15.7.14

Fazer nada e votos de boas férias

«Não fazer absolutamente nada é a coisa mais difícil do mundo, a mais difícil e a mais intelectual.» Quem o disse foi Oscar Wilde e pareceu-me uma boa citação, em absoluto, e bem propositada para encerrarmos este ano de crónicas e irmos de férias.
Se as férias para a maioria são, pelo menos durante alguns momentos do dia, tempo de ócio, certo é que não fazer nada, acordado, é todo um desafio para nós mortais. Claro que a ironia da frase de Wilde está bem explícita no facto de se equiparar o pensar ao não-fazer, equívoco que é mais epidémico do que seria desejável à espécie humana que se distingue precisamente das outras espécies animais por pensar.
Também me parece verdade que pensar e fazer apenas uma outra coisa ao mesmo tempo é a habilitação mínima de um ser humano com todas as capacidades básicas ativas, muito embora um eurodeputado comunista tenha desconfiado dessa capacidade no novo presidente da comissão europeia, num episódio, vá fait-divers, de uma arrogância constrangedora. Mas adiante.
Às mulheres, diz-se, cabe o dom de fazerem mais destes malabarismos do que aos homens. Tendo a acreditar no que considero um elogio ao meu género, mas faço-o porque me parece mais provável na latitude e longitude onde vivo e não porque ache que seja um facto assim tão universal. Fazerem, mulheres e homens, várias coisas ao mesmo tempo em que uma delas é pensar, deixa-me equacionar duas hipóteses: ou se fazem coisas que exigem pouca reflexão e continuamos, por isso, a fazer o que é do pensar com toda a intensidade; ou aplicamos o pensar ao que estamos a fazer. Se na primeira hipótese separamos os dois mundos mas desconcentramo-nos forçosamente de um deles, na segunda aplicamos o pensamento ao que estamos a fazer e, como tal, o resultado será sempre se não pelo menos melhor mais justificado e assente numa determinada lógica seguida. Mas a sociedade encara muito mal quem não faz nada. Se calhar, e com toda a pertinência, porque os que fazem são taxados por isso. E por isso, com a evolução civilizacional, se terá equiparado o pensamento à ação numa coisa legal que se chama “propriedade intelectual”…
É que a atividade em si de pensar e não usar o que resulta do pensamento é muito parecida, a olho nu, do pensar e contribuir com esse pensamento para um bem maior do que nós e comum aos que nos rodeiam. E quando isso acontece, mesmo continuando a incompreensão por parte de muitos, é um trabalho muitíssimo importante.
E é por isso que a frase de Oscar Wilde é uma espécie de exercício que proponho que experimentem, sem com isto desejar que durante as férias não deixem de fazer, como todos merecem e alguns às vezes conseguem, o que chamamos “descansar a cabeça”. E às vezes isto, só se consegue se cansarmos o corpo.

Desejo-vos, quando for caso disso, uma boas e ativas férias, em que o fazer nada possa ser um desafio ao pensar muito, ou pelo contrário, o fazer muito signifique pensar pouco. Até setembro.  

9.7.14

Cultura do engodo

Imbuída do espírito da cultura popular com as festas da cidade e da época, meti-me a falar de outras culturas, considerando várias aceções sobre crenças, costumes e hábitos humanos. Há uma tão enraizada com que nos cruzamos tanto e a toda a hora que, até como que hipnotizados, nos esquecemos da sua gravidade. E aqueles que por um determinado modo de vida que levam se conseguem manter afastados desta pressão impercetível, não estarão menos sujeitos a ver-se enredados nos assuntos que acham impermeáveis a este tipo de procedimento, que vive sobretudo na linguagem e no discurso e que se está a tornar numa prática cultural cada vez mais universal.
Refiro-me à cultura da mentira, nos seus diferentes graus de intensidade e com consequências várias ainda que todas inevitavelmente lamentáveis, muitas altamente nefastas nem que seja pontualmente algures na cadeia que vai desde o momento em que é arquitetada e depois lançada, ou quando produz os seus efeitos por vezes ao lado ou mais além do seu projeto inicial. É que a mentira, esta mentira que não é erro ou engano, que não deriva de uma ingenuidade infantil desejosa de um mundo mágico, ou que é mesmo sintoma de patologia, esta mentira é uma mentira que engana de propósito, atraindo os mais distraídos para um determinado alvo com um certo isco, levando-nos a “morder o anzol”. Porque “morder o anzol” é uma das opções que temos, numa vida felizmente cada vez mais cheia delas, mas onde por vezes as alternativas não estão menos engodadas.
Desenganem-se os que já estão a pensar que estou a falar dos políticos, um alargado grupo de pessoas responsáveis por gerirem os destinos de um coletivo ou de fiscalizarem essa governação, e sim estou a referir-me a políticos em democracia, e que tantos ofendem classificando-os liminarmente como “todos iguais”. Desenganem-se porque este não é um texto confessional, e muito menos um pedido de indulgência de quem gosta da política e a pratica com convicção. É tão só e apenas uma reflexão de alguém que, como tantos outros, está sujeita a constantes doses de notícias e apelos lançados às massas e que um dia resolve dar-se ao trabalho de ouvir com atenção esses discursos em vários tons, suportes e propósitos, e perceber como tudo isto parece estar a tomar proporções inquietantes.

