25.2.14

Hoje estou em Kiev

Hoje a minha crónica leva-me à Ucrânia. A crise política começou a ganhar rosto ali em finais de Novembro. Milhares de pessoas saíram às ruas para protestar contra a decisão do presidente em suspender a assinatura de um acordo económico com a União Europeia, com a intenção de reforçar as relações com a Rússia que prometia mais e melhor. O que começou por ser um protesto a favor da aproximação à UE tornou-se rapidamente numa luta por uma mudança global no governo, e na Constituição, que desse mais poderes ao parlamento e menos ao presidente. A situação agravou-se na passada terça-feira à noite com violentos confrontos entre a polícia e os manifestantes na praça Maidan, junto ao parlamento de Kiev, e o número de gente morta aumentou todos os dias. Até que sob pressões, quer internacionais quer internas, se têm vindo a anunciar todos os dias diligências mais consonantes com as razões dos manifestantes, como a convocação de eleições e a libertação da ex-governante, presa política, e mandato de captura do presidente deposto, última notícia à data da gravação desta crónica. Vão-se acalmando, até ver, os ânimos. Diz-se também que entre estes a extrema-direita-ultra-nacionalista estará presente, do lado dos europeístas. Parece-me é que, para além das questões internas, haverá seguramente razões geo-político-estratégicas que não ficarão resolvidas e aquele país viverá sempre sobre uma espécie de falha geológica que provocará abalos. É tudo menos simples de entender.
Diz-se também que os protestos revelam outras clivagens no país. São clivagens sociais, linguísticas e religiosas. A maioria dos pró-europeus são do ocidente, falam ucraniano como primeira língua e tendem a pertencer à Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kiev ou à Igreja Greco-Católica da Ucrânia. Já o lado oriental é sobretudo povoado por pessoas que têm o russo como língua mãe e são fiéis da Igreja Ortodoxa do Patriarcado de Moscovo. Parece haver sempre uma desculpa cultural que legitima ações de retrocesso civilizacional como são estas guerrilhas mortíferas… Apre!
Kiev e a Ucrânia são lá longe, mas muitos são os portugueses que convivem hoje em dia com esta gente de longe que há 15 anos imigrou em força para o nosso país. E muito próxima, porque recente, é ainda a imagem das guerras em prol da auto-determinação, algumas até já retratadas no cinema, e que re-arrumaram o mapa da Europa após a queda do muro de Berlim e do regime comunista da URSS. Tudo guerras em nome da paz, do progresso, da prosperidade. Sempre assim foi.
Estou convicta de que a guerra, a violenta das armas e não a de palavras e negociações, é sempre o sinónimo de um falhanço político e não deve haver maior vitória para um governante do que a conseguida pela via diplomática. Porque, afinal, associados às guerras estão sempre rostos de governantes que ou não as conseguiram evitar ou as desejaram mesmo. Por vezes seguindo uma popular via mais fácil, onde os esforços se “reduzem” (ironia amarga) ao contar de perdas de vidas humanas e ao medir da resistência à destruição. Outras vezes, as guerras parecem ser o último recurso para tentar resolver situações ingovernáveis e em escalada contra os direitos humanos.
O poeta francês Paul Valéry definiu assim a guerra, e eu concordo e partilho convosco: "A guerra é um massacre entre pessoas que não se conhecem para proveito de pessoas que se conhecem mas não se massacram."

