFM, desta feita depois de umas mais prolongadas férias do que o habitual, motivadas pelas eleições legislativas de domingo último, precedidas do igualmente habitual período de campanha. Habitual mas estranho. Pareceu-me que, após 41 anos de Democracia e 105 de República, cá dentro, e 25 anos de Reunificação da poderosa irmã europeia Alemanha, ao tomar o período de campanha eleitoral como tubo de ensaio de comportamentos sociais com impacto na opinião dos indivíduos que tende a generalizar-se às massas, o balanço possível da observação de reações várias é de que algo, ou muito, está ou mesmo a mudar ou, pelo menos, a reclamar mudança.
As mudanças fazem-se, normalmente, por desgaste e o desgaste contemporâneo não me parece que se resolva nem com cortes que ainda que aparentem ser radicais se revelam fugazes, nem com uma inércia que redunda em fatalismo. Vivemos numa época em que a mente, a seguir ao corpo, está cada vez mais desocupada pelo conforto que lhe vai proporcionando a evolução técnica, mas que continua a ser efémero porque mortal, exigindo o mais interdito que lhe traz maior prazer ou simplesmente confundindo-se com os ritmos naturais que lhe poupam energia e obedecem à lei do menor esforço. 
Dias como os que vamos vivendo, e sim falo também da vaga de refugiados sírios, mesmo que sejam dias políticos que impõem argumentos mais complexos porque respeitantes ao coletivo, mexem com cada um de nós individualmente e para além daquilo que é a nossa esfera familiar e sentimental. Às vezes quando nessa esfera mais íntima soam alarmes, pensar no resto do mundo é uma forma de irmos dando razão à existência. É ocupar-nos a mente, agora que o corpo está livre do trabalho mecânico, substituído pela máquina, e o pensamento se enche também de espaços que o passo seguinte da civilização humana – ir aliviando as tarefas do raciocínio - vai deixando para que o Homem usufrua dessa conquista à ociosidade. Pensar torna-se um ato de resistência quando o que é cómodo para o corpo parece invadir a razão. Ou quando nos damos conta de que contam com a nossa ociosidade para pensar em vez de nós, como se o efeito nos fosse tão benéfico como quando a máquina lava por nós a roupa.
Por tudo isto, e porque ao longo deste ano de crónicas vou comemorar os 100 anos da vida que Vergílio Ferreira continua a viver nas palavras que nos deixou, a propósito de cada crónica citarei o professor, escritor, filósofo que, não sendo de Évora nela viveu 14 anos, retratando-a  como poucos vi de forma tão conseguida fazer. Vergílio Ferreira fez de Évora uma personagem e isso interessa quem quiser conhecer Évora, por dentro, ou até quem já a conheça, num saber de experiência feito.

Porque as opiniões se fazem de palavras que exteriorizam e partilham pensamentos e, as mais conseguidas, podem fazer a diferença na vida das pessoas e mudar alguma coisa. Ou não. E a consciência dessa possível impossibilidade é, por si só e na minha opinião, já um desafio a partilhar com quem gosto e vou fazê-lo convosco. Escreveu o Vergílio Ferreira no seu Diário a que chamou Conta-Corrente: Porquê? Para quê? Economiza os teus «porquê» e «para quê». Ou utiliza-os só até onde houver resposta. Porque a última resposta a eles é o impossível e o vazio. Ou então terás de mudar de universo. E estás cá tão bem...

14.7.15

The End

Tenho pregada a íman na porta do meu frigorífico uma frase com que me cruzei há cerca de cinco anos, e que diz, em inglês, qualquer coisa que traduzido daria nisto: «No fim tudo ficará bem, se não estiver bem é porque não é o fim.»
Ao terminar a série de crónicas na DianaFm, a nostálgica expressão The End parecia apropriada e o optimismo da frase do íman deu um certo alento a este final de ciclo de 45 semanas ininterruptas, para mim, destes textos de opinião que acompanham nas ondas hertzianas as de outros opinadores. Acabar algo é toda uma arte que quem concentra narrativas – ou a sua própria vida contada a si e aos outros – talvez seja o que mais marca e impressiona, mais do que todas as restantes etapas.
Se um bom princípio nos prende ao que se segue; se o desenrolar da maturação, o desenvolvimento. do que fazemos, dizemos, encontramos e perdemos, cria momentos muito bons, bons, menos bons, maus ou péssimos – julgarão os que atentos, à sua própria vida e à vida que os outros deixam que se mostre deles, podem ser juízes – o final parece marcar muito mais os que assistem natural e distraidamente, ou “com não muito bons olhos” como se costuma dizer quando se julga à partida algo que estará para ou a acontecer e de que não estamos a gostar. Se o princípio nos pode cativar, ajudando a criar os laços e o interesse do que vem a seguir, o fim pode deixar-nos alívio, tristeza, curiosidade, esperança. E os laços, desfeitos, deixarão nas fitas boas ou más marcas, num caso ou noutro não forçosamente justas, não obrigatoriamente deslumbradas.     
The End é finalmente, e também, a expressão que fecha os filmes, versão quase ainda moderna nas artes cénicas do antepassado “cair do pano”. A alguns soará, porque não, ao título de uma canção de 67, popular e carismática, dos não menos carismáticos Doors. Era o tempo, esse em que foi o meu início, o tempo sangrento da guerra no Vietnam, que durou na prática 20 anos em conflitos, o tempo da Guerra Colonial em português, o tempo estudantil e agitado do Maio em Paris, o tempo dos hippies, o tempo da juventude dos pais de quem tem agora à volta de meio-século de vida.
Afinal, the end é apenas um separador dos muitos princípios e fins que uma vida, uma peça de teatro, um livro, um filme, uma canção podem ter. E é só o momento de se poder ou recomeçar, vezes e vezes sem conta, com outros olhos que mudam o que se vê, ou novas sequelas que nos fazem continuar a viver este filme que é a nossa Vida e que ajudamos, e muito, a realizar. Afinal, um finalíssimo The End pode ser um inesperado To be continued… Nunca se sabe.
Um bom Verão, a todas e a todos. 

