30.6.20

A lição de Eneias e a exaustão pela COVID19

Ensinou-me um dos melhores académicos portugueses especialista em Estudos Clássicos, Frederico Lourenço, que a lição da vida de Eneias, o herói da epopeia latina Eneida, é que o importante para levarmos uma vida sábia não é termos o que queremos, mas querermos o que temos. Está bom de ver que só um herói consegue viver tranquilamente de acordo com tal princípio, até porque tudo à nossa volta parece empurrar-nos para desejarmos até o impossível. Além de que estes tempos mais próximos são e serão tudo menos tranquilos. Se a lição de Eneias nos pode fazer parecer uns conformadinhos sem sal, viver de acordo com a pressão contemporânea vai certamente continuar a transformar-nos em stressadinhos com muitas frustrações.

Toda a conversa sobre os jovens e a sua supostamente exclusividade de inconsciência no desconfinar é bem prova de que passamos a vida a arranjar desculpas. Ou, outro exemplo, as reacções ao estilo “guerras do alecrim e da mangerona”, com um pitada de Eça, para pôr na capital de um país a fonte de todos os males. Se não fosse um assunto sério, até dava vontade de experimentar uma cerca a Lisboa por 15 dias e ver “como elas mordiam”...

Isto parte da reacção à constante procura da culpa. Mesmo que seja só para disfarçar que, afinal, ela vai ter mesmo de morrer solteira, se não quisermos ter lá parte. E tem também alguma coisa a ver com as vozes e os ruídos concorrerem entre si para que quem tem de decidir decida. Uma consequência da Democracia, o mais trabalhoso dos sistemas de governo experimentado, o que mais nos faz termos o que queremos, mas também nos responsabiliza para cuidarmos do que temos.

Quando leio e oiço o que se diz de tanto mal sobre as possibilidades de algumas das práticas a que a pandemia nos obrigou, quase me esqueço do quão mal se dizia do que e como era antes. É um bom exercício, e não apenas de um nem sempre bem entendido conformismo.

Resumindo, usamos mal o que temos ao querermos logo o que não podemos ter. Vem um vírus e não somos capazes de dizer que a melhor alternativa ao castigo é sermos habilidosos em dar a volta à situação. Claro que cumprindo regras que custam quase tanto como castigos, mas a que nos habituaremos se, em vez do ruído em que muitos se empenham, ouvirmos as vozes de quem tenha pelo menos um objectivo: que se isto nos correr bem a nós, também lhes correrá bem a eles. É preciso é que corra mesmo bem! Não é fácil, nem está garantido, porque ainda assim os imponderáveis são muitos. De qualquer modo, em caso de vida ou morte, apetece-me mais obedecer em Democracia a quem represente instituições, do que armar-me em contestatária do sistema. Conseguiria dizer das instituições o que Frederico Lourenço dizia do herói de Virgílio, há dias, numa rede social: “Muitas outras coisas me fazem gostar de Eneias – pelo menos nos primeiros cantos do poema. Gosto da falta de egoísmo dele. Gosto da preocupação com o pai e com o filho. Gosto do modo como finge estar feliz perante os outros refugiados troianos, para não os contaminar com a sua infelicidade. Gosto da maneira como Eneias consegue ser (como se diz em inglês) «selfless» em vez de «selfish». Consigo solidarizar-me com alguém que vive em prol de algo que ele considera estar acima dele. O grande problema, claro, é a natureza desse «algo».”

23.6.20

Se não fosse a falta que faz...

Esta seria a semana que, em Évora, a Feira de São João estaria a “bombar” em pleno. Será, ao que consta, a terceira vez que nos quinhentos anos de existência ela não se realiza, novamente por questões de saúde pública como terá sido na primeira pestilenta vez, diz que rezam os arquivos. Para mim seria a trigésima Feira, numerozinho redondo a marcar o número de anos que levo a contribuir para a demografia do concelho e da região.

A Feira vai fazer falta a muita gente. Aos que com ela faziam negócio e aos que nela negociavam; mas também aos que nela faziam do ócio um lugar comum, sem lista de convidados a reservar o direito de admissão. Enfim, para todos, ainda que mais para os alguns com uns euros para gastar, e para os que se reencontram pelo menos uma vez por ano, em regresso esporádico à terra natal.