O grego antigo Heródoto terá dito que “é mais fácil enganar uma multidão do que um só homem” o que na nossa era continua a ser tão ou mais inquietante, e até porque as multidões são somas de indivíduos que são chamados como cidadãos a participar cada vez mais na vida pública. Certo é que as técnicas usadas para arrastar multidões são as mesmas para impingir o bom e o mau, e que muitas vezes só nos damos conta do mau, ou este se revela, depois de o termos escolhido como bom. Mas pior mesmo é irmos percebendo que toda esta prática propagandística, disfarçada de informação disponibilizada ao cidadão e às massas para que possam escolher isto ou aquilo, ou este ou aquela (porque as pessoas também estão disponíveis para ser escolhidas), tudo isto parece estar a viciar-nos ao ponto de deixarmos de acreditar em quem não a utilize. Uma cultura que tende a extremar as pessoas entre fervorosamente crédulos e constantemente desconfiados e que urge combater não só com a denúncia, mas muito fazendo por se assumirem as culpas quando assim for o caso.

Cultura da simplicidade, essa desconhecida

Confesso que tenho muitas dificuldades em entender e encontrar definições para o conceito de simplicidade aplicado a pessoas. E sobretudo não me revejo em utilizar “simples” como um adjetivo elogioso, quando aplicado sem ser num contexto muito preciso e muito pouco possível de estender a toda uma vida. Também é verdade que “simples” se tornou o antónimo de vaidoso, mas então se a simplicidade é uma tão grande virtude como não se ficar vaidoso quando alguém lhe aponta esta característica? É que até as situações que se dizem simples, de resolução se são um problema, me parecem sempre mais subestimadas do que integralmente resolvidas.
Ocupo-me do assunto porque tenho estado em situações que se dizem ora solenes, ora simples e não tenho conseguido entender a diferença. Uma cerimónia pode ser solene e simples, pode ser solene e complicada, mas é sempre uma cerimónia. Se não é uma cerimónia, há vários tipos de situações que também podem ser elaboradas. Elaborado é-me mais fácil de definir e classificar, sem juízos negativos ou positivos a priori. Elaborado é uma espécie de sinónimo de algo longo, que requer atenção e concentração, e em que os papéis dos diferentes intervenientes estão bem definidos e sem grande margem para improvisos.
Regressando às pessoas, não me parece que uma pessoa elaborada seja pior que uma pessoa simples. Até porque há pessoas, dizem-me nas descrições e comentários que delas se fazem, que quase poderíamos classificar de elaboradamente simples e outras de simplesmente elaboradas. As pessoas do primeiro tipo que agem de forma tão simples, ou tão aparentemente simples já que é preciso muita elaboração, que parece que estão, como diz o povo, a tentar “meter-nos Lisboa pelos olhos dentro”. Já as do outro tipo, com algum tempo e convivência, lida-se muito facilmente com algumas delas, nem que seja numa atitude de “amigo não empata amigo”.  

Mas isto devo ser eu que alinho com o Paul Valéry que dizia: «O que é simples é sempre falso. O que o não é, não serve para nada.» Não sei se o Valéry aplicava a simplicidade às pessoas e o culto que se faz desta característica, para mim pseudo, nas loas que se lhes entoa. Mas é que com este aforismo de Valéry, começo a acreditar que a simplicidade, das coisas como das pessoas, tem um caráter utilitário, o que faz com que os humanos sejam recursos, para outros humanos, claro, e talvez esta taxonomia não seja mais do que uma tática de gerir o pessoal com quem vamos tendo de lidar no dia-a-dia. Tê-los como simples é sempre meio caminho andado para, das duas, pelo menos uma: ou a simplicidade dos outros nos dar menos trabalho e nos facilitar a vida; ou, talvez mais honestamente, ao etiquetar alguém de simples permitir-se que dela não se espere muito, o que a acumular com a honestidade tem muito de indecente. Enfim, Valéry faz-me acreditar que por trás de uma simplicidade está sempre muita elaboração e, como tal, há que antes de louvar ou criticar com o termo em causa, perceber o caminho percorrido para se adquirir esse estatuto tão socialmente relevante de pessoa simples.