26.4.22

Revolução, não sejas francesa!

 No fim-de-semana em que celebrámos a Revolução dos Cravos, ficou democraticamente decidido quem ficará à frente dos destinos do país que inaugurou as revoluções modernas no Ocidente. Não sendo a primeira vez em que os eleitores, os que dão a vitória, chegam a uma segunda volta a escolher o menos mau, as circunstâncias actuais da sede imperialista do governo russo, pronto a mancomunar-se com Le Pen, transformou essa possibilidade numa situação de “alerta de perigo iminente”. 


A Revolução Francesa de 1789 estabeleceu três dos que são, ao mesmo tempo, conceitos de princípio e de fim a alcançar. Liberdade, Igualdade e Fraternidade são valores que nunca poderemos dar como definitivamente conquistados, no sentido de se construírem constantemente. E de não poderem deixar de o ser, precisando que todos os democratas, da esquerda para a direita, inscrevam nos seus princípios de acção os que considerem os melhores percursos para os conquistar. Ou irem conquistando. 


A percentagem de votos para Le Pen vem mostrar que a França, que é dos países que tem mais cidadãos politizados, apesar disso, foi capaz de votar massivamente numa praticante de ideologias de um Partido extremista que, do que lhe sobra da Democracia, só precisou dos votos a legitimá-lo. A Democracia não sobrevive com saúde em governos que, mesmo eleitos democraticamente, confundem o “amor à sua terra” com nacionalismo e tenderão a resvalar para a xenofobia. O histórico ensina-nos isso mesmo, ainda que também nos ensine que as coisas se podem recompor. Mas não sem guerras ou revoluções, as soluções em que morre gente. Honrar essas mortes é também evitar que, por razões análogas, se repitam, que as lições se aprendam. 


Os resultados das eleições francesas são também o resultado de um ambiente político que não é estranho aos restantes países europeus. Sobretudo os que têm um passado mais partilhado e ficam situados numa faixa que vai de Paris ao Mediterrâneo.  É que cada vez que oiço um certo deputado nacionalista dizer que, e cito, “os portugueses precisam de saber” (ou variantes), seguindo-se um chorrilho de frases de ódio e simplismos ocos, temo que os órfãos de outros extremos, que se revelam agora dando tiros nos pés desamparando a Democracia para amparar o imperialismo, venham encher esses ocos com tudo menos com os valores da Democracia e do Progresso. Temos que estar muito atentos, nós os democratas que se preocupam em despolarizar, os que temos voz em público e a oportunidade de contribuir para dar opinião e ajudar outros a formar a sua opinião, não deixando que se confunda liberdade de opinião com revelação de traços de mau carácter.

19.4.22

Austeridade: o primeiro verso do mantra da oposição

Foi entregue o primeiro orçamento desta maioria absoluta e a oposição, ajudada pelo fantasma da “Maioria Absoluta do Passado”, já criou as “buzzwords” que, em paralelo, fazem o caminho só a olhá-lo de lado. O fantasma foi o de há 33 anos, o mesmo número quase já mítico dos diagnósticos médicos, ultrapassados, ao estado dos pulmões de um paciente; tão inúteis, obsoletos, como o último artigo do Professor Cavaco a exigir coragem a este Governo. 

Austeridade é um termo PàFiano criado pela oposição de então, estávamos entre 2012 e 2015, para qualificar a divisa “para além da troika” que o Governo PàF ostentou orgulhosamente. “Austeridade” foi a palavra que deu à PàF a vitória que não chegou para constituir Governo e que a Geringonça, no seu discurso mais canhoto, achou sempre que era conjuntural e não estrutural, como agora já aprendemos todos a dizer. 

A austeridade, na sua definição primeira e não derivada, será tão estrutural na governação portuguesa como a crise. Ambas perpétuas porque são o equilíbrio que nos permite ir avançando e que não deve ser confundida com mesquinhez. Esta, a mesquinhez, é a maldade do “aguenta, aguenta”, do sonho de Quintela em deixar gente sem salários por um par de meses que “seria uma pressinha”, enfim, do Portugal salazarento. A maldade que promove a desigualdade, seja por ideologia fascista que a proclama, seja por incompetência de lidar com as dificuldades de a combater, mesmo concordando que quanto menos desigual é uma estrutura social, mesmo hierarquizada, melhor se percorre o caminho da prosperidade de uma nação. 

