29.11.22

Lufada de AR

A Assembleia da República está um lugar cada vez mais interessante e desafiador para quem nela trabalha ou a tem debaixo de olho porque dá valor ao seu voto. E à Democracia e à Cidadania. A coisa oscila entre a aprendizagem em exercício de uns, que lá estão, e o algum suspense de outros, espectadores atentos. Com a última votação que autoriza deslocações do PR estivemos perante mais uma prova da dificuldade de até os políticos, imagine-se, lidarem com a incoerência humana. (Já terão percebido que o “imagine-se” é só ironia, nada de indignação). A AR está a tornar-se um bom exemplo de laboratório humano e em que até temos direito a assistir às experiências que por lá acontecem.


A incoerência é um dos pecados da Humanidade. Paradoxo, parece que é o que também lhe podemos chamar quando se consegue verbalizar. Deverá ser mais de meio-caminho andado para cumprir a penitência que é viver na dúvida, estar ali a tentar desembrulhá-lo. Mas aos políticos não se lhes dá muito tempo para dúvidas e hesitações, porque as coisas andam a um alucinante ritmo, algo impiedoso. E tanto se lhes exige que peçam perdão, como logo a seguir se aproveita a genuflexão para se lhes arrimar uma catanada. Muitas vezes só o tempo, a ajudar a fraca memória das turbas castigadoras, permite ressurreições que salvam uma pessoa e pouco servem de exemplo edificante para os restantes desmemoriados que vivem ocupados com a pressa.


Mas volto à AR e ao importante papel da oposição, no fundo assunto da crónica. Falo de oposição encartada, mas não esqueço que também a há interna, talvez a mais difícil de fazer, escrutinada por menos, com primeiros impactos só “familiares” (os outros só o futuro os trará). Eu cá que não gosto muito de metáforas futebolísticas embora lhes encontre facilidade comunicacional, veria como muito útil, assim como há numa equipa de treinadores que trata com especial cuidado do guarda-redes, quem se ocupasse mais em estar atento ao trabalho das oposições. E até “olheiros” na bancada a topá-las, tão atentos como estão aos que assumem o executivo da governação. Seja isto a nível nacional, regional ou local.


Se o mais vulgar, em vários campos de batalha, é assistir à aplicação da estratégia que diz que o ataque é a melhor defesa, é porque se confia na desmemória e na pressa. E mais do que na aplicação do que se aprendeu com o passado e seja útil aplicar ao presente, e se joga numa antecipação e é bluff. A incoerência perde, nesta estratégia (ou será táctica?), o seu valor humano, universal digo eu, para ser um jogo só jogado, despoticamente, por alguns. A incoerência, mesmo quando se concretiza em palavras e ganha a medalha de paradoxo e se apresenta como dilema, é daqueles pecados que mereciam mesmo muito mais atenção em benefício do bem-comum. Até nos obrigava a olhar muito bem para nós próprios, primeiro ou depois, consoante seja a nossa posição e influência na sociedade em que nos movemos.


A incoerência como pecado poderá ser mortal para alguns, venial para outros, com aplicação de critérios de juízo que, por humanos, são tão oscilantes quanto, contada a história toda, bem podem ser também incoerentes. A incoerência talvez tenha de deixar de ser defeito, para passar a ser direito com deveres associados. Poder acontecer, mas vir acompanhada por explicação. Dá trabalho e exige muitos recursos, mas talvez encará-la assim fosse a primeira mudança para lidarmos melhor com os movimentos tectónicos que pandemia, guerra na Europa, no já instalado globalmente regime que assenta no capital, estão a abanar a casa da Humanidade. Seria abrir uma fresta para passar um ar mais fresco e respirável.


