27.11.18

Corresponder


Será que a expressão “politicamente correcto” é assim tão polissémica, ou polivalente, num mesmo contexto espácio-temporal? Será que um mesmo grupo de cidadãos, ainda que com ideologias diferentes mas com funções e responsabilidades semelhantes pode utilizar, sem ser para iludir, a expressão “politicamente correcto”, num jogo de regras flutuantes em que parece que o “politicamente incorrecto” é o novo “politicamente correcto”? Ou, concretizando até ao limite do que quase me parece anedótico e, portanto, merece retrato caricatural, e para esclarecer o recente exemplo que também me trouxe a esta crónica de hoje: será que quem vive preocupado com animais e com pessoas (que até são de quem dependem os primeiros que são domésticos) pode considerar que assim como existe um SNS deve haver um SNV (V de veterinário), assumindo-se implicitamente que já está tudo resolvido no primeiro para ser óbvio, ou até só uma boa ideia, criar-se o segundo? Mas de uma forma geral: poderá um cidadão comum minimamente atento levar a sério quem recusa o “politicamente correcto” e, simultaneamente, assumir funções políticas, e portanto de gestão da “coisa pública” e opções que afectam um colectivo, seja em que nível for?
O que será que faz com que um advérbio (politicamente) mude de sentido - de positivo para negativo - se o adjectivo (correcto) se mantém e parece estar no lado do certo (vs errado) e dar origem a uma expressão que, na sua forma composta, qualifica comportamentos pouco fiáveis? E será que a fórmula oposta - “politicamente incorrecto” - pode dar uma pista de conduta eticamente aceitável, ou tem que se disfarçar com o truque eufemístico e passar a “não politicamente correcto” para aliviar a consciência? Ou estarão as palavras tão gastas, como dizem os Poetas, que até quem vive maioritariamente de fazer passar ideias e ensinamentos através, precisamente, das palavras cede talvez à preguiça de ter de explicar “o que quer dizer com aquilo”, ou talvez ao receio de não estar a falar senão para alguns e perder seguidores? E será que com isto estaremos a assistir à assunção de que ter e defender uma ideologia já não interessa nada a ninguém? Nem aos que trabalham a expor ideias próprias e a sustentá-las argumentando?
Será que “politicamente correcto” ainda carrega o peso histórico da sua origem, não tão remota assim, em que estes termos foram usados por socialistas contra comunistas, para se separarem dos dogmáticos que defendiam todas as posições partidárias independentemente de sua substância moral? Se assim ainda é, não será altura - quando até estamos, nós por cá, tão pioneiros politicamente - de fazer escola na discussão e defesa de ideias morais igualitárias, no sentido de caminharmos não para unanimismos atreitos a totalitarismos, mas para a razoável igualdade de oportunidades que essa declaração de intenções com que, em princípio, todos os Políticos se propõem em Democracia para serem isso mesmo: decisores e gestores do que é de todos?
Se a Democracia é o sistema político que não se rende a certezas, à “Verdade”, ou não haveria eleições nem a possibilidade de alternância governativa, não seria recomendável dar atenção ao que adjectivamos como “politicamente correcto” para que pudessem os eleitores ser ajudados no acto eleitoral a optar conscientemente? Assim como o advérbio que ajuda a modificar o verbo...? Ficam as perguntas.

20.11.18

Melhores que nós


Não basta ser o primeiro a pôr o dedo no ar para acertar na resposta ou melhor cumprir o exercício proposto, nem olharmo-nos ao espelho e repetirmos um mantra do tipo “eu cá sou bom, sou muito bom, eu sou tão bom”, sem convivermos, sem nos compararmos, sem nos confrontarmos com “os outros”. E não, isto não é aguçar o espírito competitivo até ao limite tão baixo da arrogância. Isto chama-se, ou pode chamar-se, a construção da identidade. Aquela que não é possível sem a alteridade, e que significa o conhecimento do Outro.