7.7.15

Divan

No dia e à hora em que gravo esta crónica já sabemos que o “ Não” ganhou no referendo do lugar onde nasceu o conceito de Democracia. Mas continuaremos, como nos últimos dias antes de sabermos os resultados, a tentar analisar comportamentos, adivinhar reacções, compor possíveis cenários para o que será a Europa e os países que nela se querem ancorar em espírito de união. Uma união com contrato, e não “só” de facto. Uma união com problemas de passado que não queremos para o futuro e que leva ao terapeuta, ou multidão deles, apenas um dos seus elementos. Pusemos, para já, a Grécia no divã.
O divan (ou em grafia portuguesa “divã”) é, como sabemos, uma espécie de sofá, uma peça de mobiliário. Ficou famoso por ser o lugar onde os psicanalistas desenvolvem as suas actividades terapêuticas ouvindo os seus pacientes, mas a palavra original vem-nos da Turquia onde tinha o significado de Sala do Conselho do Sultão. É que essa sala estava cheia de almofadões, espécie de sofás sem braços nem encosto, e lá se aconselhava quem manda a decidir o que fazer por um colectivo. Se habitualmente e de facto a relação entre o paciente e o terapeuta é assim, de tête-à-tête, por detrás de cada um deles está uma multidão e as diferentes circunstâncias que os levam ali naquele momento. 
Independentemente de gostarmos ou não do resultado imediato do gesto que pode significar uma mudança para o resto das vidas de quem tem problemas, esperamos sempre que essa mudança ocorra. Aliás, as revoluções e os mortos que elas fizeram – e é por isso que não gosto das armas, sejam em que nome forem usadas, e são para mim o último dos últimos recursos fabricados por e ao alcance da humanidade – as revoluções e as guerras já se escudavam nessa vontade de mudança. O civilizado modo de organizar entre os gregos a forma de expressão da sua proposta para solucionar a situação insustentável, a vários níveis, em que se encontram, deveria levar-nos a corresponder com o mesmo grau de civilização e civismo na prossecução do caminho de saída de um estado em que não queremos que nenhum par chegue, nem nós próprios. 
Como no divã, o problema do que ali está deitado a ser analisado e “curado” é também o problema de todos os que convivem para além daquele momento e com quem, forçosamente, interagem. Mas todos irão precisar muito mais do que aquele que parece ser o mais paciente dos pacientes ficar no divã a dizer o que de mal está, à procura de solução. Há-de ser preciso sair dali e em conjunto com os que o rodeiam mudar alguma coisa para que…não, para que muito fique diferente. Deste gesto de quem a custo vai tentando sair do divã espera-se de todos os outros um correspondente gesto de ajuda, ou não vale a pena andarmos a disfarçar que o que se faz não é um caótico “salve-se quem puder”. A menos que esse seja o plano e assim não vale a pena discutirmos com mais ninguém, porque já perdemos, mais cedo ou mais tarde.

30.6.15

SOS

As siglas são cada vez mais usadas quer no discurso oral, quer no escrito. E saindo sobretudo de campos específicos em que poderiam ser consideradas um jargão próprio de uma actividade, invadem o mundo do discurso corrente. Umas vezes usadas por quem até já nem consegue com precisão desenvolver a sigla e refazer as palavras que lhe deram origem, outras parece que usadas de forma que até nem se entenda muito bem o que querem dizer. Também é verdade que o uso corrente, popular e familiar que fazemos de uma língua vai transportando para a norma, ou pelo menos para uma aceitação tolerante, erros que se cometem face a uma regra por inerência rígida, precisa e com uma história que a explica. A palavra ou conjunto de letras que vos trago hoje, após uma semana de desgraça provocada pelo terrorismo e de crise política pela situação extrema da Grécia, parece estar a propósito, e confundir-se com uma sigla: SOS.
SOS é um código, universal, de socorro, uma mensagem rápida e facilmente entendida para alertar quando se está em situação de perigo de vida e se necessita de auxílio rápido. Mas as letras SOS não significam mais nada para além disso.
Muitas vezes “explicada” como sendo uma sigla de expressões como Save Our Ship  ("Salvem nosso navio", em inglês), ou mesmo Save Our Souls ("Salvem as nossas almas"), essas relações, até metafóricas, só foram criadas para ajudar as pessoas a lembrarem-se das letras do código. Não resultando de nenhuma expressão e tratando-se de um grupo de letras que não significam absolutamente nada, o código em si é inconfundível. O sinal foi criado no início da Era da Radiotelegrafia, em 1906, quando as comunicações eram feitas principalmente por código Morse, e o SOS era o conjunto de letras mais fácil de reproduzir e menos difícil de confundir.
Antes de surgir o SOS, o código de alerta usado era o CQD, que também não possuía nenhum significado e foi escolhido por ser formado por letras que juntas não dariam margem para qualquer outro tipo de interpretação. Porém, escrever CQD em código Morse não era nada prático. O SOS só foi oficializado em 1908, mas era comum utilizarem-se os dois códigos. Em 1912, por exemplo, quando o Titanic afundou foram emitidos sinais de socorro em SOS e CQD. Valeu-lhes de pouco…
De qualquer modo, mesmo se o código Morse já está em desuso desde 1999, ano em que o sistema de comunicações marítimas terá deixado de ser oficialmente esse, o SOS continua aí. Usado com mais ou menos frequência por e para situações de maior ou menor perigo, a sua banalização ou utilização com propriedade e rigor vai, algumas vezes e cada vez mais, dependendo também da maior ou menor capacidade de os cidadãos se organizarem e conseguirem chamar a atenção de quem possa e queira ajudar às situações de real emergência ou urgência. Longe vão os tempos do Morse ou das mensagens em garrafas, mas persistem os perigos que, directa ou indirectamente, a Humanidade, ou parte dela, continua a infligir a si própria.