22.11.22

Good cop/Bad cop

A notícia não foi novidade para quem acompanhou as outras, as das reportagens sobre o “movimento zero” e dos bas-fonds do partido CH. Não é sequer novidade para quem, não lendo nem vendo jornais ou telejornais, já tenha ouvido certas conversas, em versão light, a alguns profissionais mais descontraídos, embora em serviço de ronda por cenários onde há vagar para tal.


O facto de ter sido um consórcio de jornalistas a trazer a público o comportamento ilegal de indivíduos das forças de segurança nacionais em redes sociais é caso paradigmático: são muralhas imateriais que se usam para prevenir, parece-me, eventuais consequências, bem físicas, como reacções de retaliação. A notícia é, então, a abertura do inquérito pelo imprevisível Ministério Público, tão dado a estados de alma que, enfim, me começa a deixar algo incrédula quanto à humanização das instituições e quase as desejar desalmadas. Quase…


Mas vamos às mensagens. Xenófobas, racistas, homofóbicas, instigadoras de ódio, este tipo de discurso “é mato” nos sítios em que não se dá a cara. Daí a passar para os outros sítios é um tirinho. E o processo não me espanta, já que tantas vezes nelas se assistem a desabafos em público, sem interesse nenhum ou com efeito cómico duvidoso, numa bizarra necessidade de chamar uma atenção constante sobre si. E que não são confundíveis com a divertida e saudável partilha do belo, do bom, do útil, da denúncia ou da dúvida que pede sugestões ou tem uma agenda própria para divulgar. São antes partilhas de si próprio, na trindade óbvia do me, myself and I.


Nas nossas redes sociais, por mais escolhidos que sejam os nós e os laços com que as construamos, há desabafos que destilam cheirinho a intolerância, hiperbolizam reacções, instigam tratamentos exemplares. E, quando não tem piada nem procura o ombro para chorar, tudo parece ser só uma busca desenfreada de validação, palmas ou companhia.


A dupla de agentes policiais em que, para dominar alguém pelo discurso, um é antipático e outro simpático conjuga-se num “ser uno” em ambiente perfeito para tal, com palco, holofotes e banda sonora. Quer-me parecer que quem é a pessoa que se quer dominar é de novo o próprio. A menos que o “ser uno”, tal como as pessoas xenófobas, racistas, homofóbicas e raivosas, tenha como objetivo, missão ou desejo endireitar o Mundo e proactivamente revelar-se-lhe, ao Mundo, exemplo de várias supremacias. Imagino que em carácter mal-formado uma farda de super-heróis (porque os há) possa ter esse efeito. E é por isso que nem toda a gente a pode envergar; e este é o cerne da questão. Sob pena, também, de já ninguém perceber bem as figuras que se fazem nas redes sociais que são, por muito naperonzinho que se desejem, públicas.


Entretanto, e não muito longe destes assuntos, lá começou o Mundial da Vergonha do século XXI, sobre o qual o que se me oferece dizer, para além do “eu não vou” (mas também ninguém me convidou, pelo que serve pouco o meu preguiçoso activismo, e me custe ver este lado pantanoso de um fenómeno que me enternece quando vejo o deslumbramento da miudagem com a nossa Selecção, a forma como se derretem com aqueles “cromos” que têm Deus nos pés); o que se me oferece dizer é que as associações internacionais que, e muito bem, lutam contra essa vergonha acordaram tarde. É que este Mundial foi para ali, para o Qatar, em 2010. Haveria então algumas diferenças naquele país? Fez-se alguma coisa para o modificar nestes 12 anos? Aguardo relatos ou relatórios.


15.11.22

Foice e o Marcelo

  Eu sei que estes títulos de crónica se aproximam arriscadamente dos das revistas à portuguesa que dantes enchiam o Parque Mayer, mas desde o penúltimo fim-de-semana que vários episódios a afectar São Bento e Belém me têm obrigado a rir para não me irritar. 

