31.10.17

As maritacas deste Mundo

Escrevo esta crónica a sobrevoar o Atlântico, vinda do Brasil. Foi uma viagem de trabalho. Alguns aproveitam-nas para esticar as estadias e fazer turismo. Não o fiz, pelo que a minha primeira visita ao atraente Brasil dos folhetos turísticos se ficou por uma pequena (mas encantadora) cidade de Minas Gerais, e pelos percursos entre o aeroporto mais próximo. Mas o que é certo é que trouxe de lá muito mais do que os habituais “recuerdos” ou mais um record de milhas voadas.
Das curiosidades com que também todos os viajantes se costumam enriquecer, trouxe o estreito contacto com as maritacas, uma espécie da família do papagaio e do periquito, pequenas aves coloridas de piar incessante e estridente que dão origem à expressão que diz de alguém que fala “como uma maritaca”. Em Portugal associamos à gralha ou usamos a corruptela da expressão brasileira dizendo que fala “como uma matraca”, o que só acentua o efeito doloroso de quem tem de as ouvir.
Também trouxe alguma informação, mais completa pela proximidade, que os meios de comunicação se encarregam de passar para as massas e que me revelaram um Brasil em perigo. Talvez um pouco mais em perigo que o resto do Mundo democrático por lhes faltar, aos cidadãos comuns, ainda tanto do que quem vive em democracia, e em sociedades progressistas, merece e a quem se exige, ou devia exigir, que assim se preserve, democrática e progressista. Se ainda a sua maior parte ainda não provou dela, parece o seu todo mais atreito a abrir mão do pouco a que tiveram acesso, vítimas de engodos e equívocos vários.
Quando as notícias quase diárias de confrontos nas favelas do Rio de Janeiro, em que habitantes e polícias militares são feridos e mortos, o que parece o agravar de uma situação anormalmente considerada normal, eis se não quando acontece que uma das vítimas foi uma turista espanhola que resolveu comprar o “tour” à Rocinha e não saiu de lá para contar a experiência, termo tão caro à área do Turismo, em diversas ópticas do especialista académico ao viajante comum. O turismo da pobreza tem tudo, e mais alguma coisa, para ser uma actividade de gosto duvidoso. Ele não é o oposto de fechar os olhos e ignorar a pobreza com que nos cruzamos sem querer. É, no meu entender, um desrespeito para com os nossos semelhantes, uma atitude sinónima de oportunismo e sobranceria.
Durante a minha estadia também a já quase lisboeta Madonna esteve no Rio e resolveu visitar uma associação com um relevante papel social na mesma favela em que a turista foi apanhada no meio de um tiroteio. Uma visita que se quis tudo menos discreta, ao bom jeito que nós percebemos que muitas celebridades gostam de viver e de que se alimentam muitos meios de comunicação. E valeu os reparos de vários comentadores de vários canais e suportes de comunicação social. Uma incessante e estridente Madonna, transformada em pequena maritaca. Não se julgue, no entanto, que este modelo metaforizado ao jeito da maritaca é só de estrelas de nível mundial. Ele há maritacas de género vário e em terras pequenas para o resto do mundo mas enormes no coração, e no discurso, dos seus filhos. São do tipo que uma vez poisadas num dos ramos mais altos do “pedaço”, julgam que a única forma de justificar a sua existência é palrar de forma incessante e estridente. Uma tentação. Perceber isso pode ser já um passo para evitá-lo. O outro é ter mais alguma coisa para dar do que só ser incessante e estridente.

