7.3.23

Mas que m**da é esta?!

Se eu tivesse por hábito ler os títulos destas minhas crónicas quando as gravo para a rádio, talvez não tivesse escrito o que escolhi para a crónica de hoje, perceptível apenas para quem a leia com os olhos. 

Logo aqui me penitencio por não ser habitualmente inclusiva nestas intervenções. Até porque, mesmo sabendo que há já tecnologia para que quem não vê tenha, quando tem, acesso a programas ou aplicações que possam ser esses olhos e lhos leiam em voz alta, sentir-se-ão comigo como eu me sinto quando vou àqueles serviços de atendimento ao público, e muitas vezes serviços públicos, e só se ouve o sinal de que chamam uma senha nova, mas não dizem que número é, nem para que balcão nos devemos dirigir. Fico quase sempre ou colada aos ecrãs, ou em movimentos de vai-e-vem ao toque dos gongos electrónicos. Mas adiante, porque a esses ouvintes destas crónicas garanto que não perdem nada não sabendo delas os títulos, e que este só é assunto por ser a versão menos própria da exclamação que afinal se traduziria por um civilizado “Mas que porcaria é esta?!”

Ora, esta provocação assim explicada serve mesmo para opinar sobre a vaga de moralmente ilegítimas e infantilizantes alterações que certas editoras se propõem fazer a obras literárias no mercado anglo-saxónico. Livros que se caracterizam por serem bastante mais populares do que muitos outros, infelizmente ainda assim entre uma minoria da população mundial que é a que lê literatura. A minha indignação para com esta gente que lê e dá a ler e assume estas ridículas posições, dá ao esforço quotidiano de ensinar a ler e apreciar artes o que se confirma ser um papel importante das chamadas Humanidades Públicas. Trata-se de não apenas “desenredomar” a literatura e tirá-la de uma conversa elitista e inacessível a não iniciados, mas sobretudo trazê-la para o quotidiano das pessoas sempre que vier a jeito. Apesar deste trabalho quotidiano, ou por causa dele, ainda não consigo deixar de sentir que a exclamação deselegante do título da crónica de hoje não faça jus a esta onda censória que, afinal, só ridiculariza a base ou o berço da agenda woke. 

Claro que nos dias que correm, em face dos comportamentos pouco civilizados que os manifestantes, que o são muito legitimamente, têm demonstrado, e perante a porcaria em que se tornaram certos argumentos, também poderia exclamar com o mesmo nível mais grosseiro o que escrevi no título da crónica. Que, diga-se, foi o que exclamei em frente à televisão quando dos assaltos ao Capitólio em Washington e à Praça dos Três Poderes em Brasília. 
Não sendo este o caso, mas outro, ambos revelam a importância do uso e da força da palavra. E da sua manipulação com fins de duvidosa benevolência, a não ser para quem faz muito mais gosto na preguiça ou na provocação do que na explicação. E fica a sensação de que estas provocações, infantilizantes, também podem ser manobras de marketing. E estas, como também já sabemos, podem ser de níveis diferentes. Umas transformam o marketing na venda da banha da cobra, outras puxam de forma quase subliminar pela inteligência humana que, não evitando tantas vezes a satisfação de pequenos prazeres que reconhecemos inúteis ou não aconselháveis, a boa campanha nos “obriga” a comprar.

As palavras têm força quando não se gastam, quando se usam no ou para o contexto próprio. Podendo chocar, e ainda bem que chocam, quem perceba, porque lhe explicaram, que o mundo e a civilização avançaram. Explicar é o papel do adulto que deve e ganha em conhecer o que dá a ler às crianças; explicar é o papel do prefácio, do posfácio ou da nota de rodapé que contextualiza o que não é, ou não queremos que seja, usual e correcto. É esta a forma justa e limpa de lidar, sendo picuinhas como temos de ser, e o Ondjaki ainda há pouco nos aconselhou aqui em Évora a ser, sem censurar, nem tomar leitores por criaturas estúpidas. Ao não o fazer, como parece estar a tornar-se uma tendência, é seguir a via insultuosa, a que contamina e provoca reacções que só baixam o nível da conversa. O título de hoje prova-o, intencionalmente.