Em São Bento vamos deixar de ver Jerónimo de Sousa que sai de fininho das suas funções públicas, para dar lugar a outro que ainda mais de fininho entra, já que não disse um “ai” desde que o seu nome surgiu e, qual aurora boreal, durante mais de uma semana, enfeitiçou tudo e todos. De operário a secretário passou-se uma pasta ao funcionário na esperança de que, levados pela rima, os mais espantados, sobretudo dentro do viveiro, não se incomodassem muito. 

Ainda em São Bento, também sorri ao ver PS e PSD arrombarem o capital de queixa do CH, fazendo-lhe a vontade de abrir a discussão da revisão da Constituição, reduzindo-o no entanto a porteiro do assunto. De caminho, como neste assunto o Presidente da República só pode esbracejar, também os dois maiores Partidos repõem, ao reverem, a sua autoridade, para que ninguém se esqueça de quem é que manda na nossa Democracia, fazendo jus ao gesto em que cada eleitor se empenha em dia de ir aos votos. Por isso, também importante, é o detalhe de o PSD querer mais poder para Presidentes, embora em magistraturas únicas, a coincidir com o momento em que o Tribunal Constitucional diz que o CH não pode ter estatutos que concentram tanto poder numa só figura que o dirija. São os tiques de subserviência a figuras providenciais. E a avaliar pelas duas em causa, em Belém e na bancada de S. Bento, que figurinhas as dos figurões… Mas aguardemos.

Depois houve a cena de Marcelo e Abrunhosa, um a pregar raspanetes, a outra com trejeitos de quem não era nada com ela mas só uma cantilena à espera de reacção do público. Parecia uma rábula da Ivone Silva e do Camilo de Oliveira. 

As estantes das livrarias também não escaparão a esta tendência kitsch e lá teremos um outro dueto, desta feita entre um jornalista e um ex-governador do Banco de Portugal, ambos cheios de agenda - um ganhar fama, outro livrar-se dela - criando intimidades para inventar episódios públicos, confundindo fake news com literatura e tentando apanhar os que borboletam em torno das luzes que brilham mais forte, à semelhança dos que são levados por quem berra mais alto e matraqueia ininterruptamente. 

Assim vai a difícil tarefa de ser e lidar com um Governo de maioria absoluta dos anos 20 do século XXI. Não admira que até no que se consideravam ser os lugares e as instituições onde moram a discussão, o debate, a expressão de opinião, só até dizer-se ao que se vai ou por onde não se quer ir, o silêncio esteja a ser aproveitado para confundir o bom traço de sabedoria com o lamentável sinal de cobardia. Querem lá ver que o silêncio de Raimundo está a ser um sábio modelo de novas formas de estar a endireitar as outras que descambaram em estilo rábula? Isto não é nada bom para quem apenas for um “cidadão comum” que gosta de saber o que é que se passa em lugares de poder e gestão.

8.11.22

Os de fora

  Há no conto imortalizado por Andersen “A roupa nova do imperador” um elogio que vai além do da sinceridade ingénua infantil. Creio que o conto reconfigura sobretudo a importância de um olhar de fora, de quem não embarca em práticas inquestionadas. Uma leitura de hoje de uma criação do antes, e nas suas circunstâncias, que para não tresler requer também a sua contextualização.


A pressão internacional em que se transformaram as felicitações de vários países de todos os quatro cantos deste Mundo redondo ao eleito Presidente do Brasil recordou-me este conto de Andersen. Julgo que mais do que o gesto de saudar uma vitória, foram gestos para salvar uma derrota de se transformar numa ainda maior balbúrdia a oeste do Atlântico. Acontece quando não há nenhuma espécie de inocência nesse olhar dos de fora, como no conto do autor dinamarquês cabe à criança que grita que o rei vai nú.

Olhos dos de fora com interesse e agenda próprios mas que, quando correspondem a cabeça e coração nos lugares certos, prestam um bom serviço aos de dentro. Assim estes os saibam e queiram ter em conta. Voltando ao Brasil, com quem as nossas afinidades quanto mais não fossem começam logo na língua que partilhamos, é com alguma expectativa que espero a sequência da história que as felicitações do Mundo ajudaram a que tomasse um determinado rumo.

