26.10.21

Os Godot deste mundo

Na famosa peça de teatro do dramaturgo irlandês Samuel Beckett, À Espera de Godot, escrita originalmente em francês, publicada em 1952 e representada no ano seguinte, “Nada a fazer.” é a primeira tirada de uma das duas personagens principais. Em reação a Estragon, Vladimir diz qualquer coisa como “Começo a ter a mesma opinião”. Os dois esperam em parte incerta, junto a uma árvore, que chegue Godot. Mas Godot nunca chegará, nem sabemos mesmo se existirá. A peça, como qualquer obra de arte, predispõe-se a várias leituras ou interpretações, mantendo a actualidade e o interesse que, como uma fogueira, só a arte e a paixão vão alimentando.

Pois a discussão, negociação, ou outra coisa que lhe queiram chamar, sobre o OE2022 começa a parecer-se demasiado com a mais superficial camada dada a ler nessa encenação: a do absurdo. A propósito da aprovação ou rejeição de um documento técnico que inquestionavelmente condiciona a execução de programas de governação, parece que estamos, afinal, é a tomar o pulso à capacidade de resistência dos actores que ocupam a cena político-partidária. Começa mesmo a ser irritante esta tendência de interromper um pré-agendado ciclo de torneios que deviam, e podiam, durar quatro anos. Mas afinal, pede-se depois aos eleitores que, quais espectadores de lutas de gladiadores (muda-se a modalidade a meio do jogo, portanto), decidam da bancada quem é mais capaz. E falamos de gerir os parcos recursos de um moderadamente exigente País (não, não vivemos todos acima das nossas possibilidades, mas também não é óbvio, nem rápido o processo de mitigação das desigualdades e exige uma contenção que não muda consoante se chame austeridade ou contas certas).

Fazem (os dos aparelhos partidários e certos comentadores) de nós Estragões e Vladimirs eternamente à espera do que parece que não existe: cumprir uma legislatura em que não haja, porque os eleitores não quiseram, uma maioria absoluta no Parlamento. Findo o prazo, ou se guina noutro sentido, ou se reforça o poder de quem governou, ou se continua a condicionar a governação, como devia acontecer sempre em todas as discussões de todas as comissões na AR.

Não será isto, aos olhos do cidadão interessado para além do jogo partidário que tem lá a sua agenda própria, o caminho mais sensato? Acaso a responsabilidade de quem está na oposição, cooperante ou discordante, nem sempre, nem nunca, não será também avaliada pelos eleitores? Qual é a pressa do País em mudar de governo a meio de uma legislatura? Não estarão os eleitores a perceber que esta é apenas uma cartada que todos, repito todos, os Partidos gostam de tentar jogar para que se mudem pessoas e não políticas?

No final da peça de Beckett, o último diálogo começa desta vez por Vladimir que pergunta a Estragon “Então? Vamos embora?”, ao que este responde “Vamos.”, mas não se mexem. Esta circularidade, artifício brilhante do dramaturgo, não parece augurar nada de bom para ninguém. E esse é um bom motivo para se ficar a pensar nestas esperas: as dos eleitores que ainda acreditam que agora vai ser diferente; e as dos Godot deste mundo que, imagino eu, esperam nos bastidores, nos corredores, nas caixas de ponto ou nos bas-fonds já fora do teatro, que seja a sua vez de ter alguém que façam esperar. Que falta de paciência!

 

19.10.21

Rebéubéu pardais ao ninho…

É possível que muitos se riam das comparações com que se inicia esta crónica, esperando-se sinceramente que não sejam os que transportam por essas estradas fora um autocolante (que outros terão no discurso) a dizer “Orgulho de ser Alentejano”.

As negociações e tomadas de posição pós-eleições, em Lisboa e no Porto, para composição de dois dos vários órgãos autárquicos que gerem concelhos, reflectiram maturidade e saber-fazer dos vários eleitos e, quero acreditar, das estruturas partidárias por que concorreram. Já em Évora, lugar de importância para cá ter tido no passado as Cortes, e capital de distrito com lugar ainda central nem que seja simbólico, as coisas parece que começaram esquisitas. Desde logo por se voltar a querer recuperar a imagem de uma dinastia, o que tresanda a “canto do cisne” acompanhado do pipilar de pardais a aconchegarem-se ruidosamente aos ninhos, como se não fosse coisa que fizessem religiosamente todos os dias.

Comento a partir do que as notícias me trouxeram, que é para o que servem os meios de comunicação social, depois e para além da transmissão catita pelo YouTube a que, já desenvolta nestas plataformas, também assisti moderadamente curiosa. Sobre esta cerimónia, a das assinaturas e discursos, só me apetece destacar o quanto se satelizou uma instituição que atribui graus académicos, de outras que, ligadas a essa máquina, se vão mantendo à tona com o ar das braçadeiras a fugir de escrutínio para escrutínio.

