15.12.20

Mensagens de quase amor

 Por ter parecido estranho a alguns ter dito, na última crónica, que andava há décadas interessada em representações literárias do amor (aliás, uma banalidade na área em que trabalho), hoje vou aproximar-me do assunto por outro ângulo. Mas também o faço porque estamos a entrar naquela época do ano em que, ao abrigo da quadra, se aproveita o amor familiar como uma boa desculpa para festejar, ainda que sobretudo muito se traduza em fazer circular a economia, numa fúria consumista que normalmente ultrapassa o espírito da troca em presença. E criando até, neste 2020, armadilhas propiciadoras de incoerências. É que a melhor prova de amor que podemos dar àqueles com quem quase só estamos sobretudo nesta altura do ano é precisamente a distância física, essa inimiga de amores vários.


Foi assim que me apeteceu partilhar a minha última “descoberta”, mais lúdica do que profissional, bem entendido, mesmo quando nunca conseguimos desligar-nos do que escolhemos fazer para ganhar a vida sem perder tempo. Trata-se da classificação, com direito a designação própria e compósita, de uma forma de ensaio do discurso de sedução: o “flirtexting”. Sem a intimíssima grotesca tendência, nua e crua, do discurso pornográfico, a que chamam “sexting” pois claro, o “flirtexting”, ao que li, pode tornar-se numa espécie de versão de romance epistolar amoroso da era dos tweets: exercício de brincadeiras leves com palavras e sentimentos que, aparentemente, não passam disso. Ora se houve coisa que aprendi com Valmont, Cécile e Madame de Merteuil é que estas trocas de insinuações amorosas podem transformar-se em ligações perigosas: basta responder, nem que seja a dizer “não”, para se entornar o caldo. O que acontece quando o que se diz por escrito é inconfessável olhos nos olhos em público, que se complica no jogo de interpretações e pode saltar do papel - ou ecrã no caso do “flirtexting” - para a alcova. Mas não vamos já pensar no pior, porque também tudo pode não passar disso mesmo, do flirt-em-modo-verbal, num regresso discreto à adolescência de amizades e paixões arrebatadas e arrebatadoras que circulavam na tribo dos amigos do bairro ou da escola.

O discurso amoroso, que é sempre ridículo quando diálogo assistido por terceiros, tem padrões e efeitos muito próprios e certeiros quando complementam a relação presencial. Quando não, transforma-se em exercício lúdico de sedução. As mensagens de “flirtexting” são, por isso, suplementos apimentados e salerosos que talvez ajudem a passar a monotonia dos dias infelizes. Nada a condenar, sobretudo a quem este tipo de exercício tem efeito tão benéfico como para outros a contemplação a dois, ou mais almas afins, do belo como consolação. Às vezes com cheirinho a risco, aventura, transgressão, segredo ou traição, o que, em certos contextos, nem sempre é algo de que nos possamos gabar.

Passando para a estranha realidade que atravessamos, diria que as videochamadas entre familiares forçosamente agora distantes são o melhor substituto, não passando de ilusão, para a presença afectuosa e concreta, de cuja falta tantos se queixam. E no Natal parece exacerbar-se a obrigação da expressão dos bons sentimentos (até se fazem tréguas dos maus, em muitas casas). Voltando à minha descoberta em comunicação virtual (será que lhe posso chamar assim?), uma das diferenças entre as mensagens amorosas e as mensagens do “flirtexting”, é que umas são continuação de relações que existem e preenchem as ausências, enquanto as outras, escondidas nas palavras, emojis e innuendos, criam a impressão de presença de algo - a intimidade até sensualizada - que, à partida, é para permanecer ausente. Concluindo e regressando ao Natal, temos nas nossas relações, quase todos, aqueles com quem nos juntamos e aqueles a quem só fazemos o telefonema habitual. Chega uma pandemia e parece que tudo se mistura e confunde. Uma chatice. Foi aqui que me apercebi o quanto de “flirtexting” há nas mensagens natalícias que se instituíram a vários níveis. Quem não enviar ou receber pelo menos uma por Natal pode até sentir-se mal-amado ou ingrato, o que é só triste. Assim sendo, para manter ilusões, toquem-se sininhos e soltem-se as palavras de ordem, como “próspero”e “santo”, embrulhadas num sempre participativo contexto a que chamamos “votos”. Posto isto, seguem os meus de Santo Natal e Próspero Ano Novo. Um flirtzinho aparentemente inócuo mas que ajuda quem exerce a ultrapassar a monotonia dos dias. E neste 2020, a parecer que, não estando, tudo está na forma do costume.

