11.7.22

A cada estirpe, a sua vacina

 Com o fim do ano lectivo, termina também mais uma temporada das crónicas da DianaFM, que o acompanha, e em que consegui cumprir sem faltas o calendário com que me comprometi. Auto-avaliação feita, é hora de encerrar trabalhos em jeito de relatório, assim não tão sumário.


Foi um ano em que se regressou a uma certa normalidade, com intermitências, fruto da pandemia que ainda anda por aí. Com sequelas para alguns - não é fácil ver partir quem se ama ou perder a esperança -, mas também com aprendizagens a começarem a aplicar-se. Como aprendemos na escola e na vida, as melhores respostas para os engulhos encontram-se com uma boa e serena troca de opiniões, um trabalho conjunto em que os resultados vêm ao encontro do princípio que nos diz que “se servir para todos, servirá para mim também”. 


E se no período mais agudo da pandemia, por vezes, dizia que se fosse uma guerra ao menos podíamos render-nos, a realidade veio endireitar-me a ficção e fazer-me repensar não já na hipótese, mas sobre o facto: acontece muito quando em vez de nos perguntarmos “e se?”, afirmamos “se fosse comigo fazia assim ou assado”. Ninguém com o juízo sintonizado na democracia entenderia a rendição da invadida Ucrânia. E tivemos direito, em reacção, não ao ensaio, mas ao decreto sobre a cegueira de um Partido que se revelou como um casco de uma barquinha que deixa de estar submersa quando o lago seca.


Assisti, de resto, a várias reacções que estranhei, de pessoas que julgava conhecer melhor, e de outras que, não conhecendo bem, esperava comportamentos consonantes que não aconteceram. E também eu não terei escapado a reacções em que me estranharam e, felizmente, em que eu própria me estranhei. Até julguei, e ainda não estou totalmente convencida do contrário, que estava por fim a envelhecer. 


Destaco o arrazoar de conversas em estilo rascunho, mas em situações que pediam cuidados para uma versão final; houve também um crescimento da constante propagação de assuntos pessoais em redes sociais que, das três, alguma - ou são a nova esquina de tagarelas incorrigíveis, ou o lugar de driblar a solidão ou , ainda, a tentativa de imitar “influencers”, esses grandes modelos do saber-estar actual; também cresceu a exigência de que todos nos punhamos no lugar de todos, não para experimentar a empatia ou encontrar respostas para acabar com o mal de que se reclama, mas exclusivamente para que se dê razão a quem reclama e está pouco disposto a aceitar que os outros não têm de ceder a estados de alma; e, finalmente, estranhei até a própria expressão de reacções a opinião diferente, que passou a ser um espectáculo dramático.


Está difícil evitar que se continue a agir sem ser preciso estar sempre a apelar, em modo “recurso hierárquico”, a quem venha, lá de cima, resolver o assunto, nem que seja com a vã invocação do “Ó valha-me Deus!”… Felizmente, a distância de todos também nos aproximou de quem dificilmente poderíamos conviver mais de perto e parece agora mais acessível. Ou, pelo contrário e usando uma cruel e ambígua outra expressão, como só a popular sabe ser, darmos conta que há situações e alminhas que “se não fosse a falta que fazem, não faziam cá falta nenhuma”. 


Isto traz-nos, claro, muitas dificuldades em viver o dia-a-dia, sem sabermos com o que contar quando julgamos estar a fazer o certo e somos desarmados, não pela crítica construtiva que ajuda a ver o outro lado e em que continuo a treinar e apostar, mas pela palavra destrutiva. Como quando não nos pedem uma explicação ou um conselho, mas nos berram um insulto ou guincham uma reclamação. Ou ainda, como certas alminhas, que por uma pessoa dizer que pretendeu poder ter mudado qualquer coisinha é arrogante, depois acrescentar que não foi sozinha mas em equipa que terá conseguido mudar muito mais, e as alminhas continuarem a manter o rótulo da arrogância e a reprovação. Mais valia dizerem logo que, fizesse o que fizesse, sozinha ou acompanhada, o importante era não entrar na equipa deles (que certamente treinará no Olimpo). 


Parece que, nos Grandes Confinamentos, se alguns tentaram blindar-se e construíram armaduras, outros andaram a construir fisgas e a montar armadilhas para o que der e vier, quem quer que esse inimigo seja. Assim é difícil. Temos de nos entender, também no que pedimos dos outros, sem que o objectivo seja encurralá-los, mas para ter respostas ao nível : ou não sabemos exactamente o que estamos a perguntar, a pedir, a exigir? Tudo parece estar a ser possível… 


E foi assim que também eu descobri as minhas sequelas, não sei se da pandemia, se do tempo de vida que levou um

“boost”. Perante reacções em que o acesso ao razoável se fecha num sentido, tento manter-me em espírito de mínimos ou de INEM - reagir só em caso de emergência - e dar-me mesmo muito, muito bem comigo mesma, tentando conservar energias para o que sejam buscas de soluções sustentáveis. 