23.6.15

Parade

Eis-nos mais uma vez em plenas Festas da Cidade de Évora, a Feira de São João. Mais ou menos ansiosos por que chegue mais uma edição, mais ou menos distraídos sobre o que acontece de novo no rossio, os que vivem, nasceram, passam ou passaram frequentemente por Évora não deixam de reparar nela. Nem que seja, no caso dos declarada e convictamente anti- feiras e quejandos, para a contornar e evitar.
Tratando-se de uma iniciativa municipal, os sucessivos executivos no poder acabam sempre por ser julgados, de ano para ano, pelo impacto que cada ano e nesse mesmo ano a Feira tem nos seus frequentadores. Sim, porque deixemos passar um par de anos e lá nos esquecemos nós do que de bom ou mau lhe encontrámos e achámos. Não sendo possível, nunca, agradar a todos, quando esses todos formam uma sociedade plural e livre para o também livre-arbítrio, os políticos em posição de governo tratam, por estas alturas também e sobretudo em períodos pré-eleitorais, de agradar ao maior número possível e cativar os cidadãos, potenciais eleitores. Abrem-se os cordões à bolsa que antes se dizia vazia, furada no fundo - por outros, claro!, sempre por outros, nunca por quem exigia, mesmo na oposição, que se gastasse mais aqui e ali, e não se gastasse nem nestes, nem noutros, afinal já em tempos em que se “faziam oitos com pernas de noves”, o que significa faltar alguma coisa nalgum lado. Uma bolsa sempre a perder recheio que, alinhavada por argumentos que outrora pareciam não servir, miraculosamente em ano de eleições, estancam e arrecadam aqui e ali alguns cobres, para que os cordões se abram e que, mesmo lembrando aos cidadãos que, se em casa continuam sem pão – culpa dos outros, claro! sempre dos outros, e que jeito dá aqui e ali meter essa bucha de relembrar esses outros que são os que nos tiram o pão e nos obrigam a dar-vos bolos – na rua há circo para esquecer.
Desfila-se diligentemente entre os cidadãos, atrás, à frente, no meio ou de lado – conforme dê mais jeito e onde se seja melhor visto pelos que assistem quanto mais deslumbrados melhor - aos cortejos que também se chamam, por vezes, paradas, versão das modernas e internacionais e históricas parades. Desfile, marcha, cortejo, procissão ou parada são eventos comemorativos onde pessoas e objetos móveis percorrem um determinado caminho, sucedendo-se uns aos outros de forma coordenada. Se o desfile é o termo mais neutro, o cortejo é o mais alegórico e carregado de simbologias e a procissão o de carácter religioso. Já marcha se usa mais para a manifestação política e a parada, em português, se associa aos movimentos militares quotidianos. Mas a parade, ah! a parade mistura tudo, numa explosão de festa e de cores que celebra alegrias, num alarido sonoro que chama as atenções, com disfarces que realizam sonhos no tempo, curto, do desfilar, desejos negados pela realidade do dia-a-dia.
Este ano a Feira de São João celebra o Palácio, o nosso o do Dom Manuel, que cresceu pedra sobre pedra na mesma época em que tantos outros palácios se erguiam no que é este espaço chamado Portugal, para albergar os poderosos, os que se sucediam dinasticamente, os filhos ou sobrinhos aos pais e aos avós, numa linhagem sempre desejavelmente pura, mas só no sangue Os que governavam os outros, longe, muito longe ainda do tempo desta Democracia que dá o poder, também do voto e do veto, ao Povo.
E por mais voltas que se dê quando se celebra alguma coisa faz-se-lhe um lugar na memória. Para uns com nostalgias, para outros com repúdio. E para outros, ainda, dando uma no cravo e outra na ferradura. Uma boa Feira e até para a semana.    