8.12.20

Pensar arde, como o amor (mas diz-se também que o que arde cura)

 Como é habitual, e é bom que assim seja, quando alguém importante morre todos se unem para o chorar, ou melhor ainda, para o recordar. Fazem-no, normalmente, de acordo com o que lhes convém, o que diz mais de quem recorda, evoca e cita, do que da própria personalidade que se vê, assim, recortada, pulverizada e ajeitada aos “descontextos”, mais ou menos próximos dos contextos da obra original.


Nos últimos dias da semana passada falámos e ouvimos muito falar de pensar, de escrever, de palavras. De repente, parecia não apenas que toda a gente conhecia Eduardo Lourenço (e por conhecer digo saber o que ele fez mesmo ao longo da vida, com impacto público), como finalmente parecia generalizar-se a importância das disciplinas e áreas do conhecimento que vivem com as palavras como lugar antes da acção. De repente, parecia que tínhamos retomado um bom rumo, nem retrógrado, nem esgotado, mas desviado pela sobrevalorização do empreendedorismo, dos softskills, do coaching que atropela tudo para se colar e equiparar à transferência de conhecimento (expressão também eufemística usada para não ofender quem não gosta de perder tempo a ensinar ou a aprender). De repente, parecia que se valorizava o tempo que um homem passa a ler jornais e o tempo que lhe damos para o ouvirmos falar sobre o que aprendeu neles. Uma valorização de quem ganhou com a distância para conhecer melhor os seus e a sua terra, ao contrário da popularucha ideia de proximidade que se vende barato em tantos discursozecos de púlpitos de acrílico no largo da nossa terra.

Também eu (que ouvi, ao vivo, o Professor muitos anos depois de ter lido o seu Labirinto da Saudade para ensinar, ou tentar ensinar, Cultura Portuguesa sem só fazer o estúpido exercício de me substituir a uma enciclopédia que nunca serei, debitando factos), também eu fiquei presa a um detalhe de uma entrevista que ouvi nestes dias e em que, à boa maneira das entrevistas, vive da história de vida do entrevistado. Eduardo Lourenço abre uma nesga para a sua intimidade, deixando-a tão velada quanto antes, mas permitindo-me imaginar sobre ele tanto quanto todos os anos que tenho usado a estudar o Amor retratado na Literatura me permitem.

Há dois anos, o intelectual, o pensador, o filósofo e professor disse ao jornal Expresso: “A única coisa de que me arrependo é de não ter estado à altura da pessoa que encontrei na minha vida e que a marcou para sempre”. A afirmação comoveu-me. Pela saudade da mulher amada, pela consciência de uma falha tão grande quanto o amor que lhe votava. Espectadora desta confidência, a mim pouco me importa saber o que se passou exactamente, em detalhes que só a eles diriam respeito. Mas consigo imaginar um sem número de situações que, podendo ter provocado o arrependimento, nunca chegarão para justificar a falha. E apesar da inteligência, apesar da humildade, apesar da devoção, apesar do encantamento com que se consegue ler o mundo e os seres humanos, a entrega na relação amorosa parece ter-se tornado na tarefa mais difícil do indivíduo que, como tantos outros, foi Eduardo Lourenço.

Pensar como quem faz arder a consciência parece, afinal e também, o único remédio que lhe aplacava a dor, fosse ela perda ou falha, transformando-se em arrependimento nada redentor. Apenas um ajuste de contas, lançando mão do raciocínio privilegiado que, com o Tempo, acaba. É bonito quando se vive tão intensamente com o melhor que a inteligência humana permite até ao fim. Mesmo já só a arder em pensamentos.

1.12.20

Restaurar

Em dia da Restauração, a que foi conseguida sob o ceptro de um rei que, parece, teria pouca vontade de governar, mas a quem caiu a coroa na cabeça e a mulher, D. Luísa, terá espicaçado para que se mexesse, apetece-me mais falar num génio do que num rei sem jeito, levado ao colo. Há por aí tantos desses a acharem que são reis...