Vai fazer falta aos que dependiam em parte dela para se mostrarem aos outros, em acções de divulgação ou propaganda, lado a lado, em pé de igualdade no acesso a serem expositores por uma dezena de dias, embora havendo sempre mais matéria de alguma queixa do que motivo de louvor à entidade promotora. Também vai fazer falta aos que são pelas tradições, tal como fará aos que estão fartos do que é sempre a mesma coisa e lá vão, religiosamente, mais um ano acrescentar juros ao capital de queixa.

Alívio mesmo, deve ser só para dois segmentos deste velho mercado do feirar: o alívio dos que abominam este tipo de evento, ainda para mais a empatar o dia-a-dia; e o alívio dos que vão poupar uns milhares e muita mão-de-obra e hora extraordinária a distribuir, sem serem acusados de terem feito mal em suspender o evento (é a saúde, povo de Évora, é a saúde!), nem poderem dizer que a culpa é, como estaria bom de ver mais uma vez, do governo central. Uma chamada “win-win situation” onde, como nos altifalantes dos carrosséis e carrinhos de choque também se pode ouvir, quando apregoam: “As meninas não pagam! Não pagam, mas também não andam!” Enfim, se não fosse a falta que faz, para muitos, a Feira de São João não fazia falta nenhuma.

16.6.20

À Nação valente nem sempre, nem nunca

Lá fez o PR o gosto ao dedo organizando, da maneira que quis a mais exemplar das exemplares, a cerimónia oficial do 10 de Junho deste ano bizarro e sem graça de 2020. O ano em que se comemorou pela centésima vez o Dia. Quis que fosse simbólica e não fez senão, com isso, repetir exactamente o que são todas as cerimónias comemorativas: simbólicas. Lá se estragou mais um bocadinho o uso do adjectivo. É que não foi particularmente simbólica da data mas, parece-me, muito mais simbólica deste PR.

Marcelo quis tanto, na sua magistratura, fazer comemorações no território que adjectivou como espiritual de Portugal, mas a Covid19 veio, cheia de “toupet”, estragar-lhe a festa. Quase parecendo remeter a Metrópole à sua condição contemporânea e civilizada em que já não há cá colónias fantasmagóricas a evocar. Eu sei, eu sei que o princípio é não esquecer os Portugueses que criaram comunidades fora do território-mãe, de onde tiveram de, ou quiseram, sair, mas também me apeteceu fazer o meu “simbologismo espirituoso”. A coisa pôs-se-me a jeito. Teria sido na África do Sul, a do longo apartheid, e na Madeira, que amiúde reclama, em surdina e quando dá jeito, uma vontade independentista que tem tanto que se lhe diga.

A cerimónia valeu pelo rico e pedagógico discurso do Poeta clérigo, como também era previsível. A Covid veio confiná-la a um espaço simbolicamente perfeito: o mosteiro, lugar de recato, à beira do rio que foi cais dos que conseguiram daqui sair. No ano de 2020 em que Portugal tinha ao leme das comemorações do seu centésimo dia nacional um PR superstar, o super-herói da sociedade do espectáculo em que vivemos, assistimos à vanglória de quem, perante a contrariedade, habilmente tudo faz para manter o papel principal. A tempestuosa pandemia, o palco monástico, o discurso culto e humanista de José Tolentino de Mendonça (o melhor dos que tenho memória até hoje) de acesso difícil fora de certas elites, sem palmas. Tudo isto deu ao PR, por interposta pessoa, a oportunidade de brilhar como o melhor organizador de uma comemoração, que sempre quis popular, sem Povo. O melhor organizador de uma comemoração que pouco dirá aos que representam, da forma mais boçal, o Povo de que o PR se alimenta com as selfies e os insalubres beijinhos. A provar que se festeja por, pelo menos, três motivos: para não esquecer uma data precisa- o que não foi o caso; para alegrar os convidados - o que também não aconteceu; ou para enaltecer o anfitrião, provando que ele é que sabe como é que as coisas se fazem. Não foi de valente, mas serviu-lhe.