16.6.15

Agent Provocateur

Agent provocateur, que se traduz por agente provocador mas é uma expressão normalmente usada em francês, designa uma pessoa que secretamente um determinado grupo infiltra noutro, para incentivar os membros deste a cometer actos ilícitos ficando-lhes assim associados. O objectivo pode ser mais leve, digamos assim, e tentar-se “só” diminuir a sua credibilidade, levando-os a adoptar comportamentos radicais, ou até mesmo cometendo-os ele próprio em nome do grupo. 
Normalmente, os agents provocateurs são designados para provocar agitação e violência, mas também, e mais discretamente, o debate e a controvérsia até ao limite pretendido do descrédito. Poderíamos usar a metáfora fabulística da raposa no galinheiro, em alguns casos e, noutros, dizer que são assim uma espécie de incendiários disfarçados de bombeiros. Infelizmente, esta sua subespécie menos policial, é mais comum do que raríssima em muitas organizações da sociedade contemporânea, que é a que nos interessa por ser aquela em que vivemos.
A actividade de agent provocateur pode até ser legal em alguma latitude do nosso planeta, mas num sistema democrático como tem sido o nosso dificilmente se justificará. Sendo uma prática que evoca clandestinidades ultrapassadas, suponho que ainda circulará em alguns corpos, socialmente falando, compostos por guerrilheiros e revolucionários de pacotilha, a mando dos mais diversos e inesperados interesses, onde o pessoal não deve ser ignorado.
É talvez mais comum nos dias que correm, e de certa forma aparece branqueado aos ouvidos mais dados à actividade intelectual, apelidarem-se este tipo de activistas de “cínicos”, entendendo-se mesmo por cínico aquele descendente da histórica seita filosófica que desprezava as conveniências sociais. O problema é que quem é mais cauteloso, ou exerce funções para as quais outros delegaram em si um voto de confiança, terá sempre tendência a desconfiar, ou pelo menos a acautelar-se, com aquele tipo de proposta só aparentemente bondosa. Isto cria um clima terrível de constante tensão, exige uma resistência e um savoir vivre por parte de quem circula nestes meios onde as acções que, vulgarmente, o cidadão comum baptiza de “políticas”, tomando o seu sentido mais rasteirinho e muitas, se não a maior parte das vezes, até distante do verdadeiro mundo da política e dos partidos, e próximo de qualquer organização ou instituição que implica as figuras de quem governa e quem é governado.
Num regime civilizado, em que os cidadãos possam confiar nas suas instituições, o agent provocateur poder-se-á juntar à galeria onde figura o espião, até na sua imagem mais romanesca, e ao bufo. Estes estão para os círculos de poder como a alcoviteira, o coscuvilheiro e o intriguista estão para os círculos mais restritos. E são um problema para quando se pretende resolver os assuntos da forma mais transparente, consciente e justa possível. Porque é aqui que o cidadão comum se começa a sentir sozinho e rodeado de agents provocateurs, tornando-se desconfiado e deixando de participar. O que é uma pena porque, desistindo, deixa nas mãos de quem provavelmente não queria os destinos que também o governam.     

10.6.15

Meme

Meme é um termo que nos chega do grego e que significa imitação. É conhecido e usado no mundo da Internet para se referir ao fenómeno de tornar viral uma informação, sobretudo em vídeo ou imagem, e que, como um vírus, se espalha entre os vários frequentadores das redes sociais rapidamente, alcançando muita popularidade. Na semana que passou tivemos muitos que começaram no mundo do futebol e logo dispararam para outros mundos, numa expressão de gosto que, para além da estética, dariam muito para discutir. 
No fundo, a ideia de meme pode ser resumida por tudo aquilo que é copiado ou imitado e que se espalha com rapidez entre as pessoas, inclusive as opiniões e críticas para quem, mais do que parar para pensar – porque não lhe apetece ou não vê nisso necessidade – repete as dos outros, sem acrescentar nada de novo à discussão ou reflexão. Ou, acrescentando-lhe o utilizador mais interventivo, ainda que sob um manto de invisibilidade a que talvez se possa chamar anonimato, reanima o fenómeno e faz de cada “infectado” pelo vírus um co-autor do meme. Uma espécie de toca-e-foge a ver se se morde o isco.
O conceito de meme terá sido criado por um zoólogo que publicou em 1976 um livro intitulado O Gene Egoísta. Tal como o gene, o meme é uma unidade de informação com capacidade de se multiplicar, através das ideias e informações que se propagam de indivíduo para indivíduo, como o gene de pais para filhos. Os memes são estudados na Memética, e tudo, onde se aplicam conceitos da teoria da evolução à cultura humana, tentando explicar vários assuntos controversos, como a religião ou os sistemas políticos, usando modelos matemáticos.
Uma vez que a Internet tem a capacidade de atingir milhões de pessoas em alguns instantes, os memes de Internet podem também ser considerados como "informações virais", ainda que as mais repetidas só lá muito no fundo têm a informação como objectivo. De facto, também aqui a persuasão, muitas vezes levada ao limite da manipulação, encontrou um ambiente de cultura favorável para se multiplicar. 
Já se sabe que quanto mais crescemos e envelhecemos mais vimos repetirem-se situações de modo previsível e, portanto, a repetição, recriação ou imitação nesse sentido, tende a tornar-se mais legítima. Sobretudo quando na ânsia de fazer diferente se cai tantas vezes no disparate. Vezes demais, depressa e viralmente divulgadas, levando a retiradas que, não sendo estratégicas, são as únicas que uma táctica do menor estrago possível pode fazer. Os repentismos, a criatividade, o pensamento “fora da caixa” exige trabalho, conhecimento, reflexão, para além da muita perspicácia, mais até do que a inteligência, que nem sempre vai a par com a velocidade de reacção. Numa sociedade contemporânea em que nos aliciam constantemente para que usemos espaços de partilha de emoções e opiniões, o “rascunho” aparece muitas vezes como a forma definitiva. O direito à opinião acaba a abrir espaço para o direito ao disparate. Use-o quem queira, sem queixas, claro! e não achando que é um dever dos outros amparar a coisa para além do limite do tolerável, bem entendido. 