Recentemente tive mais uma oportunidade de conviver, à volta dos livros e da informação, com gente de nacionalidades tão diferentes como da britânica à turca, da do Bangladesh à da Alemanha, da ucraniana à finlandesa, da do Irão à da Holanda. Gente que lida sobretudo com professores, com bibliotecários, com decisores políticos de níveis diversos (internacional, nacional, local) nas áreas da Educação e da Cultura. Mas estas sobretudo apontadas, maioritariamente, para assuntos de acção social. Se as queixas nestes sectores permanecem, estranha mas compreensivelmente, alinhadas pelo conceito de um certo inconsciente colectivo da espécie humana, é bem certo que o capital de queixa se alimenta de vários filões. Nem só dos salários, nem só dos horários, nem só da geração anterior ou da que vem a seguir, nem só das faltas ou dos excessos. Reclamar, com pior ou melhor argumentário, é aparentemente o passo que vem a seguir ao direito que se adquiriu, e para o qual o dever de cumprir com essa responsabilidade exige que se ganhe tempo e espaço de manobra para prosseguir. Há até quem viva apenas da gestão destes interstícios, tentando perpetuá-los como forma de subsistência.

Desse convívio, onde Brexit, Trump, Bolsonaro, Erdohan ou outros mesmo não sendo nomeados foram assunto que por ali pairou, verifiquei que Portugal tem uma imagem paradisíaca. Cheguei a sentir-me finlandesa! Ora, sabendo que por detrás de um possível irritante discurso optimista, obrigatório quando se tem de combater um recorrente bota-abaixo que também faz parte do mesmo jogo político, estão dificuldades e insatisfações constantes, não poderemos não gostar que nos olhem assim. E pesando essa imagem que passamos e a realidade que vivemos só me fez pensar que, mais do que embandeirarmos em arco com a excelência que deverá ser a eterna utopia a perseguir, mais do que a festejar tornando-a circunstancial e banalizando-a; pesando tudo isto, só me parece que é uma tarefa que cabe a cada um de nós para cabermos na bela imagem do nosso colectivo. E que devamos talvez repetir-nos muitas vezes que teremos de ser melhores do que nós próprios. Como diria o Almada Negreiros, não sem algum sarcasmo, e em formato adaptado: “Coragem, já só quase nos faltam as qualidades!”.

13.11.18

E dura...


Das eleições intercalares nos EUA pudemos constatar dois factos: houve uma muito maior e relevante mobilização dos cidadãos para votarem; e os Republicanos, que propuseram e levaram Trump à presidência, não sofreram uma derrota devastadora. Se o primeiro facto parece promissor no que diz respeito à consciencialização da importância do voto em Democracias que nunca estarão definitivamente consolidadas, o segundo aparece, em meu entender, como um falhanço de todas as campanhas anti-Trump armadas nos últimos quase dois anos. Trump permanece, pois, um representante legitimado de uma certa e grande América, e talvez até mesmo de uma fatia considerável do Mundo, que se gere bem com um discurso populista - soluções devastadoramente fáceis para problemas complicados - mais do que com acções sustentáveis que acompanhem a evolução civilizacional.

Também é um facto, e relevante, que houve várias vitórias dos Democratas que, consideradas individualmente, prometem representar ao mais alto nível político norte-americano a diversidade de que se compõe a sociedade ocidental contemporânea. Falo de mais jovens, de mais mulheres, de mais origens étnicas, de pessoas que podem às claras viver em plenitude a sua orientação sexual. Parece, pois, que houve aqui também um sinal positivo no mesmo sentido da Democracia representativa que acompanha a dita evolução civilizacional. Mas este não deixa de ser um discurso onde também transparece uma certa, e às tantas sempiterna, imaturidade do sistema democrático. É que se realçam não as qualidades políticas destes candidatos eleitos, mas o facto de apenas representarem lobbies que têm conseguido ganhar um espaço que parecia estar vazio. E isso, numa Democracia com políticos a sério, não aconteceria com esta hipervalorização, pois qualquer um dos outros eleitos pelo mesmo Partido, que não fizesse parte natural desses lobbies, defenderia essas mesmas causas com a mesma energia e sem necessidade de exibir, como se de especímenes se tratassem, os neófitos.

