21.3.23

Comemorar a Social-Poesia

 Felizmente que vai longe o tempo em que se usava chamar a certas pessoas “intelectuais de esquerda” e que o epíteto foi perdendo validade. A expressão revelou durante décadas um tique monopolista a quem dava jeito de vez em quando disfarçar preconceitos e, de quando em vez, criar preconceitos. Um tique que, ao contrário do que o uso do intelecto proporciona - pensamento livre e oportunidade de com ele construir argumentário para discurso crítico -, fez proliferar um rebanho elitista. E até marcado por uma espécie de fardas que desejavam tratamento discriminatório. Mas, pronto, já passou e aos fósseis tratamos com o carinho nostálgico que merece qualquer ser humano.

A conversa vem a propósito de dois aniversários que se comemoram este mês e este ano, um local, outro nacional. O primeiro é o aniversário da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora, que assinalou o seu 14º aniversário na semana passada. O outro, anual, é o centenário de Natália Correia, mulher, poeta, política, intelectual, vulcânica, que morreu fez também na semana passada 30 anos. Em comum têm, estes aniversários, a oportunidade e, diria, o dever para quem tem o trabalho intelectual não apenas do modo tão necessariamente amador, voluntário, autodidacta, mas é por ele remunerado, de colocar as Humanidades ao serviço da “coisa pública”. E que à mesa, redonda, das Humanidades onde se servem as Ciências Sociais, também está sentada a Poesia.

Natália, nos tempos em que a palavra de honra não era a do populismo, seja de que lado do risco ao meio artificioso dos púlpitos este se impinge, era uma intelectual e não era de esquerda. Era o tempo da palavra das ideologias que se assumiam e viviam na acção cidadã. Natália Correia dizia que a intervenção política cabia aos poetas e quem não faz, mas estuda Poesia também sabe disso.

É, no entanto, comum que quem não vive tão próximo da Literatura veja em quem lá vive o lirismo a ser usado como único monóculo para interpretar o mundo e os outros. Não é que não aconteça, mas não é o que define os que sabem que a Literatura pode ter um lugar mais central nas Ciências Sociais do que parece. Às vezes andam é, como tantas outras pessoas que não têm sequer a leitura como o hobby preferido, mais preocupadas com as suas vidinhas. Nada que os transforme em estranhos criaturas, mesmo podendo dar-lhes jeito.

Quem, porque ou escolhe fazer da escrita vida ou é pago para ler essa escrita, está habituado a escrever e a ler vidas - personagens, enredos, sentimentos, vulnerabilidades, reacções - tem a oportunidade de interpretar mundos que transforma em discursos (é o que fazem os escritores) e discursos que revelam mundos (como acontece aos leitores). E muito para além de momentos comemorativos. O caminho para esta oportunidade é mesmo partir do princípio - que tomo como bom, na minha interessada posição de professora de Literatura - de que todo o acto discursivo traz um peso tão mais valioso quanto desvende ou revele sentidos que não podem ser lidos como instruções de manuais de máquinas. Estes manuais, quando não são seguidos à risca, não deixam as máquinas funcionar bem (e é por isso que também estes textos têm de ser de qualidade, não-literária).

A Literatura tem tanto lugar na história da Humanidade que muitos, e muito importantes, lhe entregam as memórias da sua vida. Estou a pensar nas do Comendador Rui Nabeiro, que partiu há uns dias, e que o escritor José Luís Peixoto guardou no seu Almoço de Domingo. E que vale bem a pena ler-se em várias direcções, política inclusive.

Vamos ter tempo, ao longo do ano, para estar atentos e conhecer melhor a figura de Natália Correia pela sua obra que foi palavra e acção política. Na semana passada, pudemos perceber no anfiteatro da nossa Universidade que o Conhecimento sobre Guerra e Paz, título de um clássico russo, suscitou discursos que versaram algumas tipologias, e até géneros, que encontramos na Literatura. E até no público deu para reconhecer “leitores-implícitos” para cada discurso, como quem dá a ler o que se chama um livro de conforto, também conhecidos por best-sellers, que o estudo da Literatura não pode ignorar. Foi bem interessante a festa, pá!