É de resto o que acontece com as revoluções e “viradas” cheias de benevolência que se deram e se pretendem replicar: o que pareceu difícil para dar a volta, com o passar do tempo e o nublar da memória, que por isso se deve revisitar amiúde, parecerá muito mais fácil do que o que está por fazer dali para a frente. É de resto o que mais me interessa “ler” nos discursos dos que, vezes demais, ficam presos à tal memória não como ponto de partida e avanço, mas como troféu de prateleira. E para esses objectos de saudade, mais do que de nostalgia, são úteis os olhares distantes, que assim se tornam, com o tempo, críticos. Tão úteis para que o “sempre” não se transforme, no girar das voltas do Mundo, pior do que o que desejávamos não voltar a ter “nunca”. A isto se chamará talvez aprender com a História. E com as histórias.

1.11.22

Universos de Conhecimento

A 1 de Novembro a Universidade de Évora celebra o seu dia e inaugura solenemente o novo ano lectivo. Se os aniversários são o que são, inevitabilidades, o desfasamento de calendários que vão para além do girar dos astros acaba por demonstrar que a defesa da perpetuação de tradições é assunto muito discutível. É que as aulas começaram em meados de Setembro, há até já avaliações a decorrer e, aparentemente, o início que valeria, se a tradição se cumprisse, seria o de 2 de Novembro.

Mas não percamos tempo com estas minudências, porque a Universidade é, por definição, o lugar da vanguarda, da inovação, e festa e trabalho já se aninharam e convivem bem, com sacrifícios dos festeiros, convém dizer, porque o ritmo do trabalho não condescende. Importante mesmo é que a nossa Universidade - mais nossa no concelho e na região, mas ainda nossa no país - seja mesmo lugar de criação de massa crítica. É que para sacos de vento ou caixas de ressonância já bastam os públicos que certas cliques, lobbies e grupos de comunicação empenham em alimentar, mesmo se cheios de académicos comentadores e opinadores (sim, eu sei que também sou académica, opino na comunicação social, mas também sei do que falo).

Com as suas fragilidades, que os múltiplos responsáveis, os que coexistem e não apenas os que se sucedem, têm obrigação de ir corrigindo, também será bom que estas não se perpetuem nos mesmos sectores ou serviços. Lá porque os estudantes vão passando, substituindo-se, custa ter de ouvir as mesmas queixas feitas por gerações diferentes. É que há famas com razão de ser que deixam estigmas muito duradouros, capazes de se tornarem tradição. E essas, com certeza, nada ganham em perpetuar-se, arriscando, quem ignora isto, a estar a olhar para o futuro com os olhos na nuca.

No universo que conheço, alguns ex-estudantes, vindos de, ou que seguiram para outras instituições, porque continuam a investir no conhecimento e reconhecem a mais valia de o fazer em várias “escolas” (aqui no sentido de desenvolverem princípios reconhecíveis que outros depois seguem), a proximidade professores-alunos no acompanhamento do percurso tem sido uma constante qualidade que põe a Universidade de Évora bem acima de certos “Olimpos”. E não ponho em causa as razões do mérito ao usar esta metáfora, apenas aponto a importância que, até nos universos do conhecimento, a diferença tem. Tal como é igualmente importante que essa tradição conquistada seja encarada como tão dinâmica quanto o cuidado que quem compõe as instituições põe em continuar a fazer delas lugares de vanguarda e inovação. Assim encarada até pelas comunidades - instituições, empresas, cidadãos - conterrâneas ou vizinhas. E esse é um trabalho difícil, constante e persistente que, como o chegar ao Olimpo, ou a ser Olimpo, devia ser ganho todos os dias.
Longa vida à Universidade de Évora.