Não há mal nenhum na austeridade, palavra ou pauta que traça um caminho, porque é ela que permite “contas certas”, sejam estas feitas com poucos ou muitos zeros. Onde há mal e dolo é andar-se convencido e, pior ainda, andar a convencer os cidadãos, de que se pode dar tudo a toda a gente. 

Tenho para mim que os que estiveram do lado esquerdo da Geringonça não quiseram governar porque, do lado da solução, são incompetentes na aplicação do discurso que têm quando estão no lado da contestação. Veja-se a contestação e resistência de certos autarcas à transferência de competências e percebe-se bem a dificuldade em governar sem empurrar responsabilidades. Mas essa palavra - transferência - é parte do segundo verso do mantra da oposição ao XXIII Governo da República. Dela falarei talvez um dia, lá mais para a frente. 

12.4.22

A tournée de Zelensky

 Era por demais evidente que, mais cedo ou mais tarde, o herói ucraniano desta guerra, talvez mundial, marcaria presença no parlamento português. Uso a expressão “marcar presença”, muito vulgarizada, infelizmente, porque começou por usar-se no contexto da popularidade de certas figuras de reality-shows em discotecas e quejandos, onde apenas conviviam porque não se lhes conhecia mais nenhuns dotes que pudessem requerer um lugar do espectáculo. Mas voltemos ao assunto.


O novo tempo permite que se troque a visita institucional pela videochamada institucional. Ou teletrabalhar não teria sido a solução para o trabalho continuar a ser feito por uma imensa maioria dos confinados em 2020 e 2021. O voto contra do PCP para o convite a Zelensky foi, como sempre e no discurso, coerente com a posição inicial. Posição que tem tentado camuflar, pondo em alternativa o cenário, utópico e obviamente inexequível, de que à Assembleia da República Portuguesa, no mínimo, caberia qualquer coisa como ser palco do encontro Putin-Zelensky a comprometerem-se os dois sabe-se lá bem com o quê. Daria logo a oportunidade de, por essas rotundas fora, se espalharem cartazes a proclamar que, não só o PCP é a espécie de desodorizante “contigo todos os dias”, mas o verdadeiro mentor das conversações cimeiras para a paz mundial. Estão, comprova-se, muito habituados a tornar tudo em “marcação de presenças”, em verbo de encher a fachada da democracia e do aligeirar ódios de estimação (porque o discurso contra o discurso do ódio é mesmo o que está a dar…).

Não era fã de Zelensky, até porque nem o conhecia bem, e só o conheço melhor porque esta maldita guerra o obrigou a “internacionalizar-se”. E não estou do lado da ideologia a que se encostou para chegar ao poder e que, entrando a Ucrânia na UE, o levará, no mínimo, ao Partido Popular Europeu (como não lhe conheço os dotes artísticos, por esse lado não o poderia julgar). No entanto, admiro a sua capacidade de resistência, sobretudo quando tem o país que governa em escombros. De qualquer modo, a resistência é a característica mínima de qualquer político a que reconheço valor, independentemente da capacidade de boa gestão que venha a revelar: torna-me mais resistente na minha capacidade de não deixar de lhes dar atenção quando só me apetece “cancelá-los”.

Posto isto, ainda estranho, como estranhei as aulas on-line, certas coisas acontecerem no ecrã. Tem algo de pop, de show. Mas pop é diminutivo de popular, adjectivo que se molda ao que se quer democrático na base conceptual e que, por vezes e infelizmente, descamba em populismo; e há shows bem piores do que um texto bem encenado de que conhecemos o pretexto, com um contexto que adaptará para o palco Portugal, o que esperamos com alguma curiosidade; e até quais serão as referências, ou intertextos, que evocará. Pense-se nos intermináveis desfiles militares com monstruosas máquinas de guerra que acontecem na China, na Coreia do Norte e na Rússia. Estes já são vídeo-shows aceitáveis para o PCP?

Enfim, a desilusão que pessoalmente me acordou em 2009 parece estar a acontecer em 2022 a mais gente. A desilusão que me levou para além do valor histórico do Partido na clandestinidade, ou da breve alegria que o colorido das fachadas proporcionam ao cidadão comum, e que me explicou muito bem a oligarquia russa. Já não dá para disfarçar, pois não? Acontece muito quando se prova da receita que se deu aos outros, como quando se gritou: Acordai! Só por isto já valeu a anunciada visita institucional de Zelensky à AR, mesmo que em formato de tournée audiovisual.