24.10.17

Nações valentes e mortais

Temos assistido nas televisões, rádios e jornais, nas últimas semanas, ao desenrolar da situação política em Barcelona, a propósito da vontade independentista da Catalunha. Sendo um caso, ele é comum a outros países, até mesmo europeus e não só em zonas do globo em guerra e mais distantes, e não deixa de ser um exemplo de nacionalismo. Devo admitir que sou pouco nacionalista, não deixando de ser patriota q.b.. A Pátria é a terra Mãe, e mesmo não sendo como Natália Correia dizia que devia ser por isso a Mátria, há uma identificação que reside sobretudo na questão de origem e pertença, em várias dimensões que vão da língua aos costumes, dos saberes aos sabores. E, talvez por isso, me espante ver que muitos dos mesmos que se insurgem contra outros movimentos nacionalistas defendam aguerridamente este da Catalunha. Do que já pude constatar por lá, o espírito catalão está tão bem conservado como está o pitoresco em qualquer capital cosmopolita deste século: o que é global é global, o que é europeu é europeu, o que é espanhol é espanhol, o que é catalão é catalão. Também devo dizer que o referendo, prática inquestionavelmente democrática, é um acto que requer um período de esclarecimento profundo dos eleitores e perguntas acessíveis, claras e concisas.
Talvez convenha atentarmos na definição destes conceitos que giram em torno de territórios onde pessoas nascem e/ou vivem e para cuja organização contribuem de diversas formas que vão dos deveres às obrigações, dos impostos aos subsídios, entre outras muitas mais questões. Assim, vemos que o conceito de Nação é próximo do de País, mas sublinha os valores culturais comuns a uma população; que Pátria salienta um País ou território enquanto realidade afectiva a que grupos e indivíduos estão ligados; que País se refere, normalmente, a um território com organização política própria; e que o Estado é a entidade responsável pela organização de um território e da vida da população ou do conjunto de populações que aí habitam.
Assentando a visível contestação catalã de certas lideranças muito na base do argumento regime republicano versus regime monárquico, é de facto a única que se apresenta de forma clara, já que as outras razões gritadas por muitos são enevoadas ou desmontáveis pelo forte sentimento de quem visita a Catalunha e nela dá logo de caras com as suas autonomias. Assim, os catalães querem um Estado só seu, o que não é uma coisa leve de decidir de um dia para o outro, quando tanto já se deu e recebeu por se ser parte de outro. Aliás, a ânsia deste tipo de independentismos, e sabendo que a letra da canção “Imagine” do Lennon é toda ela um hino da utopia, esse não-lugar, tem tendência a exacerbar muito mais os ódios do que os consensos, o que pode, desde logo, contagiar muito mais o ambiente onde se instalam do que trazer benefícios ao cidadão comum.
Gostei de ler num sítio web de Educação o que se dizia sobre estes conceitos, embora se caia no argumento “ad Hitler”, demasiadas vezes usado e por isso mais gasto do que útil.  E lá dizia-se assim: “Muitos Estados, para garantirem o exercício de suas soberanias em seus territórios, tentam criar entre os seus habitantes um sentimento nacional, ou seja, a ideia de que aquele país equivale a uma nação geral, o que costuma ser chamado de nacionalismoO estímulo ao nacionalismo é visto com bons olhos por muitas pessoas no sentido de essas valorizarem os seus territórios e suas populações, mas é preciso ter cuidado, pois os fatos históricos já demonstraram que um nacionalismo extremo pode provocar uma onda de fascismo. Nesse caso, o governo e até as pessoas passam a considerar que a sua nação (ou “raça”) é naturalmente superior às demais, justificando ações bélicas e formas de preconceito diversas, tal qual foi o caso do Nazismo na Alemanha em meados do século XX.” Vale a pena pensarmos nisto.

17.10.17

Quem ou porquê?

Voltou o terror do fogo. E a minha vontade de respeitar os mortos e os que os amam com o silêncio choca com o espectáculo da histeria de desconhecidos que dizem ser assim que se lhes pode tomar as dores. A tristeza de todos nós, Portugueses, é tão inegável como a dor real dos que a sentem, e até essa se mostra aos outros em doses tão desiguais quanto inquestionáveis. Mas a exibição excessiva da lágrima que se verte pela dor do outro arrisca a parecer, e talvez a ser, tão mesquinha como a falta de compaixão, aquela que desperta a vontade de ajudar quem sofre. E por isso, desta vez, neste luto, falarei. Pouco, mas falarei.
Tivemos de novo as forças desiguais da Natureza que desasam os humanos. Todos os humanos. Da costa Oeste da América do Norte à costa mais Oeste da Europa. Não me venham por isso falar de conspirações... De novo os mais vulneráveis, os que com ela, a Natureza, convivem, até que se revolte, em cumplicidades invejadas ou incompreensíveis para os que vivem dela mais afastados, são as suas primeiras vítimas. Como se os santos da casa não fizessem milagres, ou só fizessem a alguns: àqueles que ouvimos, incrédulos. Eles incrédulos pelo milagre de terem escapado, incrédulos nós por não nos conseguirmos imaginar na sua pele. Os medos na Cidade, uns mesmo à espreita outros atávicos, levam-nos a sentir na vida no campo, junto dela, a Natureza, uma espécie de nostalgia do paraíso terrestre. E quando o paraíso se transforma em inferno, ficamos à procura da mesma lógica que explica os “porquês”. A lógica que se aplica a nós, os da Cidade, grande ou pequena, onde os quatro elementos – fogo, ar, terra, água – estão relativamente domesticados, onde  a dureza da pedra e da cal ou do tijolo e do cimento não atrai o fogo como a seiva dela, a Natureza.
Transformamo-nos todos, os que assistimos ao que parece, e desejávamos que fosse, só uma história de terror, naquela personagem que investiga o crime. E nessa ânsia humana de remediar com a justiça o que tantas vezes é já só uma pálida amostra de um remédio que cura a dor, esquecemos que na procura do culpado um longo percurso requer que à pergunta “quem?” venha antes a pergunta “porquê?”. Na recolha das provas, o móbil do crime é a meada de fios da qual talvez apenas só um seja o condutor que liga a vítima ao carrasco. É desse trabalho de investigação, pesquisa, minúcia, cuidado, que se pode chegar ao fim e descobrir o “quem”. Mas mais: é  com esse trabalho que se evita que, quando as vítimas parecem ser em série, se tomem as devidas providências para que não chegue a haver a próxima vítima. Não garantimos que não se repita, mas tentamos. É desse trabalho que podemos, quando ela, a Natureza, mostra a sua fúria ter connosco o conhecimento, a técnica, o instrumento que torne esse medir de forças menos desigual. É trabalho, é empenho, é concentração de esforços de equipa e não de uns a quererem livrar-se dele e outros a querer despachá-lo para recolher dele os louros. A culpa? A culpa há-de ter que se apurar, claro. Até com o risco de podermos vir a não gostar de ter encontrado “aquele” culpado. É tempo de ter esse trabalho. Já era, há muito. Silêncio! E fale quem sabe que nós estamos cá para ouvir e aprender. Também a sobreviver.