Se calhar acabei a ser influenciada por pensadores e filósofos de Facebook… E, lá está, se para cada estirpe haverá a sua vacina, para esta eu encontrei a minha. Como para os confinamentos me rendi sem dor ao trabalho mais intenso e disciplinado de leitura e escrita; como desde há uma década para cá que, para a interdição dos banhos de sol, só o prazer da esplanada à sombra, sempre com o marulhar como som ambiente, já me sabe quase a paraíso. Provavelmente precisarei de doses de reforço para lidar com os outros sem ser expulsa para um qualquer eremitério, mas para já vou ali de férias e aproveitar a imunidade desta dose, que foi pesada. 

5.7.22

Como cestos de fruta

 Parece ter acontecido recentemente um episódio, ou série deles, de homofobia e/ou de xenofobia numa conceituada Universidade portuguesa, que exigiu que o próprio Reitor viesse a público defender a honra da instituição que governa e representa. 


O caso terá passado despercebido à esmagadora maioria dos cidadãos, até de quem trabalha ou estuda noutras universidades, como me aconteceu a mim. Não fosse ter excelentes impressões e relações com quem lá trabalha, investiga e estuda, e visitar de quando em vez as suas páginas nas redes sociais, que também não tinha dado conta de que alguma coisa tinha ali apodrecido.  Como uma peça de fruta num cesto cheio e com variedade.


As organizações com muita gente, tal como as instituições que se compõem como micro-representações das sociedades em que estão implantadas,  estão sujeitas a acolher quem é incapaz de viver nesses contextos. O início do comunicado daquele Reitor anda precisamente à volta disso mesmo: o preconceito é filho da ignorância e as universidades são lugares de conhecimento. Quando se tem de ter “dois dedos de testa” deve reconhecer-se que se existe preconceito, algo vai mal. 


Se o que causa o preconceito é incompreendido, que se invista em perceber do que se trata, de forma a sabermos se estamos errados ou desajustados. O erro tem critérios e argumentos que o consideram como erro, não são um direito ao “é a minha opinião” para vivê-lo contra tudo e todos porque “estamos num país livre”. Já o desajuste pode solucionar-se com o favor de guardar para si o preconceito e proceder civilizadamente em sociedade. Quando se parte do princípio, claro, que é do lado do bem-estar e prosperidade colectivos que estamos. 


Vejamos outro assunto diferente, que ainda assim cai em parte neste campo da identidade, experiência pessoal em que o reajuste de argumentos abriu uma excepção ao caminho que defendo de ir acabando com extremismos para encontrar equilíbrios sustentáveis: a suspensão das consequências do americano Caso Roe vs. Wade. No que era a minha argumentação a favor da despenalização da interrupção da gravidez, vulgo aborto, que o caso de há décadas permitiu, nunca colhi o argumento do “my body, my choice”. Talvez porque sou da geração que ouvia Ary dos Santos dizer, na voz da Simone de Oliveira, que “quem faz um filho, fá-lo por gosto” e que o assunto dos filhos envolveria desde o início sempre duas partes e não apenas a pessoa que os carrega em si até que cheguem à luz dos dias. 


Todo o contexto que envolve o discurso, as práticas e iniciativas, ou falta delas, dos muitos grupos que se regozijam com a reversão desta despenalização, maioritariamente religiosos e que evocam a palavra “Deus” como propriedade privada sua, veio fazer-me ver que há um enorme preconceito societal que as mantém: o de que o estatuto feminino, na sua cláusula biológica, dá direito à invasão da privacidade legal de cada mulher. E isto é, muito para além da moral que rege a atitude individual, uma injustiça social. 


Claro está que nem todas as mulheres só porque são mulheres são seres ungidos, tal como, por ter acontecido ser homem a uma pessoa seja colado o rótulo de agressor. Não se trata de não misturar vários frutos numa mesma cesta, mas de os manter com a saúde que permite ser um belo cesto de fruta variada. Dela sairá a semente que dará os frutos que vêm a seguir e isso é tarefa do cesto todo, liderado também por quem o representa. Ninguém diz que é fácil, ninguém pode dizer que os cestos, e quem os mantém, são todos iguais. Mas servem de exemplo, a seguir ou a evitar.