5.4.22

Marcelo: a revelação (episódio 1)

 Até os eleitores engolem sapos, o que só comprova atenção e convívio democrático no mundo dinâmico da Política. Um mundo em que há princípios inabaláveis, mas com formas e modos de os aplicar ajustáveis a circunstâncias e contextos que se alteram muito e, por vezes, depressa. É por isso que a popularidade de indivíduos eleitos com largas maiorias pode oscilar muito com o tempo e a acção.


Por outro lado, é sabido que a palavra “revelação”, ao contrário do uso que lhe damos no dia-a-dia, significa etimologicamente “tornar a velar”, ou seja, “voltar a esconder”. Por isso, uma revelação requer, de quem se interessa pelo assunto envolvido, um trabalho constante de descodificação dos possíveis significados do dito assunto.

Sabemos também que “o segredo é a alma do negócio” e que saber guardá-lo é tão valioso que muitos gostam de pavonear-se dizendo que têm um segredo e, vai-se a ver, afinal já toda a gente o conhece. Hábitos de terra pequena, ensimesmada, pouco dada a crescer e a tentar respirar melhor.

Ora, e focando-nos no assunto da crónica, Marcelo Rebelo de Sousa já várias vezes revelou tiques de não ser o “porreiraço” que aparenta (desculpem-me o plebeísmo, mas tentei só “descer” ao nível da selfie que o mais alto dignitário da nação cultiva na sua agenda pessoal). “Porreiraço” que não tem de ser, entenda-se, mas que lhe serviu para ir escondendo uma agenda pessoal e partidária. Nem conseguiu deixar de condicionar os jogos internos do seu Partido. Foi assim que, no meio de várias brilhantes intervenções de um patriotismo e cultura democrática inexcedíveis, como um Presidente tem e deve ter, houve dois momentos recentes em que teve, ao mesmo tempo, imperceptíveis mas espectaculares deslizes. E chamo-lhe deslizes, porque não tiveram a evidência de um percurso construído de forma muito cúmplice com o saber-fazer da comunicação social. E espectacular porque foram momentos TV. O saber-fazer de Marcelo neste palco é evidente: lembremo-nos como praticamente despediu uma Ministra da Administração Interna em directo à frente das câmeras e microfones. Foi assim que Marcelo voltou, no passado dia 30, a fazer descaradamente o favor ao seu Partido, fazendo a ameaça de que deitaria abaixo, sem apelo nem agravo, o Governo eleito com maioria absoluta, caso acontecesse o Primeiro Ministro sair desse lugar. Para além da ameaça, o que fez foi equiparar António Costa a si próprio, já que só o sufrágio para a Presidência da República é votação para uma só pessoa. Ou seja, até se desvalorizou para alimentar rumores que circulariam sobre António Costa e a Europa.

Mas voltemos aos tais dois deslizes espectaculares. O primeiro, quando o orçamento foi abaixo, numa altura em que o PSD estava todo impreparado para enfrentar uma campanha eleitoral, e o senhor foi pagar contas ao multibanco. O segundo, quando ignorou a imprecisão de um rumor da lista de ministros e sobrevalorizou a esperteza do par de que ele, se calhar, achava ter o monopólio: comunicação social e políticos. Não foi sozinho ao multibanco, mas cancelou a reunião ritual entre “palácios”. Acontece isto quando o que se seguiu ao disparate do assunto da contagem de votos no círculo da Europa, foi a confirmação do desaire do PSD. Acontece muito, este tipo de birra, com miúdos mimados que, quando confrontados com a sua asneira e castigo, desatam a “disparar” contra objectos para onde transferem a sua frustração: vão dar uma volta sozinhos ou dizem a todos que já não são amigos deles.

É que também é muito tramado quando o segredo do negócio, que não é segredo nenhum, deixa de ser de uso exclusivo, não é? Ou a comunicação social não podia arriscar previsões a não ser quando a fonte fosse a clique da trintona vichyssoise? (Sim, sim, evocação do episódio de 1991 em que Marcelo mentiu, enquanto fonte tida por fidedigna, ao jornalista que era, então, Paulo Portas, lembram-se?).

Atentemos nas prováveis próximas revelações de Marcelo, que teremos de ir desvendando. E façamo-lo com essa atenção que requer uma leitura quase literária, certamente política: concentrada e tomada à partida como complexa.