27.2.18

Os massacres e o trumpzinho que há em nós


Dois massacres ocorreram nas últimas semanas com as sempre mais chocantes vítimas de crianças e jovens, os que vêem a vida interrompida antes de ela acontecer na sua força máxima. Com quase tudo por viver. Se a uns a promessa desse resto poderia prever-se relativamente risonha nas terras da Florida, para outros em Goutha, na Síria, o futuro adivinhava-se duro e difícil. À frente destes massacres estão várias pessoas culpadas, a vários níveis e com impactos de responsabilidade diferentes, todos com o mesmo resultado: a morte. A não natural, a provocada a quem não a procura, distante da autodeterminação a que o ser humano recorre quando faz uso das suas faculdades intelectuais.
A solução política na América do 45 da Casa Branca é a bélica: fight fire with fire. Continuar a alimentar o negócio das armas particulares que propiciam as todas outras condições que levam um louco a cometer um massacre, armando mais gente ainda, sempre com a desculpa de que será legítima a defesa. É sempre, legítima. Se não usar a mesma atitude criminosa de quem ataca. É isso que faz toda a diferença, também. Não a resposta instintiva ao ataque, que nos lembra a nossa proximidade com o mundo natural, mas essa previsibilidade de corresponder à violência com violência antes de qualquer outra medida.

Nos arredores da bíblica Damasco morreram os que não puderam atravessar o Mediterrâneo em botes de borracha. Os que não enchem campos de refugiados em fronteiras de cenário caótico, mas onde pelo menos não há essas bombas-barril, ilegais até na imoralidade que há no mata-mata de uma guerra. Os que muitos ocidentais têm dificuldade em receber como vizinhos. Os que a muitos, sim muitos, portugueses descansa que ainda não tenham chegado em maior número ao nosso país. Este país de gente que desde o século passado sai em legítima defesa para o estrangeiro e que fica profundamente reconhecida a quem, lá fora, os trata bem. Não adianta chorar os massacrados da Síria e depois não estar disponível para os receber. E às vezes mesmo sabendo como essas entradas aqui, na ponta mais sudoeste da Europa, são tão acompanhadas, devidamente enquadradas por instituições que ainda conseguem dar conta do fluxo de migração fugida dos massacres. E os que criticam quem pensa que a união dos europeus também existe para melhor servir o resto da Humanidade.

Há entre nós muitos trumpzinhos que dormiriam muito melhor com um muro à volta de si, contra o que os pode ameaçar. Muitos trumpzinhos que até em voz alta e para quem consiga que oiçam – na esquina, no café, no táxi, no autocarro, no cabeleireiro - desejariam que as instituições e os Estados agissem como o compadre que corre a sachada os que lhe batem à porta, nem que seja para pedir comida porque afinal até podia não ser para isso. E aplaudem os que, mesmo com óbvias intenções longe dessas que apregoam, prometem que uma vez no poder os livrariam de toda essa corja de gente de raça difícil. 

Na Assembleia da República o retrovisor tem sido um equipamento muito sugerido para ser usado de modo a que os políticos se revejam nas suas políticas. Cá fora seria bom um simples espelho, ao lado televisão, para que quando se derramassem as lágrimas perante os massacres lá longe se percebesse a hipocrisia de ousar dizer algumas “coisas”.  Que essas imagens nos sejam úteis, e que seja de dignidade da espécie humana que se fale.   

20.2.18

A carreira e o carreiro


Andou por aí a notícia de que Passos Coelho deixaria a vida política para regressar não à vida empresarial, por onde terá circulado em tempos, mas para ingressar na vida académica, dando aulas em várias Universidades deste País e, quiçá, até estrangeiras quando aprender a falar inglês. O assunto toca em matérias que conheço e, como tal, sinto-me impelida a partilhar convosco algumas reflexões sobre a notícia, se esta for de facto uma notícia e não mais uma daquelas coisas que se fazem passar por elas.

É sabido que ser-se político de carreira é algo de mal visto por (quase) todos, para além de ser actividade inexistente na tabela CIRS das Finanças (aparece uma categoria de “Profissionais dependentes de nomeação oficial” mas vai-se a ver é coisa para Notários e Revisores Oficiais de Contas). Trata-se de uma carreira altamente precária por princípio, sujeita à expressão pelo voto da vontade popular. Mesmo quando os lugares políticos são de nomeação, são-no por parte dos que foram eleitos e a estes, como aos eleitores, devem também prestação de contas do seu desempenho. Como qualquer precário, findo o período de actividade é natural que se façam à vida. Alguns aproveitam o tempo de estadia na vida política para ir preparando esse futuro incerto, o que assim dito até não parece criticável. Mas também todos sabemos que há diferentes maneiras de o fazer, havendo quem se dedique de facto a uma carreira e a quem se dedique de facto a procurar carreiros para chegar a uma meta, nem sempre final. Eu cá teria preferido que Passos Coelho ficasse funcionário do Partido com quem manteve desde tenra idade uma relação seguramente muito benéfica para ambos, ou não teria chegado a PM.

