30.3.21

Da Camisola ao Cego do Maio

Eis senão quando, os que se alimentam do orgulho nacional vertido sobretudo em símbolos que representam o País, encontraram mais um que, quase de certezinha, 80% não reconheceria se o visse à venda numa loja ou banca de contrafacção. Talvez no Alentejo se conheça ao detalhe o design em camisolas poveiras, tanto quanto no Douro Litoral se saiba exactamente o que são safões. Mas adiante, que isto não é um concurso entre regiões, que pedem meças para estarem no topo de uma pirâmide de maravilhas, alimentando uma meia-dúzia de empreendedores que promovem o concurso, em troca de uma sede constante de outra meia-dúzia em ser o mais defensor do seu lugar.


Parece-me que o assunto do desmascarar a estilista norte-americana com trejeitos “made In China”, e que aldrabou o mundo da moda, fez mais pela camisola do que qualquer outra entidade nacional até agora. Mas foi, também, a oportunidade perdida de percebermos como a amada tradição cultural funciona. Aproveitar-se-ia para que a má moeda, já agora, pusesse a circular a boa, o que, enfim, deixa sempre alguns mais lesados pelo meio.

Poderíamos todos ter, por exemplo, ficado a conhecer, ou talvez a conhecer melhor, o Cego do Maio que, no século XIX, provavelmente teria mais do que uma versão dessas camisolas que dizem existir há mais de 150 anos. O Cego do Maio, figura pública que tem direito a estatuária e azulejaria sua na Póvoa de Varzim, foi pescador que salvou vidas e reconhecido por isso em louvores vários e até uma condecoração régia de que se conta um episódio comovente.

Ora, era também prática que as famílias dos pescadores se identificassem e distinguissem umas das outras através de símbolos, as chamadas “marcas familiares”, que assinalavam a propriedade de vários pertences. Curiosamente, estas marcas estão estilizadas nas ditas camisolas de lã grossa, vítimas agora, e de acordo com o vocabulário pop, apropriação cultural. Convém, no entanto, perceber-se que as marcas não nasceram na Póvoa de Varzim. Têm origens talvez celtas, mas certamente de culturas mais a norte do que A-Ver-o-Mar e muito para lá do rio Minho. Pois é, a Cultura tem destas coisas. Se é para respeitar tradições, que se respeitem os processos tradicionais e as várias contaminações que lhe são próprias. Se é para jogarmos o jogo da sociedade de consumo, assuma-se que o assunto é verba e não se gaste o verbo com outras meias-conversas.

Já agora, tendo as minhas raízes em Vila do Conde, terra eterna rival da cidade que é tema desta crónica, não queria deixar de dizer que a rivalidade está em mim ultrapassada (era o que mais faltava alimentar ou, pior, alimentar-me destas guerrilhas paroquianas!). E faço questão de destacar que, ao contrário do que muitos ainda pensam, a cidade se chama Póvoa de Varzim, e não “do Varzim”. É que os lugares não são só representados por clubes, e defendidos com o mesmo espírito que, normalmente é pertença da cultura do futebol.

23.3.21

Secretas, discretas, concretas

 Numa semana em que o medo em várias das suas matizes, que vão do medo da morte ao da perda de popularidade, atrasou o eventual fim da situação pandémica, tivemos direito, para baralhar prioridades, a parangonas sobre assuntos que não interessam nem ao Menino Jesus. (E olhem que se há coração d’oiro, onde cabem todos e para quem todos interessam, diz-se que ainda é o do Menino Jesus.) Entretenimento em vez de informação, resumindo. Falo da proposta do PAN, actualizada agora com mais estardalhaço pelo PSD, em que, está bom de ver, o que se quer mesmo é saber quem faz parte da Maçonaria.