Num momento em que a aprovação final do OGE para 2021 foi precedida de um espectáculo dado pelos deputados da oposição, podia falar de como se comprova a urgência de restaurar o nível das lideranças na nossa democracia. Mas apetece-me mais falar num génio cheio de contradições assumidas e por si alimentadas que o ajudaram a tornar-se numa lenda. Há por aí tantos que, cheínhos de contradições que negam, acham que ainda assim se tornarão lendas...

Podia falar de cumprir calendário como se fosse um dia santo ou uma quadra festiva cíclica, e comentar sobre como se pode transformar um congresso partidário num ritual para-satânico a fingir. Mas apetece-me mais falar num génio que desafiou limites por sua conta e risco, cedendo, sem rodriguinhos nem desculpas esfarrapadas, a todas as tentações a seu bel-prazer. Há por aí tantos a achar que nós não lhes estamos a topar as agendas, os calendários e os rodriguinhos...

A passagem de Diego Maradona à Eternidade, tão definitiva quanto a Humanidade, restaura a figura do génio, algo romântica: o que não finge a impressão do esforço e não prescinde dos excessos socialmente condenados. Uma realíssima conquista da sua própria estranha forma de vida, livre e poderosa, genial portanto. E é o que não precisamos de apontar como modelo a ninguém e que ficará assim, figura única, a encantar quem só pode ser espectador dessa sua genialidade, sem o invejar.

2020 foi, pois, também o ano em que um dos poucos génios da Humanidade se desmaterializou. Curiosamente, um génio que flutuou no palco do futebol, onde se enfeitiçam até ao limite das reacções mais irracionais (“o ardor infantil no peito maduro”) massas indistintas de seres humanos a esquecerem-se do resto da vida.

Em ano destes talvez devêssemos, enquanto colectivo, equilibrar a evasão desculpada pelas circunstâncias e, também por essas circunstâncias, pensar em restaurar alguns sistemas em que nos enredámos. Ainda que marcados e alertados para memória futura de fundo de baú, tentar esquecer depois o que perdemos em 2020.

24.11.20

De-bate-em-bate

 Começaram as entrevistas com os anunciados candidatos às próximas eleições, prenúncio de debates. Se os debates fazem parte de uma regra do processo eleitoral, estas entrevistas surgem como aperitivos que os órgãos de comunicação social (CS) servem. Servem a si próprios, aos potenciais candidatos e, por último, aos eleitores ainda mascarados de estimável público.


A mais badalada foi a entrevista de há uma semana, feita por Sousa Tavares a Ventura. Tratou-se de um exercício aplicado do conhecido enunciado aforístico, feito do saber com experiência em imaginar cenas de espectáculo de Bernard Shaw. É o enunciado que diz: «Nunca lutes com um porco. Primeiro, porque ficas sempre sujo e, segundo, porque o porco gosta.».

Só a vi depois de ler vários comentários que lhe foram feitos. E até piadas proféticas, das que prevêem o que se seguirá transformando fraquezas ou controvérsias em motivo de gozo. Às entrevistas que se seguirão aplicarei o mesmo método (ouvir sobre e depois ver), pois é o que me dá mais algum entusiasmo para assistir a esta espécie de sessões de pugilato verborraico. Fico preparada para o que vou.

Mas mesmo tendo-a saboreado requentada, ao assistir e falar agora da entrevista, servi-me daquele aperitivo e ajudo a dá-lo ao canal de televisão. É assim que funciona o negócio da CS - visualizações e partilhas - e sem o qual a Democracia resistiria muito mais dificilmente como sistema. E é, por isso, que lhes devemos exigir tanto, à CS, como aos que exercem poderes executivos, políticos e judiciais.

O que aprendemos com aquela entrevista é que não vale a pena tentar-se descer ao nível do interlocutor. É que mesmo que a raiva puxe pela tentação de ir até àquele lado do ringue, a habilidade está em entender a linguagem mas não ceder à tentação de a usar. Vamos ver quantos são os jornalistas que vão conseguir trazer para a seriedade do cargo a que concorrem os entrevistados. Dar a perceber quais os que apenas ali estão muito menos pelo interesse público, do que pela chico-espertice própria dos fura-vidas.