Depois, a carreira universitária tem etapas, e requisitos para que se atinjam essas etapas, actualmente com uma avaliação regular por triénio e outras avaliações públicas ou concursais para se mudar de categoria. Muitas vezes nessas carreiras estão excelentes investigadores e docentes que articulam os requisitos exigidos pelas instituições de ensino superior da qual a extensão à comunidade é um deles, e que demonstra a necessidade de que os seus membros não se ensimesmem e se alheiem do mundo que os rodeia, para o qual devem contribuir, e que, sendo eles funcionários públicos, lhes paga o ordenado ao final do mês. Muitas vezes o que se ensina nas Universidades requer que se incorporem mais testemunhos e contributos de quem vive mais no mundo de fora do que de dentro da instituição e, por isso, se convidam indivíduos que cumprem essas funções. Não acho, pois, estranho que um ex-PM tenha muito para partilhar com vários alunos de cursos universitários, sobretudo os que lidam com questões de Política. Caberá aos devidamente certificados como responsáveis desses cursos, avaliar da importância de o receber ou não na sua equipa de docentes e investigadores. Isso também dirá mais da Universidade que convidar do que do convidado.

Também é verdade que muitos políticos iniciaram a sua vida profissional na Universidade, cumprindo com as regras que lhes foram permitindo fazer aí uma carreira que depois interromperam ou desviaram para a carreira política, por melhores ou piores atalhos...ou carreiros. Até conheço quem, entre dois períodos de exercício político de eleição, com alguns meses de intervalo para regressar ao que soe chamar-se alma mater (onde deve ter seguramente feito alguns seguidores que é o que faz quem dá aulas e consegue “fazer escola”), que lhe permitirão, com alguma sorte e astúcia (pronto, e mérito validado por eleições democráticas), perfazer 32 anos de serviço na carreira política e, ainda assim, continuar a dizer que é docente de uma Universidade.  Isto é tudo muito discutível e, por isso, discuta-se. 

13.2.18

Disparates; tolices e tradição

Na origem da palavra “disparate” está um verbo latino que significa “separar”. Será assim porque, provavelmente, uma coisa disparatada representa, num certo sentido, uma quebra, uma separação, entre a realidade e a tolice. O Carnaval é a altura própria para a sociedade ser complacente com os disparates que, em princípio só durante três dias, cidadãos em grupos mais ou menos organizados fazem um pouco por todo este País. Instala-se um caos, ainda que de forma relativamente organizada em corsos e eventos públicos ou privados, num afinal também simulacro de caos. Tudo a fingir de forma muito séria. Cada vez me convenço mais que uma grande parte da Humanidade adora um simulacrozinho, um fazer de conta que se é não se sendo, confundindo-se então, nem que seja ao de leve, a realidade com a ficção, separando-se o que existe do que se finge que está lá. O que não deixa, portanto, de ser também um disparate e, por extensão, uma tolice.

Face a uma constatação deste género, talvez não fosse mal pensado estabelecermos algumas regras para o uso do disparate. Melhor ainda, para o multiuso do disparate. Depois de muito pensar sobre diferentes versões de um conjunto de termos de referência que pudessem regular direitos e deveres dos disparates e seus praticantes, eu que até sou adepta de que as regras devem ser o mais abrangentes possível, e por vezes por isso algo detalhadas (porque a lei defende os fracos e porque se, ao fim de algum tempo se verificar que a lei não serve mude-se a lei, justificando), desisti.  Afinal, tal tarefa que começava a tomar proporções hercúleas tinha-se iniciado já em período carnavalesco de caos consentido, com o simulacro a funcionar legalmente em pleno, e não me parecia tão grave a minha infeliz incapacidade de a levar a cabo. Um simulacro devidamente enquadrado pelo Carnaval.

Mas como também não sou de me ficar assim, rendida à desistência fácil (nem à resistência teimosa, diga-se de passagem), resolvi dar uma volta por aforismos de alguém que viesse lá da terra onde o Carnaval é quente e tirar a roupa abanando as carnes, fazendo tremer os sentidos ao sabor do Sol e das estrelas da noite, onde não é disparatado fazer desfiles de gente semi-nua como acontece quando, com as temperaturas de Inverno, centenas se passeiam por aí nessas terras geladas como se estivessem em pleno Sambódromo. E encontrei esta frase da autoria do brasileiro Guilherme de Guimarães (um pseudónimo, o que é também um simulacro consentido num certo meio), que terá dito o que ficou escrito: “É preciso ter em si mesmo suficiente confiança para não desanimar... e desconfiança bastante para não fazer tolices.” Isto pareceu-me um excelente conselho, talvez até podendo constituir um parágrafo introdutório a um regulamento sobre como lidar com a tendência para o disparate. Seria pelo menos bom para quando me vêm com argumentos que justificam atropelos de regras, onde encontro disparates, dizendo que já se faz assim há muito tempo, que sempre se fez assim, que é, afinal de contas, uma questão de tradição. E lembrei-me ainda ter lido algo sobre esse tipo de argumentação. Lá encontrei o que também dizem que deixou escrito Einstein, que “ a tradição é a personalidade dos imbecis”. Resolvi parar por aqui, pois apesar das tréguas, a coisa podia assumir contornos de violência e anti-civismo, o que não era de todo a minha intenção.