2.6.15

Fair play & no hard feelings

Fair play significa jogar limpo e, em português, chega a ser “ter espírito desportivo”. O todo transforma-se na parte para se estender a várias áreas, ou seja, parte-se do princípio que o fair play é uma das características, muito particular, do desporto e usa-se como exemplo de comportamento para as restantes áreas da vida em sociedade e até privada. O fair play acaba a significar um modo leal de agir.
Por outro lado, e reconhecendo no mundo do desporto – mas não só – as posições entre adversários e apoiantes de adversários que, por vezes, se inflamam e levam a discussões a roçar os limites da ofensa em torno do assunto – e este detalhe é importante, porque se deveria no espírito do fair play ficar-se por esse assunto –, a expressão americana “no hard feelings”, que  significa sem mágoas ou ressentimentos, entrou no léxico para além do desporto onde também começou. Por isso, às vezes usando outra área como metáfora também dizemos e ouvimos dizer “Amigos, amigos, negócios à parte”.
Ora o que se está a passar no mundo do futebol, mesmo ao mais alto e vasto nível mundial, com o já chamado “Fifagate”, o caso de corrupção na FIFA, fez-me refletir, e partilhar convosco, sobre uma mão-cheia de questões. O momento de ironia de toda esta história está também no facto de um dos lemas da FIFA ser “My Game is Fair Play” e de haver uma iniciativa baptizada com a expressão “fair play financeiro” criada pela UEFA, que tem como objetivo estabelecer um padrão de decência e honestidade financeira no futebol
Antes de mais dizer-vos que me parece que a conotação do fair play primordialmente com o mundo do desporto tem a ver com o estabelecimento de regras rígidas para que o jogo, elemento necessário à condição da competição, possa funcionar com a equidade no tratamento das partes que jogam. E, bem entendido, com a penalização respectiva e também bem definida, da prevaricação e não cumprimento das regras. É rígido? É. Mas é assim que se defende quem, podendo ser o mais fraco ou estar em situação fragilizada, tem igualdade de tratamento.
Também me parece verdade, e numa segunda questão, que não é por se saber as regras e dizer muitas vezes que se age e deve agir de acordo com elas que não há, e muito, prevaricação. Há até os muito habilidosos em usar as palavras e os actos a que essas se referem de tal maneira que, contornando e prevaricando, parece que não o estão a fazer. Por vezes a técnica é mesmo a de vestir a pele de cordeirinho, alinhar no mesmo rebanho, e, abocanhando aqui e ali, ir agindo como um lobo sem o parecer. 
Depois, este princípio de equidade, que a regra do jogo e o seu cumprimento em fair play devem garantir, quando é quebrado é, normalmente, quando se reverte o adágio popular do “Amigos, amigos” que, à frente de qualquer fair play faz funcionar o jeitinho e a atençãozinha ao que fôr, ou passar a ser, não se sabe até quando e onde, nosso amigo.
O que podemos dizer sobre esta inversão do fair play, agora neste caso concreto, no seu mundo primordial mas espelhando outros mundos, toda a vida aconteceu – com ou sem capitalismo, porque tem a ver com poder, com ilusões de imortalidade, com princípios de educação e civismo, com o sentido de comportamento ético que ou se pratica, e é visível, ou não e, talvez um dia, também seja visível e o crime não compense.
Este caso do “mundo da bola”, que também não é novidade, não nos deve é pôr a ter “hard feelings” com o mundo do desporto e da competição. Ensina-nos só, aos espectadores e seus verdadeiros amantes, que são vários os caminhos que alguns escolhem e que podemos escolher. É que a divertirmo-nos – origem do vocábulo “desporto” – também aprendemos.  

26.5.15

Media training

Aproximando-se momentos eleitorais, uma das peças tornadas obrigatórias na comunicação social é, tentando manter alguma isenção partidária, apreciar os candidatos e candidatos a candidatos mais pelo “embrulho” do que pelo conteúdo. Aprecia melhor esse embrulho quem, profissionalmente, os ensina a fazer bem. E a actividade tem nome, profissionais a sério, e chama-se media training
Já no século IV a.C., o filósofo Aristóteles se preocupava com este assunto de usar uma linguagem para comunicar de forma eficaz e persuasiva e que, não tendo sido o único com a preocupação à época, deixou uma obra com o nome que, afinal, define este saber que é a retórica. Nessa obra, o filósofo sistematiza os três géneros retóricos: o que procura persuadir ou dissuadir quem ouve; o que acusa ou defende uma causa; e o que elogia ou censura alguém ou algo, e que normalmente usa de um tom mais espalhafatoso. Confesso que entendendo a pertinência e cuidado de Aristóteles, e sem desmerecer os seus actuais seguidores, tendo a alinhar com o Platão de Fedro, um dos seus diálogos em que defende, e assim à pressa se poderia resumir, que a retórica propicia a subalternização do conteúdo em relação à expressão. O que me lembra o pavão que, de cauda em leque faz aquilo que em francês se diz “épater le bourgeois” ou seja, o que eu muito livremente traduziria com alguma caricatura à mistura por, “pôr o patêgo a olhar para o balão”. 
Se o acesso a este treino profissional se tornou, no nosso tempo, coisa de quem aparece nos media, isto é na comunicação para as massas, e se inclui o cuidado da imagem a par do do próprio discurso, parece-me que não tardará muito a que quem tem funções de liderança se sinta na obrigação de ter umas liçõezinhas sobre o assunto. Assim como quem aprende a etiqueta que nunca teve de usar na vida. Ou mesmo para que quem tem um certo traquejo na coisa não lhe perca o jeito e, portanto, o media training se transforme em long life learning, que é como quem diz, formação contínua, ao longo da vida. É que o media training é mesmo uma questão de técnica, para quando não se tem jeito, e jeitosa, para quando se quer pôr a brilhar o lado do parecer para além do lado do ser. E quando se tem jeito e se trabalha esse jeito, então o resultado deve poder vir a ser brilhante. Nos outros casos, muito no extremo oposto, não deve haver media training que resista. No fundo qualquer cidadão que interaja com outros devia poder investir assim em competências de comunicação. Às vezes isso chama-se ser educado e gentil. E ainda mais às vezes, isso é tão inato, de tão essencialmente boas que as boas pessoas são, que ultrapassa a educação. 
Diz quem sabe que quem precisa desse treino, ou porque é a dar para o “atado”, ou porque por vezes pensa mais depressa do que fala e isso o atrapalha, ou pára de pensar porque tem de falar em voz alta e para mais do que dez pessoas juntas e isso também o atrapalha; diz quem sabe que o objectivo é passar com eficácia a mensagem que queremos a quem queremos. A pergunta é: e quando desconfiamos do valor da mensagem? Vão dizer-nos que temos de ter confiança nesse valor. Ora quer-me a mim parecer que não basta dizer muitas vezes o que queremos que seja real para que a realidade aconteça. É que se fazemos isso, na comunicação com os outros, estamos a pôr de lado o essencial da comunicação – informação, opinião, decisão – e a cair no show off que se chama propaganda e que muitos confundem com comunicação. A não ser que o conceito de comunicação esteja a mudar com o uso e a deixar de ser o das diferentes informações que as pessoas partilham entre si, numa actividade essencial para a vida em sociedade e se passe a confundir com promoção. O que me faz temer pela identificação com os saldos e o “despachar” de stocks prestes a transformar-se em refugo.