Certo é que uma outra entrevista dada, há um par de semanas, pelo ainda Presidente e expectavelmente futuro candidato ao mesmo cargo, não serviu propriamente de exemplo, cheia de atropelos, ultrapassagens e “borrifanço” olímpico ao entrevistador. A menos que fosse um treino para debates futuros, o que não me deixa mais tranquila quanto ao nível dos mesmos. Jornalistas, ponham-se em guarda, que a Democracia convoca-vos.

17.11.20

O péssimo romance das ilhas encantadas

 Jaime Cortesão, médico, político, escritor, historiador, que viveu entre 1884 e 1960, dedicou a jovens leitores um livrinho com lindíssimas ilustrações de Roque Gameiro, sobre as ilhas portuguesas, com especial relevo para os Açores. Nesse “O Romance das Ilhas Encantadas”, a história recua até quando, “Em tempos que já lá vão um bispo nigromante encantou as ilhas do grande mar Oceano”. O enredo dá muitas voltas, a maior parte delas até já conhecidas noutras versões de modelo semelhante e com final, por isso, previsível.


O bispo nigromante, ou seja conhecedor de artes que iludem os comuns mortais, queria tanto preservar como lugar paradisíaco aquelas sete ilhas açorianas, que as tornou invisíveis a todos os marinheiros e exploradores, até que uns especiais seres, netos do Oceano, as conseguissem devolver ao resto da Humanidade. E o que acontecia nos Açores, não mais ficaria só nos Açores.

Rui Rio resolveu fazer o tempo andar para trás. Ou melhor, tentou fazer o tempo andar para trás. Julgando-se com artes para fazer da amizade florida do seu Partido com o Chega um assunto invisível para o resto do País, arriscou-se a abrir o caminho para que os ventos do fascismo regressem, em amena brisa que disfarça nela um perigoso e maligno nevoeiro.

Os que, como uma parte significativa do Partido de Rio, mais do que movidos pelo interesse nacional e civilizacional, se movem para combater o Partido rival que pertence ao ainda resistente arco da governação, apontam a precedência da Geringonça. Por muito sonante que seja a lengalenga, por mais fragilidades que, de facto, a Geringonça possa ter trazido a um modelo de governação pouco habituado a estas composições de geometria variável, o impacto aberto pelo caso açoriano a nível nacional não é idêntico.

Retomo a conhecida anedota da formiga e do elefante que, relatando que caminhavam juntos, leva a formiga a olhar para trás e a exclamar: “- Olha a poeira que nós fazemos!”. Ao contrário do que aconteceu com a Geringonça em que foram as formigas que ficaram a perder ao chegarem-se ao elefante, fugazmente, com mossas internas que têm tido dificuldade em desamolgar; nesta traquitana, foi o elefante quem ficou ferido, esperemos sinceramente que não de forma irremediável, pela formiga rabiga. Nas ilhas encantadas está a acontecer um péssimo romance. Que seja de edição limitada, rapidamente esgotada.

10.11.20

Os Outros e o Papa

Vou falar de religião. Sei que é assunto delicado, motivo de desavenças e guerras, sobretudo quando discutido entre crentes. O que me aconchega o ego por já não ter de tomar parte nem partido, mas me entristece porque vem comprovar, mais uma vez, como uma boa ideia pode ser tão estragada. A religião é, na minha opinião em que não estou desacompanhada, o resultado de um caminho para organizar a vida dos seres humanos, guiados por princípios que promovem, naturalmente, o que se convenciona chamar o Bem. Admito, por isso, sentir alguma pena por não conseguir apaziguar o meu espírito, nas tantas vezes em que se desassossega, depositando a solução e o destino na vontade de um Outro superior e todo-poderoso. Ele apazigua-se, mas requer muita energia e paciência.

Também aprendi, neste pequenino mundo religioso de marca judaico-cristã que conheço, e desta feita com os cristãos protestantes, a não idolatrar seres humanos, mesmo que algures no seu percurso tenham feito muito e merecido um lugar especial num qualquer altar. Isso e a ideia de que não há cá extrema-unção no final de uma vida de sacanices que garanta, em jeito de repescagem, um lugarzito razoável no Além. Essa ideia do arrependimento final, que até “passa” bem, dá cabo do trabalho de quem tenta convencer por ter a responsabilidade de educar para uma vida de justeza, não sem sacrifícios ou revezes, e se vê ultrapassado por “sacanas de outra lei”. Enfim, nada de mais se comparado com o que por aí se faz em nome da religião, ou da apregoada relação “segurança vs religião”, e revela que por trás de cada justiceiro-criminoso desses está uma turba que acha até muito bem...

