29.9.20

Um dos dilemas sociais

 O documentário que está a passar numa rede de comunicação e entretenimento privada, originalmente intitulado “Social Dilemma”, está a ser muito falado. Até, ou talvez por isso, nos que não usam as redes sociais ou, no outro extremo, que frequentemente nelas se esvaziam em confidências. E quando digo “falado” retomo a diferença, não assim tão subtil nem com novidade, entre “falar” e “dizer”. São desabafos, suspiros, exclamações: enfim, o que se “conversa” com muros, com a almofada ou de mãos postas ao céu. Tinha até muita curiosidade em saber se quem o faz, com o coração apertado perante o horror de se sentir invadido cada vez que partilha um pôr-do-sol, um acepipe ou um gatinho fofo, não será o mesmo que aplaude a ousadia do hacker Rui Pinto em devassar para, ao que parece, desmascarar a corrupção...


A manipulação de pessoas, a invasão da privacidade, as inconfidências são assunto tão antigo que já nos esquecemos de que é sobre elas que se trata, noutra escala em que o espaço encolheu e a conflitualidade, por isso, cresceu aos olhos de mais. E só voltamos a lembrar-nos, ou nos despertam para elas, quando se transformam em espectáculo: com enredo, cenário, personagens, guarda-roupa, efeitos especiais e banda sonora.

Confesso que não consegui ver o documentário até ao fim, sem o pôr a passar depressa: sem me trazer novidades, sobretudo do outro lado norte do Atlântico, o tom apocalíptico misturado com o drama pessoal de quem não aguentou entrar no lado escuro do negócio, talvez porque pensasse que ao tratar-se de coisas de ócio não tinham esse risco, cansou-me. Aprendo mais com um bom livro ou filme ou série. Daqueles que nos falam de casos fictícios em ambientes relativamente factuais do passado, ou os que experimentam cenários futuros projectando eventuais contextos construídos a partir do que sabemos do Presente.

O dilema, também social, é mesmo lidar com o Presente. Temos de o fazer todos os dias e seria bom conseguirmos fazê-lo usando algum do espírito crítico com que nos lançamos a avaliar o passado ou a vaticinar sobre o futuro... dos outros. Normalmente, a isso também se chama Educação, o substantivo desejavelmente mais comum, mas também próprio (no sentido da sua identidade complexa) que conheço. Usar as redes sociais é termos consciência de que não estamos sozinhos (e como isso até salva vidas e promove a saúde mental); é termos de saber como comportar-nos em público; é aprendermos a distinguir com quem nos queremos relacionar evitando dissabores - a nós, sobretudo, mas também, talvez, aos outros. E quando a nossa rede de relações cresce, até para o bem, isso pode ser um dilema. Habituemo-nos.

22.9.20

Os Trapos

 Falar do fim da vida, a partir das coordenadas em que a taxa de suicídios foi sempre macabra imagem de marca, não nos transforma nos maiores especialistas em como lidar com as soluções para quem vê esse fim aproximar-se. Mas pode ajudar. Torna-nos mais íntimos do que é essa realidade. Embora falar de fim de vida não signifique falar só de idosos, mas de todos quantos a têm ameaçada: seja pela doença, pela guerra ou pela fragilidade social. Coisas que roem. Com excepção da natural velhice, estas situações são complexas, com causas várias e difíceis, senão de prever, sobretudo de resolver.


Envelhecer, mesmo sendo natural e desejável, desperta muitas vezes as outras condições da doença e das dificuldades em continuar integrado na sociedade. (A vida é ela própria uma actividade de risco com prognóstico certo de morte, o que podia desafiar-nos para a aproveitarmos melhor. Porque nem sempre é possível, tantas vezes, perante a contrariedade exclamamos: é a vida! Mas exclamações não são desculpas, são o fim da linha de quem fez para que esse fim fosse o mais longe possível.)

