15.12.20

Mensagens de quase amor

 Por ter parecido estranho a alguns ter dito, na última crónica, que andava há décadas interessada em representações literárias do amor (aliás, uma banalidade na área em que trabalho), hoje vou aproximar-me do assunto por outro ângulo. Mas também o faço porque estamos a entrar naquela época do ano em que, ao abrigo da quadra, se aproveita o amor familiar como uma boa desculpa para festejar, ainda que sobretudo muito se traduza em fazer circular a economia, numa fúria consumista que normalmente ultrapassa o espírito da troca em presença. E criando até, neste 2020, armadilhas propiciadoras de incoerências. É que a melhor prova de amor que podemos dar àqueles com quem quase só estamos sobretudo nesta altura do ano é precisamente a distância física, essa inimiga de amores vários.


Foi assim que me apeteceu partilhar a minha última “descoberta”, mais lúdica do que profissional, bem entendido, mesmo quando nunca conseguimos desligar-nos do que escolhemos fazer para ganhar a vida sem perder tempo. Trata-se da classificação, com direito a designação própria e compósita, de uma forma de ensaio do discurso de sedução: o “flirtexting”. Sem a intimíssima grotesca tendência, nua e crua, do discurso pornográfico, a que chamam “sexting” pois claro, o “flirtexting”, ao que li, pode tornar-se numa espécie de versão de romance epistolar amoroso da era dos tweets: exercício de brincadeiras leves com palavras e sentimentos que, aparentemente, não passam disso. Ora se houve coisa que aprendi com Valmont, Cécile e Madame de Merteuil é que estas trocas de insinuações amorosas podem transformar-se em ligações perigosas: basta responder, nem que seja a dizer “não”, para se entornar o caldo. O que acontece quando o que se diz por escrito é inconfessável olhos nos olhos em público, que se complica no jogo de interpretações e pode saltar do papel - ou ecrã no caso do “flirtexting” - para a alcova. Mas não vamos já pensar no pior, porque também tudo pode não passar disso mesmo, do flirt-em-modo-verbal, num regresso discreto à adolescência de amizades e paixões arrebatadas e arrebatadoras que circulavam na tribo dos amigos do bairro ou da escola.

O discurso amoroso, que é sempre ridículo quando diálogo assistido por terceiros, tem padrões e efeitos muito próprios e certeiros quando complementam a relação presencial. Quando não, transforma-se em exercício lúdico de sedução. As mensagens de “flirtexting” são, por isso, suplementos apimentados e salerosos que talvez ajudem a passar a monotonia dos dias infelizes. Nada a condenar, sobretudo a quem este tipo de exercício tem efeito tão benéfico como para outros a contemplação a dois, ou mais almas afins, do belo como consolação. Às vezes com cheirinho a risco, aventura, transgressão, segredo ou traição, o que, em certos contextos, nem sempre é algo de que nos possamos gabar.

Passando para a estranha realidade que atravessamos, diria que as videochamadas entre familiares forçosamente agora distantes são o melhor substituto, não passando de ilusão, para a presença afectuosa e concreta, de cuja falta tantos se queixam. E no Natal parece exacerbar-se a obrigação da expressão dos bons sentimentos (até se fazem tréguas dos maus, em muitas casas). Voltando à minha descoberta em comunicação virtual (será que lhe posso chamar assim?), uma das diferenças entre as mensagens amorosas e as mensagens do “flirtexting”, é que umas são continuação de relações que existem e preenchem as ausências, enquanto as outras, escondidas nas palavras, emojis e innuendos, criam a impressão de presença de algo - a intimidade até sensualizada - que, à partida, é para permanecer ausente. Concluindo e regressando ao Natal, temos nas nossas relações, quase todos, aqueles com quem nos juntamos e aqueles a quem só fazemos o telefonema habitual. Chega uma pandemia e parece que tudo se mistura e confunde. Uma chatice. Foi aqui que me apercebi o quanto de “flirtexting” há nas mensagens natalícias que se instituíram a vários níveis. Quem não enviar ou receber pelo menos uma por Natal pode até sentir-se mal-amado ou ingrato, o que é só triste. Assim sendo, para manter ilusões, toquem-se sininhos e soltem-se as palavras de ordem, como “próspero”e “santo”, embrulhadas num sempre participativo contexto a que chamamos “votos”. Posto isto, seguem os meus de Santo Natal e Próspero Ano Novo. Um flirtzinho aparentemente inócuo mas que ajuda quem exerce a ultrapassar a monotonia dos dias. E neste 2020, a parecer que, não estando, tudo está na forma do costume.

8.12.20

Pensar arde, como o amor (mas diz-se também que o que arde cura)

 Como é habitual, e é bom que assim seja, quando alguém importante morre todos se unem para o chorar, ou melhor ainda, para o recordar. Fazem-no, normalmente, de acordo com o que lhes convém, o que diz mais de quem recorda, evoca e cita, do que da própria personalidade que se vê, assim, recortada, pulverizada e ajeitada aos “descontextos”, mais ou menos próximos dos contextos da obra original.