E resolvi falar de religião porque a lição da história nos ensina que esta acaba sempre por se misturar com política. Quer Trump, quer Bolsonaro foram legítima e democraticamente eleitos para os cargos que ainda ocupam muito à conta do uso da religião, ou de uma das múltiplas formas de viver a religião, que tendo origem no Protestantismo encaminhou a maioria do seu rebanho no seu voto. Igrejas que se multiplicam para abarcar almas amedrontadas reclamando orientação. Congregações sem liderança que evite derivas discricionárias e de interesse comum duvidoso. Sem uma chefia forte e influente no palco do Mundo, como a dos católicos mesmo com um passado de que não se podem orgulhar, essas polimorfas estruturas descendentes do Protestantismo nem sequer têm a hipótese de fazer sair do buraco quem conteste o líder e se sujeite ao julgamento dos pares.

A mim, nada disto me incomodaria muito, não fosse dar-se o caso de estas igrejas encontrarem figuras homólogas do Papa em cada paróquia ou palanque. E estes se constituírem em Trumps e Bolsonaros, ou seja, líderes idolatrados, o que a sua própria congregação deveria recusar por princípio. Ao menos havendo um Papa, posso sempre dar umas boas gargalhadas quando oiço católicos praticantes, como o Dr. Ventura a proferir alarvidades ou a retorcer a conversa para contestar a postura, lá está, cristã e por isso institucional, do seu líder. E partilhada por muitos e sérios protestantes. Querem lá ver que o André um dia destes descola das Lajes e vai a Roma despentear o Papa?

 

3.11.20

Os olhos postos a poente

 É durante o dia de hoje, 3 de Novembro do aziago bissexto ano de 2020, que acontece mais um facto capaz de alterar o rumo do Mundo político. Não será uma catástrofe natural, muito embora se dê num contexto de catástrofe criada pelos hábitos sociais com impacto no rumo natural da vida do ser humano e outras espécies. Falo, claro, das eleições nos EUA e na possibilidade de os seus cidadãos emendarem a mão que escolheu um indigno ser humano para comandar o País há quatro anos.


Fui das que achou que Donald Trump conseguiria ser transformado num homem civilizado pelas instituições com que teria de lidar. Como outros, enganei-me redondamente. E isso, ao fim destes anos, disse-me pior das instituições do que de Trump, e lamento-o profundamente.

O que poderia ter sido uma encenação a sério para enganar quem acha que para comandar o circo é melhor ter o palhaço rico, muito menos interessante que o palhaço pobre, do que o director do circo, afinal revelou-se uma simples vitória da incompetência em todos os níveis, sobretudo naquele em que se sobrepõem outras características das personagens à competência necessária para exercer certos cargos. Os Republicanos bem podem limpar as mãos à parede, depois de terem fabricado não apenas o candidato, como por não o terem sabido controlar na dignidade que se devia exigir da sua magistratura.

Isto é coisa que acontece muito mais do que parece, apenas com impactos menos estrondosos do que este da presidência dos EUA. Menos estrondosos, mas não menos prejudiciais para as instituições e quem nelas trabalha. Acontece quando candidatos a geri-las são levados ao colo por uns, ou cuja ascensão é uma mera pro forma ou, por assim dizer, um alegre e solitário passeio no parque. Não basta querer muito e demonstrar disponibilidade, não basta prestar-se a ser instrumento para outras lutas, não basta ter dois dedos de testa e uma família influente ou amigos bem posicionados. Tudo isso pode e importa muito para tornar a vida mais fácil até se chegar ao desejado lugar altaneiro, mas, se sobrar a incompetência, de nada valerão, à instituição que se espera que gira, todos esses catalisadores.