Ainda assim, deve ter dado para rir, a estes sobreviventes das duras lutas dos climas extremos e agrestes do antes da Democracia. E revelou-se a espessura política de resistência que dificilmente outros igualarão, embora possam achar que esta se ganha por se ostentar canudos e rosetas, ou esperando que os ventos de vitória da Capital bafejem os astros alaranjados que incham no interior. Já sem falar de quem disfarçado de cuidador dos eborenses, chegando-se-lhes a distribuir maçãs porta a porta, disfarça a única e exclusiva ambição pessoal de quem não conseguiu trepar nos Partidos a que pertenceu.

O sorriso deve esboçar-se já no dueto vermelho, e se espreitarem a notícia da DianaFm que saiu no passado sábado, repararão que depois do mais votado para gerir a Câmara se dizer “disponível para estabelecer consensos”, o mais votado da Assembleia durante a primeira reunião para a eleição da Mesa, onde houve “falta de consenso”, ter de marcar “novo sufrágio, a realizar na terça-feira, às 21:00”. Hoje, portanto. Será que vamos assistir a um combate entre David e Golias? Ou será só uma versão da fábula do boi e do sapo? A mim traz-me um cheirinho de Goscinny e Uderzo… Mas sem vontade nenhuma de rir, porque continuo a simpatizar com as ideias fundadoras do Partido Socialista e custa-me, mais do que vê-lo ser já o habitual alvo de esquerda e direita, segurar o moderado centro com o que parece ser tão frágil tripé. Oxalá me engane!

12.10.21

Crónica pessoal mas retransmissível

Todos temos momentos nas nossas vidas em que precisamos de lançar aos sete ventos e apregoar aos quatro cantos do mundo redondo o que, sendo do foro pessoal e nos vai cá dentro, queremos partilhar, desabafar. Alegria ou dor, indignação ou louvor, são estados de alma que, atirados assim ao “Deus dará”, até evitam que se acerte em alguém especificamente, permitindo que aterrem em quem os enfie como carapuças, não sem abrir o guarda-chuva por não se descartarem responsabilidades próprias da alma e no estado. Tal desfulanização também pode acontecer, como é o caso, quando há intenção, apesar da “ventania”, de preservar outros que, eventualmente metidos no assunto, temos pudor em trazer para a ribalta: seja porque não queremos dar-lhes um só centímetro de palco, seja porque o desabafo não se lhes aplica de todo.

Na semana em que os currículos académicos chegaram aos jornais, por via de uma pessoa desta classe profissional que acumula com a actividade de pop-star do comentário mediático, deu-se a coincidência de eu própria me ter voluntariamente submetido, num pedido feito há um ano e um mês, à apreciação do meu trabalho de décadas. Foi a última prova pública da carreira que comecei há 31 anos e que apenas interrompi por quatro para dar ao concelho de Évora o que podia e sabia, sem cursos que ensinam a fazê-lo. (Anos que, aviso já, naquele tribunal funcionam como cadastro, assunto a que talvez volte um dia nestas crónicas). Mas também se diga, em abono da verdade, que das outras duas provas académicas (anteriores também ao aparente desvio político), posso dizer que foram, de facto, provações e não “passeios no parque”. É que também os há, nesse Olimpo imaginado e frequentado por alguns que lá se passeiam envergando o traje que lhes esconde a humanidade. Ainda assim, justiça no balanço, nas três provas em três décadas houve doses de civilidade muito diferentes, diminuindo esta quanto mais afunilado é o acesso ao topo a que dificilmente todos chegam.

Predispõe a este estado de alma o facto de se tornar evidente que, por serem provas públicas, haja um exercício de encenação que vinca, a quem é de vincar, a relação de poder de quem lá está sobre quem talvez lá venha a chegar. Está feito o desabafo, a prova que o originou ultrapassada sem surpresas: o vento que leve as palavras onde houver massa crítica para as interpretar, que é obrigação de quem trabalha com palavras. Aos outros, agradeço a paciência na tormenta alheia.