19.2.14

A Fatura da Sorte

"Os impostos são aquilo que se paga para se ter uma sociedade civilizada." Foi o que afirmou o médico e poeta americano Oliver Holmes, no séc. XIX, e que me parece que todos devíamos sentir como uma coisa óbvia. E é por isso que me sinto um pouco triste com a nova fatura da sorte.
Aprendi a ser defensora da fatura desde que me explicaram os princípios básicos da economia e também entendo que medidas razoáveis que permitam diminuir a economia paralela são bem vindas. Das vezes em que sou levada a não corresponder a este princípio pago sempre caro, quanto mais não seja com a consciência a moer-me, como se de um lado estivesse o diabinho a dizer-me “vá lá, foi só para facilitar a vida às pessoas” e o anjinho a fazer-me prometer que “se depender só de ti, não embarques mais nessa”. Enfim, aprendemos sempre quando nos confrontamos com esses dois lados da nossa consciência. É pelo menos sinal de que a temos. É que enquanto o nosso dinheiro dos impostos for aplicado pelo Estado no bem comum (falo do Serviço Nacional de Saúde ou da Escola Pública, por exemplo) eles reverterão para nós. Enganá-lo é enganarmo-nos.
Estou triste porque, apesar de mudanças importantes conquistadas noutras áreas, não conseguimos, enquanto país, educar as pessoas para esta atitude cívica de dar a fatura sem ser preciso exigi-la, sempre que há uma transação. Sobretudo porque também o não fizemos utilizando na dissuasão a mais forte das técnicas de educação: o exemplo. Quem não se lembra das consultas do dentista (é uma memória muito minha e não qualquer preconceito com a classe) de preços diferentes com ou sem fatura? Mas há também os pedreiros, os mecânicos, os explicadores, etc, etc, já que todos nos sentimos no direito a exercer a “chico-espertice” generalizada e contaminante.
A medida da fatura da sorte segue-se a outras, como a que teve a ver com os reembolsos do IVA no IRS, nas áreas em que se terá percebido que a fuga seria maior, ou as medidas de controlo através de sistemas informáticos obrigatórios na vida financeira e contabilística das empresas. Claro que tudo isto nos parece mais injusto quando recebemos todos um valente “apertão” no imposto que se aplica àquilo que compramos para viver. Como se a seguir ao castigo viesse o prémio ou possibilidade dele. E é por isso também que mais do que nunca, com ou sem sorteio, não há que dar desculpas a que se carregue mais sobre os contribuintes. Se todos fizermos o que deve ser feito, não há desculpas.

Quanto a esta medida do governo, não deixa de ser embaraçante e parece um pouco terceiro mundista. Será preciso utilizar métodos típicos do negócio do jogo para pôr os contribuintes na ordem? Se calhar. Aguardemos.

10 anos de Facebook

As redes sociais em formato eletrónico vieram para ficar. Pelo menos até que um destes séculos algo que só exista ainda na imaginação de algum criativo possa tornar maior e mais acessível, através de uma telepatia qualquer, o contacto e convívio entre as pessoas. Porque é disso mesmo que se trata com o Facebook. De contacto e convívio. Há, claro, quem depois o use para outros fins, mas o contacto entre pessoas é, sem dúvida, o que está na sua base. Uma imensa agenda de que todos os que estão ligados à rede podem fazer parte, dando a cara e criando certos limites de privacidade, que é preciso conhecer muito bem, para que esse contacto se estabeleça de forma saudável. E há até a possibilidade de se criarem heterónimos, nome simpático para os chamados “perfis falsos”, tão fáceis de descobrir. Bem como utilizá-lo para manter conversas, partilhar estados de alma, fazer passar uma mensagem, já que tudo isto faz parte do que conseguimos quando entramos em contacto com os outros: comunicar.
Um tal Robert South, homem da igreja que viveu na Inglaterra do século XVII e ficou conhecido pelos seus sermões inflamados, disse que a "palavra foi dada ao comum dos mortais para comunicar os seus pensamentos e aos sábios para os disfarçar". Ora as escolhas de textos, imagens, comentários e situações que cada um dos utilizadores de redes sociais faz para comunicar com os seus contactos, a que chamamos amigos, ou a todo o mundo, revelam (no sentido bíblico de voltarem a esconder) pensamentos e desvendam personalidades que muitos teriam, e têm, algum pudor, ou medo, em expor. Ou simplesmente porque não lhes apetece participar desta enorme rede e pronto.
Nascido de uma daquelas mentes que pensa “fora da caixa” e limitando-se, no seu início, a um público universitário de uma determinada comunidade, a de Harvard nos EUA, o mais interessante nesta rede social é o facto de, ao crescer para o mundo, ter contagiado as gerações mais velhas, tendencialmente mais numerosas, com a evolução civilizacional que se deseja manter e assim ter mantido uma longevidade que a natural “volatilidade” dos jovens poderia condenar.
Dos sinais de fumo à carta, do telegrama ao telefone, este tipo de redes corresponde da mesma forma à necessidade de as pessoas estarem em contacto umas com as outras. O Facebook tem ainda a vantagem de mostrar a face da sociabilidade que é característica humana, sem estabelecer hierarquias à partida, e permitindo ao cidadão comum acesso um número razoável de ferramentas para criar um perfil ou página tão estonteante como vulgar.