A competência de quem lidera mede-se também pela competência da equipa que se escolhe para ajudar ao governo (ah! sim, que as más companhias duram muito para além da adolescência); mede-se pela capacidade de equilibrar o desejável com o possível (e sim há inevitabilidades na governação, não vale a pena enganar ninguém dizendo que não as há); e mede-se com a capacidade de transformar a famosa empatia num sentimento político, e por isso relativizado pela escolha da resolução de um problema que não crie outro maior, em vez de a entender, à empatia, ou como um substantivo concretizado noutra palavra bonita que só serve para consolar sem resolver, ou, pior ainda, num jeitinho a uns que prejudica outros e só contribui para o desequilíbrio e o desgoverno. Ninguém disse que governar era fácil, ou se o disseram era porque queriam enganar quem ouvia, desatento, e com os olhos postos noutro lugar qualquer.

26.10.20

A boa morte da redundância

 Se há conversa que nos toca mesmo a todos e que, curiosamente, tantos evitam é a da morte. É matéria a que nem uma certa ideologia, dada a facilidades discursivas e armadilhadas com variantes do “tudo a toda a gente”, consegue dizer que não é inevitável. E é também muito curioso que os indefectíveis defensores da vida vivida, com ou sem sofrimento, até que um alguém não-humano nos leve, sejam os que prometem, porque de boa-fé acreditam, que “se vai desta para melhor”. Também é verdade que, mesmo no actual quadro legislativo, há a possibilidade da chamada “sedação assistida” a quem chega ao estado paliativo a que a Ciência se rende e que, em consciência, deixou essa vontade expressa num testamento vital.


Na semana passada, a AR votou que a legislação sobre a eutanásia será, como toda a restante, sua responsabilidade. E para que fique claro, nem ninguém será obrigado a usá-la, nem quem a queira o poderá fazer sem que reúna, para usufruir desse direito, o cumprimento de certos e muitos deveres e condições. Longe também do tudo a todos, portanto.

Pedir a cada português que escolha o que é uma possibilidade de outra escolha só sua é, por isso, redundante. E acirra a discussão pública de tema pessoal, privado e íntimo, com pouco impacto para a rotina colectiva, mas com muito interesse para quem sente como sua missão doutrinar sobre a forma de cada cidadão viver. Nada contra este espírito que, de resto, está já subjacente em muita legislação que se cria precisamente para transformar comportamentos.


Os que pediam o referendo, uma óptima oportunidade para escarafunchar a conversa e passar até outras agendas, são, alguns deles, nem sempre muito coerentes com essa exclusividade da mão divina, gerando aderentes que se prestam a usar as suas próprias mãos para, por exemplo, tresloucadamente decapitar em nome do que cria e do que leva. Desvios evitáveis mas que se descontrolam, precisamente pelo acirrar de colectivos algo informes.


Os 230 deputados que foram eleitos, muitos com liberdade de voto, foram-no depois de andarem semanas a falar com quem os elegeu. Quem não votou perdeu a oportunidade de ter essa representação, quem votou mas não viu os seus representantes a terem o número de fazer passar as suas leis continua a poder fazer um trabalho que as condicione, e aos votantes resta sempre a possibilidade de outras formas de participação na sociedade. Até nos Partidos, que existem precisamente para, na AR, tomarem partido em nosso nome. 

Com esta legislação em concreto, discutida à vista de todos e ouvidos todos os que nela se quiseram envolver, uma coisa é certa: mesmo aprovada, ninguém em meu nome me obrigará a escolher a “boa morte”. Mas também não serei julgada por gente como eu por a ter escolhido. Se, chegando-me ao cauteloso Blaise Pascal - que pelo sim, pelo não pensou que o melhor era acreditar num ser divino -, lá no Além, se tiver de prestar contas, terei expectavelmente a oportunidade de que me julguem pelo meu acto. A menos que também tenha de votar em quem me represente para o fazer. Lá estarei para isso!

20.10.20

O homem do saco

 Do fundo da infância, várias figurações dos medos atávicos parecem reconstruir-se não apenas no adulto, como na fatia da sociedade mais chamada a entender o funcionamento da máquina social. O homem do saco, o papão, ou outras personagens com que se ameaça a criancinha que não come a sopa ou se precipita para a asneira, sem mais delongas em explicações racionais e educativas, parece ter encarnado no Novo Banco. De repente, quando tudo o que diz respeito a dinheiros parece explicadinho, até na imprevisibilidade que uma certa lógica poderia evitar, salta o papão do Novo Banco, o homem que nos mete num saco e nos faz desaparecer do mundo tranquilo a que não parecíamos estar a dar o valor suficiente.