Enfim, todos nos tentam convencer que são as pequenas alegrias que nos “fazem os dias”, mas eu cá teria ficado muito mais contente que Trump e os seus fiéis Republicanos que com ele agora, nestas intercalares, se mantiveram, tivessem sofrido uma valente varridela. Mais uma vez, quando tanto foi feito por muitos para que a vida das pessoas melhorasse, parece que o que conta é a tal questão da segurança. Aquela que pode parecer ao cidadão comum estar a ser posta em causa, porque pode vir a exigir-se uma partilha solidária desse bem-estar com mais cidadãos, sempre num combate em que acredito que a boa Política se deve envolver, e que é o combate às desigualdades de oportunidade. Para Trump os próximos dois anos poderão já não ser “um passeio no parque”, mas o trabalho da oposição terá de repensar muito bem como a fazer, na certeza porém de que será hercúleo, talvez não bastando mostrar o que de bom foi feito no passado recente, mas mostrando o que de muito mau havia lá mesmo atrás. Não é fácil e pode causar embaraços, mas será talvez o politicamente correcto - conceito que defendo - contra estas personagens que ascenderam graças à popularidade de se ser politicamente incorrecto. Eu sei bem o que me custou ter de, certa vez, confrontar uma pessoa que estimo com o seu passado miserável, em que a família se viu obrigada a emigrar nos anos 60, quando me atirou com o popular “suspiro faduncho” de que o que nos fazia mesmo falta era um outro Salazar. Não foi, garanto-vos, a melhor parte de um serão bem agradável.

6.11.18

Viva Las Vegas?


Já fui a Las Vegas. É só lá volto se me oferecerem a viagem e a estadia em hotel de muitas estrelas, que “a cavalo dado não se olha o dente”. Percebemos nos últimos tempos que, até na cultura pop contemporânea, também a tradição já não é o que era, e ainda bem: o que se passa em Vegas, já não fica em Vegas. A piada é óbvia. Tão óbvia como devia ser a presunção de inocência em todas, repito todas, as suspeições de crimes não confessados, ou sem terem sido apanhados os criminosos em flagrante, e estejam ainda por julgar institucionalmente. Sejam os suspeitos gente comum, políticos, militares, religiosos ou estrelas de popularidades várias.

O caso de Ronaldo em Las Vegas deixa-me sobretudo incomodada com os recuos em dois passos por cada passo que é dado nas conquistas civilizacionais. Conquistas que implicam formas de pensar, e agir em conformidade, no que diz respeito a posturas culturais, entendidas como as que fazem parte dos costumes. Quando a coragem dos fundadores do movimento #metoo abria caminho para acabar com um perpétuo exercício do abuso sexual como forma de exercício de poderes vários, condenando ao silêncio quem só perderia se denunciasse, já estamos a equacionar situações em que o oportunismo pode parecer legitimar-se. E onde se começa a desconfiar de que denunciar, justa ou injustamente (isso ver-se-á no final também do caso em concreto), pode parecer uma fonte de rendimento. Não há aqui pôr-se do lado do homem ou da mulher, do rico ou do pobre, da estrela ou do desconhecido.

Já agora, sendo defensora da igualdade de género, não me considero feminista, até porque não gosto do machismo. Talvez consiga ser humanista, fazendo os meus juízos sem preconceitos contra homens, mulheres, animais ou plantas. E para não esquecer os elementos da outra classificação que falta ao estilo de Lineu, já agora também, não me incomoda nada o rock and roll. Espero que, no final deste caso que mexeu com um símbolo português, tudo se resolva mesmo. Na certeza, porém, que, chegados a este ponto, entristecerei mais ainda, qualquer que seja o resultado. Como se diz por terras daqui: já está o baile armado.