9.6.20

É crime e define um carácter, não é um direito nem uma opinião

Falo do racismo. Do que se perpetua, disfarçado de medo. Temos medo do que é agressivo e ameaçador. Receamos o desconhecido. Não podemos, nem devemos, fazer dos nossos receios e medos uma desculpa para julgar, sem provas, o outro. É isso que, argumentando com desculpas, faz o racista, mesmo quando não chega a vias de facto e faz uma conversa ligeira. Já só mesmo quando julga, pela diferença, a aparência.

Vivi em África, para onde fui com meses, até aos cinco ou seis anos. A minha mãe nasceu em África, o meu avô paterno nasceu em África. Da família materna, houve quem ainda regressasse à “metrópole”, houve quem já regressasse a Portugal, houve quem não regressasse. Como em quase todas as famílias, havia racistas, como houve quem desse cor à descendência que aumentou e enriqueceu a família com nova família. Mas nunca assisti ao fim do racismo, a não ser na lei, no papel.

O primeiro livro que li e que me fez chorar convulsivamente, teria 12 ou 13 anos, foi A Cabana do Pai Tomás de Harriet Beecher Stowe. Reli-o adultissima e pensei que, com aquela linguagem, literária mas uma estopada de época, só mesmo o enredo e o retrato daquela América esclavagista me podia ter feito chorar tanto.

Sou, sinto e vivi isto tudo, mas não sei do que estou a falar: sou branca e funcionária pública com vínculo ao Estado de um país democrático. Daqueles em que os eleitores vão ainda percebendo que ir atrás de personalidades que se autopromovem com o isco anti-sistema, o que sobrevive graças ao mantra “eles e nós”, só nos desgoverna. Tivéssemos nós dúvidas que aí estão, Trump e Bolsonaro, eleitos a fazer das deles e a esclarecerem-nos.

Posso tentar pôr-me na pele de quem nasceu negro e, nessa tentativa, reagir como seria cada vez que há uma injustiça só por se ser negro. Dificilmente manteria a calma. Dificilmente não gritaria, desalmadamente, para um dos “deles” que me fizesse sentir ou lembrar que eu era dos “outros”. Do que eu precisaria mesmo era de ter ao meu lado tantos quantos fosse possível. E é por isso que eu, branca, junto hoje a minha voz, aos gritos de todos quantos se sentem, porque são, maltratados, destratados, ignorados por serem negros. Floyd foi o último que conhecemos e acabou assassinado. Foi mais uma gota de água num copo que parece não parar de crescer e nunca parar de se encher. Sim, as tempestades justificam-se, e não são num copo de água. Vamos a elas, sem ódios. E sem ser para que fique tudo na mesma...

3.6.20

Expliquem-me a distância, por favor

Mais do que nunca se torna importante agora que as várias distâncias, relativas como o Tempo, sejam definidas e explicadas. Mas a explicação que está em falta também é a que se aplica ao ensino que faço à distância - eu na minha casa, os alunos nas deles - e que, ao que parece, passou a chamar-se “ensino a distância”.

O que estava errado na expressão ou no conceito usados por todos até 2020? Digo 2020 porque foi agora que o uso se generalizou e a estranheza da decisão assume contornos de ridículo, já que é preciso mais do que só virem dizer que é assim, e pronto. Já não estamos na época das versões “explicadas ao Povo e às Crianças” do antigamente. Todos os cidadãos têm direito a explicações completas. O que não tem sido o caso, já que as duas formas não são nem incompatíveis para significar o mesmo, nem uma está errada e a outra certa.

Porquê mudar então uma prática que não estava errada, segundo conceituados dicionários? Os linguistas não gostam de crases, que é o nome que se dá à soma da proposição com o artigo e resulta em à, com acento?
Ou “ensinam a distância” como quem “escreve a caneta vermelha” para corrigir os incultos?

Percebe-se que em 2020 a distância tem mesmo de se ensinar, por uma questão de saúde. O que o bom senso e as boas maneiras já o garantiam há muito, mas que, hélas!, não chegava a todos e era até conscientemente contrariada como uma agenda política ou interesseira. Mas hoje é manifestamente insuficiente esta imposição, que não consegue demonstrar o erro, só porque sim.

É, na minha opinião, politicamente incorrecto insistir no uso de formas de expressão e comunicação ambíguas. Até porque parece servir apenas para manter uma certo mau uso de pergaminhos, infelizmente muito em voga em elites de rastos. O que, como dizem os meus alunos, “é só” ridículo. A mim, nesta, não me apanham.