A conversa do Novo Banco enjoa-me a vários níveis. O primeiro é logo a de o Estado lhe estar a dar dinheiro. É mentira: não dá, empresta. Aliás, todos sabemos essa diferença quando recorremos precisamente aos bancos, contraindo empréstimos, para adquirirmos alguma coisa nossa. Uma casa, por exemplo. Não é nossa, é também nossa e do banco. Se não a pagarmos, mesmo estando nós a usufruir dela, o banco vem buscá-la. Podemos dizer, numa outra lógica, que então mais vale ser o banco o dono da casa e eu pagar-lhe-ia uma renda, o que equivaleria, na situação do Novo Banco, à sua nacionalização. Mas assim eu não seria também dona da casa. Pergunto-me, então, se a melhor solução seria o Estado ser dono de mais um banco... E esta é uma longa explicação ideológica que me predisponho a ouvir, com dúvidas que me convençam (sim, as boas dúvidas são-me sempre muito convincentes quando estou perante a gestão do futuro).

Depois vem a discussão mais técnica, apanhando-nos na ignorância do mundo financeiro, e que quem já se meteu em algum assado perceberá como a solução que lhe propõem para dele sair é, tal-qualmente, aplicável à gestão de uma dívida deste caso: quem empresta prefere ficar sem nada ou com alguma coisa? Quem tinha de pagar, prefere pagar menos ou ver penhorado tudo o que tem?

Posto isto, sem que me embalem com palavreado mal usado ou engenharias financeiras, o que sei é que, neste sistema em que vivemos e de que muitos comem porque lhes sabe bem independentemente da digestão difícil, face a uma instituição que, a falir, arrasta consigo muito que beneficia a vida em sociedade, há a questão judicial que me rói. Apurem-se os culpados, arrestem-se-lhe os bens que poderão ajudar o Estado a comprar a dívida emprestando dinheiro para que os lesados pelo crime cometido possam recuperar, se não os juros pelo menos o capital que lá tinham. E aos políticos, comentadeiros ou gente que não percebeu que ao discutir um assunto pode ser mais produtivo querer saber mais do que servir de eco das parangonas dos pasquins em vários formatos, peço-lhes que não me tratem, a mim nem a ninguém, como caixa de ressonância dos seus muito pequeninos interesses pessoais ou corporativos, normalmente recheados de partidarite.

13.10.20

O cansaço

Estamos todos fartos da palavra Covid. Estamos todos fartos da máscara, das filas para entrar em lugares semi-vazios, do álcool gel, dos boletins de números com gente dentro, das teorias que se contradizem e que transformam a Ciência na Fé que já existe e não merece essa concorrência. Estamos fartos disso tudo, isso que é só um problema menor. Problema de primeiro mundo, pois se é aquele em que vivemos mesmo quando nos queixamos da “choldra” a que içamos bandeira e entoamos, emocionados, o hino, noutras ocasiões.

Fartamo-nos dos efeitos e permitimos que a causa faça o seu percurso. E exacerbe bitaites, e faça equações impossíveis, e nos afogue em ais, e nos reúna no escurinho (que o que não se vê não conta, é como os chocolates comidos às escondidas que não engordam), e nos faça esquecer que ao soutien e à gravata fomos ganhando até gosto e cultivando estilo. E, sobretudo, que de fartos que estamos da palavra - pois a causa foi fazendo o percurso que o cansaço deixou aberto - a passemos a usar como uma boa desculpa, numa incoerência que abre alas a tudo quanto é mau. Assistimos ao que se pode resumir, em poucas palavras, por simulacros de preocupação e eficiência misturados com oportunismo para mascarar incompetências várias.

Resistir, em tempos de guerra, de crise, de dor, é também não nos deixarmos vencer pelo cansaço. Tal como permitirmos que nos tratem de uma doença, como em princípio queremos, é sermos, e sabermos que somos, pacientes. Ao fim destes oito meses (meses, senhores, não são anos, não é 14-18, nem 39-45!) e com o que ainda falta até que a pandemia morra, das duas, uma: ou ajudamos a acabar com o vírus-culpado e seguimos a táctica acordada por quem tem de, e escolhemos para, governar; ou desculpamo-lo, deixamo-lo seguir o seu rumo sem remorsos, e não nos podemos queixar mais dele. Já temos um vírus, poupemo-nos à doença do cansaço de primeiro mundo, por favor. 