Desimaginem-se os mais distraídos que o assunto é preocupação com transparência e combate à corrupção. Se assim fosse, andavam mesmo era todos preocupados em conhecer bem os contornos, e explicá-los, sobre as disparidades dos preços das vacinas para a mesma doença. Ou as dificuldades para aprovar tratamentos ou terapias preventivas, sobre os quais temos todos os meses notícias de avanços científicos (falo do cancro mas outras haverá), quando para a SARS-CoV-2 só demorou um ano. Ou, também e ainda, esta guerra de nomes de farmacêuticas, tratada pela comunicação social e por quem lhes arranja conteúdos, como se se tratasse de um desafio Pepsi (referência a um spot publicitário de há uns anos), e que serviria era para nos mostrarem como se prova que a sanha generalizadora contra o público em favor do privado tem bom argumentário contraditório.

Foi assim que se passou uma semana com sabor a “vida em suspenso”, como se esperássemos e temêssemos um mau diagnóstico. Mas distraídos do importante, por quem se entretém em querer legislar a bisbilhotice em relação a quem pertence a comunidades de que podemos pensar o que quisermos, e aceitá-las, desde que não sejam um bando de malfeitores. É que para se controlar esse tipo de bandos já não é preciso mais legislação, parece-me. Até porque dos vícios que se acusam certas agremiações, como são também os Partidos por exemplo, estão os bairros, os empregos e as casas de famílias cheios: a cunha e o jeitinho são a instituição com que muitos enchem a boca e chamam, louvando, “proximidade”.

Fica a impressão de que, em troca da fiscalização necessária do que nos rasteira a vida concreta, se anda a tentar dar palco , ou cadafalso, a grupos de pessoas que têm tempo e vontade de conviver em privado, esperando que o façam agora de acordo com as normas sanitárias. Parecem fazê-lo, esses sócios, fraternos, companheiros ou camaradas, ao abrigo de um capital simbólico e patrimonial conquistado em tempos mais difíceis do pensar livremente, o que é democraticamente louvável. Mesmo que o façam com práticas e rituais, mais ou menos anacrónicos ou alegóricos ou carnavalescos, a que aderem por vontade própria e com a satisfação de passarem a ser mais uns de uma elite que se deseje, se calhar até com uma certa pena, discreta.

Parto do princípio que a discrição é uma coisa muito boa, e que se identifica, não com clandestinos, mas muito mais com quem não se pavoneia, nem precisa de apregoar por aí as suas eventuais virtudes. Pessoas que por usarem um pin, entoarem uma ladainha, vestirem um invulgar hábito, todos conotados com práticas e pensamentos benévolos, sabem que não é por isso que não devem agir todos os dias para que os possam usar sem os desmerecer.

Se há quem, não precisando destas etiquetas, lhe baste dar a cara e predispor o peito às balas de causas comuns, haverá quem ao usá-las saiba bem que elas representam uma responsabilidade acrescida. E é com estas pessoas que me apetece contar. Até para decidirem como me comunicam as suas intenções. Estas podem ser secretas, porque o segredo é um direito, sem ser malévolas; ou podem ser discretas, por não precisarem de recompensa pública. E se essas intenções mexerem positivamente com a nossa vida colectiva, que a lei já existente decida que, saindo da virtualidade se possam tornar concretas, sem dolo nem crime.

16.3.21

O desconfi(n)ar da Academia

 Sói chamar-se Academia às instituições de ensino superior, sejam Universidades ou Politécnicos, cada uma com princípios fundadores distintos, que condicionam as respectivas missões e lugares na sociedade do Conhecimento.