19.5.15

Bullying

Se dúvidas houvesse de que a agenda de opinião da esmagadora maioria de nós, no que respeita a assuntos de interesse geral, público e colectivo, e portanto político, é feita por certas notícias que se espalham de forma viral, mesmo tratando de gente comum, os acontecimentos sobre o bullying – começando no programa televisivo de talentos, passando pela cena de bofetão no feminino, até ao assassinato violento de um jovem de 14 anos das últimas semanas – dissipariam essas dúvidas. São inúmeras as notícias, as opiniões e os assuntos que todos os dias são lançados pela comunicação social – ou nas redes sociais em que cada um de nós pode fazer a reportagem de algo a que se assistiu e que dê lugar a notícia, ou emitir a sua própria opinião baseada nos factos que escolheu ou de que lhe propuseram uma interpretação. Mas há umas que chocam e, como tal, naturalmente, se tornam tema central de conversa, quase como se nunca tivessem existido ou, na curta memória humana, tivéssemos esquecido para continuarmos a viver as nossas vidas para lá do que nos incomoda, como muitas vezes tem de ser, sobretudo quando não temos responsabilidades oficiais sobre o assunto.
O bullying é a prática de actos violentos, intencionais e repetidos, contra uma pessoa indefesa, uma vítima que pode sofrer danos físicos e psicológicos irreparáveis. A palavra surge do inglês bully, que significa brigão ou valentão, e desconfio que o que chocará nesta prática é mais a incapacidade de defesa da vítima do que a atitude do bully, uma vez que quando há dois bullies somos quase tentados a comentar que “estão bem um para o outro”. E talvez seja esta expectativa de andarmos todos a preparar-nos para responder à altura das dificuldades que vamos encontrar ao longo da vida, condescendendo em descer por vezes ao nível mais vil do ser humano enquanto membro do reino animal, que ao longo dos séculos fez dos que têm reacções menos instintivas – ou de um outro tipo de instinto – vítimas declaradas.
É que o bullying em si, e quando não dá origem a crime público, acontece mais frequentemente do que possamos pensar e, muitas vezes, é feito com um conjunto de pessoas a apoiar, como claque, a prática do insulto, da extorsão, da atitude violenta – com palavras ou actos – perante quem por princípio, opção ou dever não corresponda à reacção que parece ser a exigida pelo bully ou pela sua claque de apoio: responder à altura e partir para a guerra, em escaladas de violência que podem ir até à agressão física e ao insulto desbragado, assim mesmo na cara das pessoas.
O bullying, mais do que com o exercício de um poder, que muitas vezes até se conquista com o sucesso após a sua prática e o aplauso dos pares que parecem transformar-se em seguidores ou súbditos, tem a ver, na minha opinião, com o respeito ou a infracção de limites do que se pode e deve, ou não, fazer e dizer. Se esse conhecimento é adquirido pelo exemplo, pelo discurso positivo, enfim pela educação que recebemos da comunidade que nos rodeia; e se o desrespeito desse limites é punível e punido efectivamente, através de sanções de vários tipos – e onde a liberdade não deve ser confundida com anarquia (mesmo quando esta é defensora de um pacifismo e uma autodefesa que deixa perigosamente à solta uma justiça sem regras) – então, teremos de encarar vários comportamentos que vamos achando normais – como os insultos proferidos pública e sistematicamente àqueles de que discordamos, às vezes a descer a avenida com as câmaras da TV atrás - como exemplo de muitos que fazem dessa prática uma atitude corrente e, contra o que lhes é adverso, do que lhes é incompreensível, do que muitas vezes apenas sai fora do comum, uma forma de reagir legitimada pelo cidadão comum e apenas suspensa quando outros limites se ultrapassam. É que também aqui, e não só nas coisas boas, o caminho se faz caminhando.

12.5.15

Timeline

Timeline é uma palavra em inglês que significa, à letra, “linha do tempo”. É um termo muito conhecido entre aqueles que usam as redes sociais na Internet, como o Facebook, a que melhor conheço, mas também o Twitter ou o Instagram e até o Blog. No fundo, trata-se de uma ordem pela qual as publicações, ou seja aquilo que escrevemos ali, é organizado por nós numa cronologia, mas também pelo sistema informático que as vai “puxando” para a “feed de notícias” ou página inicial, ajudando o internauta a fazer-se ouvir pelos outros membros da sua rede. É como se, das nossas conversas ao vivo e a cores entre conhecidos, colegas, amigos ou até pessoas com quem nos cruzamos fugazmente na vida do dia-a-dia, e desde o assunto mais íntimo ao mais público e até político, ficasse o registo para esse outro tempo de que estamos mais incertos do que o passado e que chamamos posteridade. Tudo feito por nós e pelos nossos interlocutores, ou selecionado pelo sistema informático, essa inteligência artificial, com critérios precisos mas nem sempre óbvios para muitos dos utilizadores. O critério da popularidade, mensurável pela quantidade de gente que acede e interage com o que publicamos, é que vai dar maior ou menor importância ao que se publica.
A timeline aparece então como equivalente, num jornal em papel, à primeira página. Sendo a maioria desses lugares na rede gerida por gente comum, também uma grande parte não tem consciência de que, em muitos casos, está a comunicar para as massas. Mesmo assim, utilizamo-los para partilhar as informações que seleccionamos com o nosso próprio filtro que diz tanto de nós, para partilhar as experiências pessoais que possam interessar a outros ou as notícias que pretendemos destacar. E às vezes nem pensamos que, ao destacar uma notícia ou uma opinião, mesmo que seja para a combater, estamos já a dar palco, e consequente visibilidade, à mensagem ou ao seu emissor.
Há também muitos internautas que utilizam o timeline virtual como diário em formato “online” e, tal como acontece no meio editorial dos livros, são uns de pior ou melhor qualidade diarística que outros, sem uma filtragem que tantas vezes é apenas feita pelos pares, tão utilizadores como nós da mesma rede, e não de um qualquer editor que se coloque na posição arbitral.