Nos últimos dias da semana passada falámos e ouvimos muito falar de pensar, de escrever, de palavras. De repente, parecia não apenas que toda a gente conhecia Eduardo Lourenço (e por conhecer digo saber o que ele fez mesmo ao longo da vida, com impacto público), como finalmente parecia generalizar-se a importância das disciplinas e áreas do conhecimento que vivem com as palavras como lugar antes da acção. De repente, parecia que tínhamos retomado um bom rumo, nem retrógrado, nem esgotado, mas desviado pela sobrevalorização do empreendedorismo, dos softskills, do coaching que atropela tudo para se colar e equiparar à transferência de conhecimento (expressão também eufemística usada para não ofender quem não gosta de perder tempo a ensinar ou a aprender). De repente, parecia que se valorizava o tempo que um homem passa a ler jornais e o tempo que lhe damos para o ouvirmos falar sobre o que aprendeu neles. Uma valorização de quem ganhou com a distância para conhecer melhor os seus e a sua terra, ao contrário da popularucha ideia de proximidade que se vende barato em tantos discursozecos de púlpitos de acrílico no largo da nossa terra.

Também eu (que ouvi, ao vivo, o Professor muitos anos depois de ter lido o seu Labirinto da Saudade para ensinar, ou tentar ensinar, Cultura Portuguesa sem só fazer o estúpido exercício de me substituir a uma enciclopédia que nunca serei, debitando factos), também eu fiquei presa a um detalhe de uma entrevista que ouvi nestes dias e em que, à boa maneira das entrevistas, vive da história de vida do entrevistado. Eduardo Lourenço abre uma nesga para a sua intimidade, deixando-a tão velada quanto antes, mas permitindo-me imaginar sobre ele tanto quanto todos os anos que tenho usado a estudar o Amor retratado na Literatura me permitem.

Há dois anos, o intelectual, o pensador, o filósofo e professor disse ao jornal Expresso: “A única coisa de que me arrependo é de não ter estado à altura da pessoa que encontrei na minha vida e que a marcou para sempre”. A afirmação comoveu-me. Pela saudade da mulher amada, pela consciência de uma falha tão grande quanto o amor que lhe votava. Espectadora desta confidência, a mim pouco me importa saber o que se passou exactamente, em detalhes que só a eles diriam respeito. Mas consigo imaginar um sem número de situações que, podendo ter provocado o arrependimento, nunca chegarão para justificar a falha. E apesar da inteligência, apesar da humildade, apesar da devoção, apesar do encantamento com que se consegue ler o mundo e os seres humanos, a entrega na relação amorosa parece ter-se tornado na tarefa mais difícil do indivíduo que, como tantos outros, foi Eduardo Lourenço.

Pensar como quem faz arder a consciência parece, afinal e também, o único remédio que lhe aplacava a dor, fosse ela perda ou falha, transformando-se em arrependimento nada redentor. Apenas um ajuste de contas, lançando mão do raciocínio privilegiado que, com o Tempo, acaba. É bonito quando se vive tão intensamente com o melhor que a inteligência humana permite até ao fim. Mesmo já só a arder em pensamentos.

1.12.20

Restaurar

Em dia da Restauração, a que foi conseguida sob o ceptro de um rei que, parece, teria pouca vontade de governar, mas a quem caiu a coroa na cabeça e a mulher, D. Luísa, terá espicaçado para que se mexesse, apetece-me mais falar num génio do que num rei sem jeito, levado ao colo. Há por aí tantos desses a acharem que são reis...

Num momento em que a aprovação final do OGE para 2021 foi precedida de um espectáculo dado pelos deputados da oposição, podia falar de como se comprova a urgência de restaurar o nível das lideranças na nossa democracia. Mas apetece-me mais falar num génio cheio de contradições assumidas e por si alimentadas que o ajudaram a tornar-se numa lenda. Há por aí tantos que, cheínhos de contradições que negam, acham que ainda assim se tornarão lendas...

Podia falar de cumprir calendário como se fosse um dia santo ou uma quadra festiva cíclica, e comentar sobre como se pode transformar um congresso partidário num ritual para-satânico a fingir. Mas apetece-me mais falar num génio que desafiou limites por sua conta e risco, cedendo, sem rodriguinhos nem desculpas esfarrapadas, a todas as tentações a seu bel-prazer. Há por aí tantos a achar que nós não lhes estamos a topar as agendas, os calendários e os rodriguinhos...

A passagem de Diego Maradona à Eternidade, tão definitiva quanto a Humanidade, restaura a figura do génio, algo romântica: o que não finge a impressão do esforço e não prescinde dos excessos socialmente condenados. Uma realíssima conquista da sua própria estranha forma de vida, livre e poderosa, genial portanto. E é o que não precisamos de apontar como modelo a ninguém e que ficará assim, figura única, a encantar quem só pode ser espectador dessa sua genialidade, sem o invejar.

2020 foi, pois, também o ano em que um dos poucos génios da Humanidade se desmaterializou. Curiosamente, um génio que flutuou no palco do futebol, onde se enfeitiçam até ao limite das reacções mais irracionais (“o ardor infantil no peito maduro”) massas indistintas de seres humanos a esquecerem-se do resto da vida.

Em ano destes talvez devêssemos, enquanto colectivo, equilibrar a evasão desculpada pelas circunstâncias e, também por essas circunstâncias, pensar em restaurar alguns sistemas em que nos enredámos. Ainda que marcados e alertados para memória futura de fundo de baú, tentar esquecer depois o que perdemos em 2020.