Vou falar a partir do meu lugar de pertença, a Universidade. E a partir da que traz a Évora e envia de Évora, pessoas com perfis cujas formações e missões são tão universais como o nome comum da própria instituição. Faço-o, nesta primeira semana do início de um segundo desconfinamento da I Grande Pandemia do século XXI e aviso: assim como escrevo estas crónicas com a ortografia tal como a aprendi em pequenina, o que não faço noutros contextos públicos oficiais e científicos, o que digo nesta crónica de opinião só me vincula a mim. E não é uma questão de fazer algum tipo de gala em outorgar-me a insígnia de “fora-da-lei”, porque sigo as regras com que se cose quem sirvo e quem me remunera. Faço-o porque posso, sem condicionar os outros. De resto, discordando das regras, a democracia permite-nos encetar todos os esforços para tentar mudar aquelas regras de que discordamos, mais em sentido colectivo do que corporativo, ou seja, só porque dão jeito a alguns. O que é muito mais difícil.

A Pandemia está a ser, para além de um desastre sanitário para a Humanidade, um desafio para as instituições. Desconfinar é um processo que revela a preparação e as suas capacidades, e a Academia não é excepção. Trata-se de uma oportunidade para demonstrar, com a sua posição natural, mas também constantemente conquistada, de vanguarda, a adaptação às novas circunstâncias da sociedade, mantendo a sua missão.

Importará, neste desconfinamento, avaliar as circunstâncias externas, as que condicionam a nova vida em sociedade: higiene, distância física mas não social, acesso, em condições de igualdade de oportunidade, no caso da Universidade, à produção e transmissão de Conhecimento. Mais do que nunca, importa olhar e ver as condições internas que permitem, no desconfinamento, manter o mesmo nível de credibilidade que conquistaram. Será mesmo oportuno aproveitar as mudanças das tais circunstâncias externas, para mudar práticas, investimento e regulamentos, efectivamente compagináveis com o novo contexto pandémico. Só assim desconfinar na Academia permitirá que a sociedade continue, ou melhore, a confiança no que por lá, ou cá, se faz.

Talvez volte ao assunto, um dia mais tarde, espero que para louvar um processo cooperativo, em que a conversa de um caminho para a excelência não oblitere a concretização realista. E que o melhor possível reflicta mesmo as boas qualidades dos que se empenham em boas soluções, com muitos e bons resultados. Também é disto que se alimenta a confiança.

9.3.21

O Dia Internacional da Mulher 2022

 Dias como o 8 de Março assinalam direitos conquistados, liberdades que se respeitam entre si e garantias de que o sentido do progresso civilizacional não se inverta. Celebram-se para recordar não apenas o Passado que se mudou e quem o mudou, mas para lembrar o que tem de ser feito, diariamente, a propósito do que se assinala.


Este ano, a melhor prenda que recebi por estes dias de Março, e no que respeita à escolha de mulheres para lugares em que ambos se mereçam, foi a Lídia Jorge no Conselho de Estado (como não perceber a escolha quando se conhece a sua obra) e, surpresa boa, a Djaimila Pereira de Almeida para consultora da Casa Civil da Presidência da República. Procurem o nome desta jovem para saberem quem é, se não sabem, encontrem os livros dela e leiam-nos que darão o tempo por bem empregue. Desejo que a Djaimilia possa fazer um bom trabalho em prol da integração e inclusão social no País dela que é também o meu.

Mas eu queria celebrar o Dia Internacional da Mulher com todos. E todas, como manda a retórica do século.
Com mulheres, homens e transgénero. De todas as gerações, de todas as orientações - ideológicas, religiosas, sexuais -, de todas as profissões, de todos os clubes, de todas as regiões, de todos os Partidos. Gente com ou sem família, com ou sem estudos. Pessoas sobredotadas, incapacitadas ou até prendadas.

Queria celebrar com todos, mesmo sabendo que não somos todos iguais. Não podemos e, no fundo, não queremos ser todos iguais, porque na diversidade há mais lugar para cada um. E cada uma. Mas queria celebrar com quem se sentisse, ou estivesse prestes a sentir-se, ou começasse a pensar em fazer por se sentir, bem no seu lugar ou no lugar para onde se mudou, mudará ou que ainda anda à procura.