Assim sendo, faço votos de um bom Carnaval, que se divirta quem se queira divertir, e sem precisar de arranjar desculpas nem para um disparate inofensivo, nem para uma oportunidade de encobrir uma tolice pegada. 

6.2.18

São rosas, senhores, são rosas...

Permitam-me que comece por lhes contar uma história. Era no século XIII e em Portugal, quando a mulher de D. Dinis, D. Isabel de Aragão, ocupava o tempo a fazer bem a quantos a rodeavam, distribuindo esmolas pelos pobres. Ora, conta a lenda que o rei, já irritado por ela andar sempre misturada com mendigos, a proibiu de dar mais esmolas. Mas, certo dia, vendo-a sair furtivamente do palácio, foi atrás dela e perguntou o que levava escondido por baixo do manto. Era pão, e ela, aflita por ter desobedecido ao rei, balbuciou: - São rosas, Senhor, são rosas! - Rosas, em Janeiro?!- duvidou ele. Cabisbaixa, a rainha santa abriu o regaço: o pão tinha-se transformado em rosas, tão lindas como jamais se viram iguais.
Ora este Janeiro fechou em Portugal com uma série de acusações e detenções de gente que, presumivelmente, levava ou teria levado no seu regaço o que estaria legalmente impedido de levar. Fosse para beneficiar outros ou gratificar-se a si próprios – normalmente isto até acontece cumulativamente – o que é certo é que as razões de tais iniciativas, uma vez constituídas enquanto tal, ou seja enquanto suspeita de crime, estariam cobertas de... razão. O que é crime é crime, e o sistema está construído de forma a que, consoante o crime, assim a penitência.  É a justiça dos homens, não universal, o que torna alguns lugares num inferno, outros, mais raros, em paraísos, normalmente fiscais, e outros, numa espécie de ou purgatório ou limbo, num “tem-te-não-caias”.

O lado caricato de toda esta situação é, de facto, o ela ser caricaturável. Se a diligência com que, quem de direito e dever cumpre as suas obrigações, e as cumpre investigando onde há, ou dizem que há, cheiro a esturro, é positivo e devia ser obrigatória em todos, mas todos mesmo, os casos suspeitos. Já a negligência com que se cuida do que devia ser segredo de justiça, quando decretado, é a todos os títulos condenável. Recordo que o segredo de justiça vincula não só as pessoas directamente envolvidas num processo, mas também quem aceder a elementos dele, por exemplo jornalistas, seja por que meio for. A rotina com que a medida do segredo de justiça é aplicada no nosso país tem resultado numa óbvia negativa banalização e, talvez consequente, manipulação com fins politiqueiros e populistas que em nada contribuem para a saúde de uma sociedade democrática civilizada.

O ridículo de se tornar público que se desconfia, levando muitos em praça pública a julgar sem saber, que no regaço de uns quantos vão, não rosas, mas livros, revistas e bilhetes de ir à bola, acontece não porque esses não se transformarão em rosas e por isso a acusação seria justa e penalizável, mas porque ajudam a que aqueles que levam muito mais do que livros, revistas e bilhetes de ir à bola, os que fizeram da sua actividade um fartar vilanagem, passem a poder também reclamar, pelo menos durante algum tempo em que, mesmo em Janeiro, aquilo são rosas.

A D. Isabel de Aragão mentiu ao marido e isso foi feio. Lá entre eles, naquele tempo, a coisa não deixaria a senhora, apesar de santa pelas suas boas e louváveis intenções – aquelas de que o Inferno também dizem que está cheio -,  como alguém que mudou alguma coisa na política assistencial do seu marido e rei D. Dinis. Mas isso agora já não interessa nada. O que interessa agora é que haja quem explique, sem meios segredos, o que deve ser público e que cale o que tem de ser segredo. Quanto aos meios de comunicação social, bom, se vamos começar a matar os mensageiros estamos mal e vamos ter de concordar com o 45 da Casa Branca. É isso que queremos? É isso que a comunicação social quer? Se calhar... é que para muitos uma mão lava a outra e as duas lavam a cara. Não gosto nada desta maneira de existir.