Devo por fim dizer que sou fã do Facebook, que me reservo o direito de fazer do meu mural o que bem quero, como qualquer seu utilizador pode fazê-lo, dentro do que é oferecido fazer; e ainda, que tenho uns termos de referência próprios a explicar a minha relação com o mesmo e com a minha rede, como qualquer um pode ter, e para que não haja equívocos; e mais ainda, que fico triste quando se diz, apocalipticamente, que o FB substituirá o contacto direto entre pessoas, porque acho que não se percebe o quanto essas chamadas substituições anulam, sim, o tempo e distância, como aliás a escrita, e tornam vidas mais felizes.

6.2.14

O Papa é Pop

"O papa é um ídolo a quem se atam as mãos e se beijam os pés", e dou de novo a voz a Voltaire, ateu e anticlerical reconhecido, para falar do sucesso desta figura máxima da igreja católica que agora lhe veste a pele, o Papa Francisco. Um verdadeiro fenómeno de popularidade, se não em todo o mundo pelo menos no ocidental e mais ainda nas comunidades de crentes, cristãos e não só católicos. Se Voltaire ressuscitasse hoje arranjaria de certezinha uma outra imagem igualmente mordaz para se referir a este novo ídolo em que o papa, este papa, se tornou, agora até capa e tema principal da última edição da revista americana Rolling Stone, por onde passam os ídolos da cultura, sobretudo musical, pop.
A impressão que nos causa a figura de um papa ainda hoje vem cheia de anacronismos, na aparência das vestes por exemplo, que o remetem para o ambiente de corte de séculos há muito passados. Já a forma como se dirige do alto de uma varanda especial à multidão, tanto evoca esses hábitos monárquicos de tempos longínquos, como os de grandes figuras de Estado, sobretudo ditadores, e muitos ateus, anticlericais e antipapa, que do alto dos palanques veem desfilar os seus súbditos, ainda hoje, em regimes comunistas. Modelos e poses que marcam claramente diferenças hierárquicas e sugerem, ou sugestionam, uma atitude de idolatria. Resquícios mantêm-se no dia-a-dia mais plebeu a que vulgarmente chamamos protocolo, mas adiante.
Consequência de hábitos e rituais tradicionais que por serem isso mesmo, da tradição, se mantêm e servem para relembrar àqueles que gravitam, no raio de influência, uma distância relativamente ao homem comum. O que é certo é que numa época como a nossa em que toda a gente anda, diz e faz o que e como quer, dentro do limite da legalidade que não é limite para tudo, a importância das figuras impressionantes mudou de sinais exteriores. É que para além da imagem, o discurso tem atualmente um valor altíssimo na bolsa da popularidade e da influência de uns, normalmente poucos, sobre outros, os muitos que formam as massas.

Não que os papas não tenham tido sempre, porque tiveram, muita influência nos destinos e governos ao longo dos séculos, e muitos deles com atitudes tão revolucionárias como as que se anunciam neste papado, apesar de até agora nada ter sido revogado ou renegado por este papa. O que me parece é que Francisco aplica métodos, muito dessacralizados em tempos mais distantes e bem longe do que se diz ter sido a prática daquele Jesus que representa na Terra, e que se tornaram quase sacralizados na sociedade da comunicação em que vivemos. Assim, ele dará mais do que a imagem do ídolo à espera de ser idolatrado pela pose, de quem desconfiamos que muitos interesses, a que agora se chamam lobbies, influenciam e manipulam, para ser o ídolo da proximidade daqueles que são uma amálgama de interesses a que costumamos chamar de todos. E assim Francisco aproxima-se também de outros idolatrados que mudaram o rumo da história universal. E quando ídolos destes o fazem mais do que gente a lavar-lhes os pés deverá haver “limpeza” nas mentalidades dos homens e das mulheres. Aguardemos.