10.10.17

Correcções e insurreições políticas

É bom estar de volta às crónicas da DianaFm e continuar a pensar convosco as andanças desta terra, seja ela cidade, região, país, continente ou habitat da espécie humana.
O Verão foi longo, quente e fatal, tudo ingredientes para que não tivesse senão um pinguinho de aroma a silly season, e, e... Parece que já nem num mundo mergulhado em redes sociais a tradição das convenções supérfluas de agir à jetset é o que era. E conseguir impor tréguas carnavalescas à seriedade do que realmente importa torna-se difícil. Talvez até pior ainda: o que foi silly foi o que, por força de outros calendários, e falo do eleitoral em particular, se deveria ter mantido a sério e não conseguiu. Mas adiante, que esse assunto está encerrado, com o povo que pôde escolher quem lhe resolva, ou tente resolver, o problema de ao pé da porta, tão importante como o problema que afecta a Humanidade lá mais ao longe. Daqui para a frente se construirá o julgamento em 2021. 
Nesta série de crónicas decidi alinhar não por alguma constante que tenha estado fora das anteriores, que se fizeram à volta de estrangeirismos, expressões populares, verbos, citações ou metáforas, mas onde os acontecimentos suscitaram, e continuarão a suscitar, a opinião. Com a certeza, porém, de que manterei o que sinto desde o princípio: que por ser opinião que expresso publicamente tenho o dever de explicar os seus porquês com argumentos que não diminuam quem os oiça com atenção; que pessoas inteligentes perante a mesma informação podem ter opiniões diferentes e, que uma vez explicadas nesta mesma base, não são opiniões nem intelectualmente limitadas, nem desonestas. O que me leva também a distinguir, como é evidente, entre opinião e carácter. Nem todos os opinativos têm bom carácter e nem todos os que têm bom carácter têm de ser opinativos. O carácter é também o que permite, para além da opinião, atitudes correctas ou não. E não estou a pensar fazer nenhuma espécie de tratado de ética ou moral em fascículos, mas apenas e só a pensar convosco o que vamos ouvindo dizer sobre o que acontece.

E para começar esta etapa em que as palavras continuam, afinal, a estar omnipresentes (como nos estrangeirismos, nas expressões populares, nas metáforas ou nas citações) importará perceber que, como tudo, as palavras crescem e modificam-se sem nunca precisarem de ser desvalorizadas, nem mesmo até, por serem de uso perigoso, ser deixadas à solta. E é por isso que importa percebermos, e vos deixo a pensar, sobre o tanto que agora se diz sobre o “politicamente correcto”. Lembro que na origem é uma classificação de algo ou alguém que segue as normas estabelecidas por uma instituição oficial. E, normalmente, quando se fala em “politicamente correcto”, qualifica-se o uso de palavras ou o discurso que evita estereótipos ou referências a diversas formas de discriminação existentes ainda numa sociedade em progresso, como o racismo, o sexismo ou a homofobia. Deste conceito cria-se, através de uma lógica discutível, a ideia do “politicamente incorrecto” em que todo o cuidado em evitar o uso de expressões ofensivas para determinadas pessoas ou comunidades, é desconsiderado. O discurso “politicamente incorrecto” é o comum do discurso humorístico, legitimamente silly, portanto. E quando se opina em público é fácil sentirmo-nos atraídos por ele. Resta saber onde acaba o humor e começa a intolerância.