Queria celebrar com quem não usa a pele do género - ou da cor, ou do estudo, ou da conta bancária, ou da compleição física, ou, ou...- que veste, para se despir de outros valores que nada têm a ver com o seu sexo, o seu género, a sua identidade. Queria celebrar com quem não perde o seu tempo a mostrar o cisco no olho do outro para que não reparem na trave que tem o seu. Queria celebrar com quem é capaz de deixar que outros, os que vêm por bem, de peito aberto, vistam a pele de mulher, e sintam as dores e festejem as alegrias, e lutem por causas que tomam para si como se fossem suas. Causas que não fomentem a violência, que não promovam atavismos cheios de inércia, que não exacerbem divisões, nem estimulem extremos ou exclusivismos étnicos, culturais, religiosos.
Eu queria celebrar o Dia Internacional da Mulher com estes todos e estas todas. Os outros todos e as outras todas escusam até de me convidar para a festa. Eu queria comemorar e fazê-lo politicamente. E correctamente. Posso?

2.3.21

A grande ilusão

Diz-se que o século XX foi o Século do Povo. Suponho que a designação teve muito a ver com o facto de as descobertas científicas e as invenções tecnológicas terem, de forma relativamente rápida, chegado a mais pessoas do que só a elites formadas de berço, proporcionando um maior bem-estar ao que genericamente chamamos Humanidade. Havendo ainda muitas desigualdades, a tendência do progresso nas democracias, que já são maioria no governo do Mundo, parecia um rumo em velocidade de cruzeiro e sem retrocesso. Ao fim de duas décadas de século XXI, e no princípio de uma crise sanitária pandémica que rapidamente se tornará numa crise económica e social, já percebemos que não será assim.

Entre progressos inquestionáveis na Ciência (vacinas em menos de um ano e sondas em Marte), os colectivos que compõem a chamada sociedade civil não estão a acompanhar o previsível que, assim, se revela só ser o desejável. Falemos, pois, da urgência de polir a Democracia, sem ilusões de que é do cidadão comum que depende não apenas o seu uso, mas a sua eficácia. As fragilidades da contrapartida dos direitos adquiridos, falamos da responsabilidade, revelou-se um ponto do contrato difícil de cumprir. E persiste numa certa “clique” bem intencionada e optimista, como os democratas têm de ser, a grande ilusão de que basta ouvir o Povo e apertar com quem os representa nos órgãos de governo para que as coisas fluam. Não, não basta: a Democracia dá trabalho a todos, requer sacrifícios do indivíduo em prol do colectivo e custa dinheiro. Tudo bens difíceis e escassos. Digo bem: difíceis “e” escassos. Porque à insatisfação constante do ser humano, se alia a crónica tendência de sobrevivência ao estilo mais comum do “salve-se quem puder”. E que muita coisa se rege por uma lei natural, constantemente usada como argumento fácil e silencioso que corrói: a lei do menor esforço, treslida na sua essência que aconselharia, não o laxismo que encobre, mas o eficaz “não compliques”.

Quando se tem a possibilidade de exercer funções em que se sai de uma determinada “bolha”, por muito que dentro dela se interaja em redes variadas, as ilusões sobre a bondade dos colectivos, que não são abstracções mas massas compostas por pessoas, rebentam como bolas de sabão. E há certas elites que, mesmo bem intencionadas e muito úteis quando contribuem activamente participando nos lugares certos em que se ajuda nas decisões a tomar, continuam a perpetuar a grande ilusão: não basta confiar no Povo, que somos mesmo todos nós, porque o bom-senso (bom de bondade mesmo) não é o senso-comum (senso de sentimento mesmo). E, já agora, também não vale a pena iludirem-se de que a sua vontade, na sua bolha, é a vontade dos outros. Por muito que, nestes tempos de inferno, que afinal são todas as contemporaneidades em que deambulamos (do antes é que era bom de uns, aos amanhãs que cantam de outros, a contemporaneidade fica ali no entalado meio), por muito, repito, que estejam cheios de boas intenções.