Vivermos em lugares onde estas fragilidades são a realidade pode levar-nos a uma frieza que choca os que, à distância, têm delas visões adocicadas e românticas (no sentido de histórias com heróis que salvam e em que vai ficar tudo bem). Vulgarmente até dizemos que estes dão bitaites, são treinadores de bancada, para quem é fácil falar, porque não jogam, e só se interessam pela equipa do seu clube. Quando a desgraça sobe ao palco, incomoda, choca, e mobiliza durante o tempo do espectáculo, para depois a devolver aos mesmos de sempre: os que governam o todo, os que gerem os casos, os que vivem dos casos. E nestes há instituições que integram sistemas: são os que vivem para os casos. Aqueles cujo fim é plantar e regar uma árvore da qual nem sequer sabem se terão oportunidade de receber a sombra. Aqueles que terão de estar também atentos às dinâmicas do envelhecimento: os novos idosos, diferentes dos velhos idosos. Para que, em vez de ouvirmos que “velhos são os trapos”, passemos a procurar que se lhes diga que “qualquer trapinho lhes fica bem”. A eles e a todos os que precisarem de um apoio extra para viverem, com dignidade, muito mais tempo.

Para tentarmos mitigar as dificuldades em cumprir esta tendência, tão crescente quanto a idade média de vida, também vamos ter todos de começar a pensar mais cedo em nós próprios. É que os outros serão aqueles a quem, numa determinada altura, acabaremos por ter de nos entregar. Os outros somos nós, hoje, a tratar dos nossos mais velhos. Não vale a pena tratarmos o assunto só com... paninhos quentes. Poderemos pelo menos tentar não nos tornarmos a nós próprios gente mais difícil e escolher melhor as linhas com que nos cosemos.

15.9.20

Contra o que RÓI

 De volta às crónicas, renovo o agradecimento à DianaFm pelo convite que me permite dar-vos a ouvir e a ler a minha opinião.

2020 é ano que ficará na História pelas razões que normalmente assistem a essa marcação na linha do Tempo e que certos indivíduos, pateticamente, ambicionam, multiplicando-se em habilidades várias.

Mas são as guerras e as desgraças naturais, a par das descobertas científicas, que confrontam a Humanidade e a obrigam a crescer. São factos que se constituem como balizas para se contar o que já fomos, permitindo-nos acautelar, no que for possível, o que seremos.

Em simultâneo, nestes seis meses do meio do ano, assistimos ao nascimento de uma pandemia que abalou vários sistemas que tínhamos como confortáveis mas, pelos vistos, frágeis; assistimos ao ressurgimento dos ímpetos racistas com respostas reciprocamente violentas; assistimos ao reerguer do discurso do fascismo, rebocado por um espírito contestário mais destrutivo do que colaborativo, como isco para solução fácil de problemas trabalhosos. Trabalhosas são as muitas arestas com que a Democracia se depara, por ter de contar com a participação de todos, e cujo limar depende mais do indivíduo com carácter empático, do que daquele que, à volta do seu umbigo, apenas quer ter a vidinha arrumada, normalmente com jeitinhos de fazer inveja ao próximo.

E tudo isto com a Ciência a provar ao resto do Mundo que sim, que a dúvida, a tentativa e o erro estão-lhe humildemente na base, por muito que quem a combata faça do erro a poeira com que cega crédulos, e que estes se transformem instantaneamente em arrogantes sabichões para quem o remédio está em eliminar quem não creia.

É contra o que nos rói - acrónimo também do racismo, do ódio e da intolerância; é contra o que parece ter apanhado boleia da frustrante pandemia para fazer emergir do pântano esses instintos que para vingarem, têm de se vingar em alguém, que me baterei com as palavras que vos vou deixando por aqui. E que nestes dias se revestem do enorme desgosto de ver a Évora das três culturas - judaica, islâmica e cristã-, a Évora Património da Humanidade, a Évora candidata a Capital da Cultura, poder ser cenário de quem se congrega contra a diversidade, contra o Conhecimento, contra o que é a construção humanitária e a troca pelo pseudo-solução instantânea como quem troca o ensopado feito a preceito pela sopa de pacote. O que, como todos sabemos, só engana quem ignora como isso se faz ou, por outro lado, quem sabe que poderá ficar com o ensopado que os outros se contentarão, enganados, com a sopa de pacote.

É contra tudo o que rói que continuo a usar da palavra, também aqui.