Faço mesmo é votos que a nova geração de professores universitários que começam a chegar ao topo das suas carreiras, sobretudo catedráticos, e está hoje, na espuma dos dias é certo, sob escrutínio público, como sempre devia ter estado enquanto funcionalismo público, tenha a força que as elites para o serem têm de ter para se tornarem úteis à sociedade. A perpetuar-se uma certa tradição académica enredomada (mesmo a evitar, e bem, o laxismo) e pouco impor para que as coisas mudem (parecendo seguir o modelo das praxes que tanta repulsa causam), abrem-se mais hipóteses de que de académico se passe a pop-star. E deixando-se obnubilar pelas luzes da ribalta, não só permite que se tome a parte pelo todo, como crie invejas, por um lado, e pseudo-indignados por outro. Estarão no primeiro lado os que chegaram ao topo sem impacto para além do jardim que cultivaram, e no outro quem com ainda alguns tiques de superioridade acha que, com casos como os de Raquel Varela, não perde a Academia, em particular as Humanidades e as Ciências Sociais, a oportunidade de contribuir para que a “contemporaneidade” não seja sinónimo nem de vazio, nem de dragonas de erudição. E onde se permite que ecoem as vozes que sussurram a rasteira expressão do “andam todos ao mesmo”. Neste caso, o “mesmo” são palmas e louros, já agora convertidos em mais alguns euros, porque esta é uma elite que está longe de auferir os salários de outras corporações onde, às vezes, até se faz “uma perninha” no privado, sem desprimor, para aconchegar.

Os professores universitários no topo, mais que os dos institutos politécnicos por princípio conscientes do retorno da formação para a sociedade, deveriam repensar muito bem, não o seu lugar inquestionável na criação e transmissão de Conhecimento, mas o perfil de quem lá querem a fazer mexer a máquina. Não vai ser fácil. Sobretudo se continuarem a afastar de si quem, não brilhando constantemente em público, faz e bem, trabalho de sapa; ou os que brilhando quando têm de brilhar não esquecem que são um entre pares. Aproveitem-se estes dois perfis, ó Academia, e os engulhos da espuma do dia serão ultrapassáveis sem figurinhas.

 

5.10.21

O Tempo da Democracia

Não consigo deixar de prolongar o comentário aos resultados das eleições autárquicas. Agora mais a frio, com um olho na Praça e outro na história da Democracia. Não tanto a História no incontornável sentido erudito do conhecimento de factos e números, mas no que se oferece à reflexão quando se comparam situações de ontem com acontecimentos de hoje. Impactos de resultados de impactos, no tempo de Kairos que é o que cria os momentos oportunos no tempo de Cronos e permite a construção de projectos.

Não sou das que pense que uma composição dos executivos não maioritária signifique, em teoria, ingovernabilidade. Talvez por já ter estado nas duas situações - governo e oposição - me faça ter a cautela de acrescentar essa condicionante “em teoria”. É que já senti consequências do trabalho de uma oposição que obstaculiza medidas propostas em prol do bom funcionamento das instituições com impacto naqueles a quem serve; como já vi perpetuarem-se más práticas com a viabilização de propostas que tendem a seguir o mais fácil na oportunidade de se melhorar com o gesto mais difícil, empurrando-se sabe-se lá para quando (as agendas são muitas vezes subliminares e corporativas) o progresso.

Sou das que gostava que, no governo ou na oposição, as linhas vermelhas traçadas pelas posições ideológicas que, sem complexos podemos distinguir como direita e esquerda, atentassem na eficácia do sistema democrático que vigora hoje, dependente de um sistema em que nenhum de nós pode escapar ao império do capital. E que essas linhas vermelhas não cortassem ao meio nem oportunidades, nem caminhos que nos levam àquele lugar onde o que corre bem a todos, também me corre bem a mim. Linhas vermelhas que sejam traçadas de humanidade, cercas sanitárias contra a intolerância, a descriminação, a ilusão demagógica. Pede-se uma ética republicana, que já agora se relembra neste dia 5 de Outubro, de futuros que não se construam parasitando o sistema democrático, que é o que lhe fazem os que constroem regimes totalitários aproveitando-se dele para chegar ao poder.

Futuros que nunca serão garantidamente risonhos para todos, como nunca foram, mas onde o processo da prosperidade vai no sentido em que a pensar em todos se vão criando as oportunidades de sorrir, com direitos que melhor se garantem com a exigência do cumprimento de deveres. Que à direita ou à esquerda, as forças responsavelmente democráticas, as gestões mais construtoras de sustentabilidade social (que é para o que contribuem as outras sustentabilidades como a económica e ambiental), sejam fortes e não se deixem derrotar pelos estilhaçadores dos extremos, que apenas sobrevivem de empurrar para o buraco o fio da narrativa e com ela prometer que se chega ao país das maravilhas. Se bem se lembram, é nesse país que, não fosse acordar-se do pesadelo, se cortariam cabeças como sentença sem julgamento sério e pelo facto, sem provas, do suposto crime de umas tartes roubadas.