Suponho que nem todos terão consciência da perenidade deste suporte que é tão duradouro como é qualquer acto de escrita desde o momento inicial da história da Humanidade. Essa domesticação do que parece tantas vezes um dito ou um pensamento à solta e se fixa para ser lido noutro momento e noutro lugar, ainda que graças ao timeline possamos de certa forma reenquadrar na circunstância própria em que foi registado. Tal como nem sempre se faz o exercício de verificar a credibilidade de certas fontes, o relacionamento entre assuntos afins, o que a boa da inteligência artificial até nos facilita quando abrimos a sala de convívio virtual, ágora do século XXI. Como aprendemos, com a educação e a experiência, da maneira mais violenta ou mais agradável, a gerir o nosso tempo para gerirmos melhor a nossa vida, assim podemos aprender a usar como nos fizer mais felizes ou considerarmos mais útil as timelines que frequentamos. Mesmo que às vezes pareça só conversa. 

5.5.15

Erasmus

Por esta altura um pouco por todas a cidades universitárias, ou até mesmo só cidades com universidades desta Europa, os estudantes que querem, podem e fizeram por isso estão a saber para que outra universidade, noutro país europeu, irão estudar no próximo ano lectivo, durante o ano inteiro ou só num dos semestres. Este programa europeu, financiado por fundos para os quais todos os contribuintes europeus participam, foi talvez das primeiras iniciativas da União Europeia para que esta união passasse da ideia, que muitos dela fazem, de que apenas existe para acordos económicos e envolvesse de facto cidadãos que pudessem considerar a Europa um território a que pertencem, como muitos sentirão em relação ao seu país. 
Estabelecido em 1987, foi afinal um programa de apoio interuniversitário de mobilidade de estudantes que veio dar ainda um maior sentido à Declaração de Bolonha, assinada a19 de junho de 1999, e que desencadeou o denominado Processo de Bolonha. Um documento conjunto que alargou o espaço europeu para lá dessa União, já que foi assinado pelos Ministros da Educação de 29 países europeus, reunidos na cidade italiana de Bolonha.
O programa Erasmus tem o nome do filósofo holandês, Erasmo de Roterdão que, no seu percurso intelectual de combate ao dogmatismo, viveu e trabalhou em vários locais da Europa para expandir o seu conhecimento e ganhar novos conhecimentos. Erasmo optou por levar uma vida de académico independente quer de um país, quer de laços académicos ou de lealdade religiosa e de tudo que pudesse interferir com a sua liberdade intelectual e a sua expressão literária. É que quem sai do seu lugar para partilhar com os de outros lugares o que lá aprendeu, quem volta a esse lugar de origem ou vai tendo destinos vários, acaba sempre por levar e trazer mais alguma coisa a esses lugares. Desinquieta-se o corpo em movimento, inquieta-se o espírito que, à partida, fica mais crítico porque mais aberto ao outro, que tem quase tanto de mesmo como de diferente.
Aquele que empreende um tal programa predispõe-se a enfrentar o incerto. Quando o filósofo Erasmo morou em Lovaina foi alvo de muitas críticas mesquinhas por parte dos que se sentiam incomodados pelo questionamento dos seus dogmas, o que equivale a dizer que Erasmo lançou a dúvida sobre os que apregoavam convicções inquestionáveis, uma verdade absoluta e que devia ser ensinada com autoridade. Estes eram gente douta pelo que conheciam do saber transmitido sem inquietações, mas hostil aos princípios do progresso a que Erasmo devotou a sua vida. Procurou então refúgio em Basileia, onde se estabeleceu e acabou por morrer, recebendo a visita de muitos admiradores de vários cantos da Europa. Resumindo, um homem que circulou e fez circular gente nesta Europa para arejar mentes e construir os espíritos humanos predispostos a abrirem-se.
Já agora acrescentar que E.R.A.S.M.U.S. é também uma sigla para European Region Action Scheme for the Mobility of University Students, em português Sistema de Acção Regional Europeia para a Mobilidade de Estudantes Universitários. Aos que estão a preparar as malas para embarcarem nesta aventura também do Conhecimento, só posso desejar que seja tão profícuo como a experiência que eu própria tive em Bordéus, França, há 26 anos e que me permitiu, já que nunca tinha saído de casa para estudar, ganhar o gosto para ter a bagagem de me adaptar aos outros, noutros lugares e com outros costumes, disposta a contrariar dogmas que é, afinal, questionar para aprender.

28.4.15

Bué

Hesitei em considerar bué um estrangeirismo. Nem o meu corrector automático que me aponta a vermelho a grafia pré-Acordo o considera um erro, apenas uma informalidade. E até porque é utilizado, quase de forma corrente, pela geração dos meus filhos e, de vez em quando nesta matéria de nos pormos à medida deles para melhor comunicarmos, também lá o vamos usando. Não é palavrão, é curto e expressivo, e é naturalmente humano deixarmo-nos fascinar por estas “modernices”. Mas não me tento a considerá-lo estrangeirismo sobretudo porque nos chegou com a lusofonia, e estas contaminações, ainda para mais com peso histórico e social, só enriquecem uma língua. Acrescenta-lhe valor, já que não deixamos de usar os sinónimos existentes. É verdade que às vezes se tornam “bengalas” do discurso um pouco irritantes, mas isso há muito que as há com os mais pomposos “portantos” e “efectivamentes”, normalmente reveladores de pouco à-vontade no discurso oral, mais do que sintoma de pobreza lexical.   
Bué, mesmo com este ar de interjeição, pode ser um advérbio ou um pronome que talvez tenha tido origem no quimbundo, um idioma angolano. De uso informal, significa o que se faz em grande ou intensa quantidade e qualidade, como na frase «andámos bué». Quando pronome até por vezes se lhe acrescenta a contracção da preposição “de” com o artigo feminino “a”, mesmo quando se lhe segue um substantivo masculino, como por exemplo em «estava bué da povo na praça». Há quem, inclusivamente, arrisque que esta fórmula é aparentada com o “beaucoup de” francês. Curiosa é também a apropriação que a língua portuguesa de Portugal vai fazendo do bué, arranjando-lhe plural, por exemplo, ou versões “torcidinhas” como o “buerére”.
Por tudo isto, mas não só, o bué desta crónica é um voto de hospitalidade aos que, vindos de fora e de longe, se integraram no nosso país, contra ventos e marés que foram encontrando sobretudo quando com o 25 de Abril, foram chegando das ex-colónias. Essas adversidades não existem só agora ou apenas nesse Mare Nostrum a que hoje chamamos Mediterrâneo, mas já em terra firme e entrados no sistema nacional e europeu. Aliás, até dentro do país os que mudam de terra são os que “não são de cá”, nem ao fim de várias décadas.
O multiculturalismo é uma realidade em construção há alguns séculos, que evoluiu civilizacionalmente, mas que é importante acompanhar. Certas palavras e expressões reflectem alguns modos de vida e de pensar, e podem inquietar mentes, no bom e mau sentido que inquietar pode ter. Abrir mentalidades, sobretudo no seu formato multicolor, só é possível quando haja uma predisposição para tal. É muito mais complexo do que abrir fronteiras (estaremos todos disponíveis para os receber e partilhar com eles os empregos, os hospitais, as salas de aula?) ou enviar tropas para tentar repor um modelo de vida nesses lugares de onde fogem (estaremos todos disponíveis para ir ou ver os nossos filhos partir para a guerra lá longe?) intrometendo-nos em terreno alheio. É certo que nada disto justifica que se ignorem os acontecimentos e que não se predisponha o resto do mundo – julgo que a escala é mesmo a global – a procurar soluções. Mas não se transforme o nosso choque em tresleitura de uma realidade que não é de leitura nem interpretação fácil. Comecemos pelo exercício de aceitar o bué, por exemplo.

21.4.15

The show must go on

Foi uma semana difícil, a que passou, porque eu perdi uma amiga e nós, na cidade de Évora, perdemos alguém que era detentora de um imenso saber. Não me era nada familiarmente, nem sequer íntima ou até “chegada” no relacionamento fora do contexto de trabalho em que tantas vezes, fora de horas, nos encontrámos. E por isso, também, me sinto à vontade para exteriorizar o que sinto, assim de forma tão pública.
A Ludovina foi a pessoa que me apresentou à carta ética da administração pública. Até porque a tinha afixada, para quem a quisesse ler, no serviço em que trabalhava. Fazia-o com essa certeza de quem cumpre e nada tem a esconder. E também porque a queria ver cumprida por todos quantos ali entrassem nessa condição, que também era a sua e que tão exemplarmente desempenhou, de funcionária pública.
E depois partiu o meu Ministro, o que também me voltou a entristecer. Sou de opinião que foi dos governantes que durante a minha vida enquanto estudante e depois professora e investigadora de facto assumiu, na área da educação e da ciência, essa função de servir, que é o que significa literalmente um ministério, o interesse público. Como lho ouvi dizer, “quis levar a ciência para a rua, a experimentação para a escola e a argumentação científica para os debates da sociedade e para a política”.
Estas perdas lembraram-me a expressão the show must go on, popularmente imortalizada por quem, com uma morte anunciada, ainda cantou as palavras àqueles amigos que já se preparavam para chorar a sua partida. Uma expressão que é um alento para que quem sobrevive aos que partiram continue a viver a vida, e não apenas a sobreviver, até em sua memória. O Shakespeare também disse, mais ou menos assim, que o mundo inteiro era um palco e que todos os homens e mulheres não passavam de meros actores, que entram e saem de cena. A fama, sabiam-no eles os famosos, não leva à imortalidade. Mas a memória, digo-o eu, honra os que partiram e nós amamos, nas diferentes formas de amar que a amizade conjuga.
Choramos os nossos mortos e nesse chorar não estão eles mas estamos nós. Choramos e isso alivia-nos, ou não, mas a eles, aos que partiram, já de nada lhes serve. Ainda assim continuemos a chorar, sim, porque isso é de Homem, com maiúscula. Mas depois de chorar, teremos de continuar a rir, a lutar, a exigir, a zangarmo-nos, a aprender, a ensinar, e a amar a vida que é o que eles, os que partiram, já não podem fazer.

Hoje vou ficar-me por aqui e vou ali respirar. E faço-o hoje, também, não só porque tenho de o fazer para viver, mas também pela minha amiga. The show will go on.