6.10.20

Rentrée académica

Mais do que em qualquer outro ano, a chegada dos caloiros à vida académica está a ser uma novidade. Partilham, de resto, com os professores e os estudantes dos outros anos, essa mesma condição. Talvez num zelo democrático nunca antes visto, em Évora todos começámos o ano com a mesma informação sobre como iria decorrer o primeiro semestre.

À complexidade da organização de um ano lectivo numa instituição,
veio juntar-se a complexidade de gerir a pandemia. Mas a experiência do semestre passado, quando se teve de assegurar as aulas em confinamento, funcionou como ensaio. Avaliada a experiência, ouvidos os intervenientes, tomadas todas as medidas possíveis, estamos preparados para que o efeito da pandemia não seja o pandemónio. Até pudemos testar que não haverá mal em equacionar que algumas disciplinas, ou cadeiras que é como se chama intimamente às unidades curriculares na universidade, possam passar de um sistema presencial, para um sistema semi-presencial (o chamado b-learning) ou mesmo online.

Com a primeira lição aprendida, lançámo-nos a todos os esforços para que fosse possível a cada docente e cada estudante ter um computador com câmara e boa rede. E com isto, finalmente, também poder haver, sem desculpas, assiduidade.
É bom perceber-se que não se perdeu uma oportunidade de se fazer uma transição inteligente para o “novo normal”, o que virá depois da pandemia. Aliás, o b-learning, os cursos on-line, ou a utilização das novas tecnologias na agilização da comunicação entre pares, no ganho de tempo e recursos que oferecem, já não eram novidade em nenhuma instituição de ensino superior. E, na minha opinião com conhecimento de causa, nenhuma destas práticas afastará, no futuro, as relações de proximidade entre os docentes e os estudantes, nem porá em causa a eficácia da transmissão do conhecimento. Ficarão guardados, esses contactos “ao vivo e em directo” mais pontuais, para os primeiros laços, para as emergências, para as comemorações, para as despedidas.

É, pois, com tudo isto, e mais a alegria de se borrifar a passagem do arco triunfal para o novo mundo académico, que se dão as boas-vindas aos estudantes e docentes neste surpreendente ano lectivo em Évora.

Ora bolas, que o borrifo fez-me perceber que nesta crónica lá me fugiu o dedo para a ficção!... Mas estarei sempre disponível para contribuir no sentido de também esta, e não só a malfadada em que parece estarmos a viver, ficção se tornar realidade. 

29.9.20

Um dos dilemas sociais

 O documentário que está a passar numa rede de comunicação e entretenimento privada, originalmente intitulado “Social Dilemma”, está a ser muito falado. Até, ou talvez por isso, nos que não usam as redes sociais ou, no outro extremo, que frequentemente nelas se esvaziam em confidências. E quando digo “falado” retomo a diferença, não assim tão subtil nem com novidade, entre “falar” e “dizer”. São desabafos, suspiros, exclamações: enfim, o que se “conversa” com muros, com a almofada ou de mãos postas ao céu. Tinha até muita curiosidade em saber se quem o faz, com o coração apertado perante o horror de se sentir invadido cada vez que partilha um pôr-do-sol, um acepipe ou um gatinho fofo, não será o mesmo que aplaude a ousadia do hacker Rui Pinto em devassar para, ao que parece, desmascarar a corrupção...


A manipulação de pessoas, a invasão da privacidade, as inconfidências são assunto tão antigo que já nos esquecemos de que é sobre elas que se trata, noutra escala em que o espaço encolheu e a conflitualidade, por isso, cresceu aos olhos de mais. E só voltamos a lembrar-nos, ou nos despertam para elas, quando se transformam em espectáculo: com enredo, cenário, personagens, guarda-roupa, efeitos especiais e banda sonora.

Confesso que não consegui ver o documentário até ao fim, sem o pôr a passar depressa: sem me trazer novidades, sobretudo do outro lado norte do Atlântico, o tom apocalíptico misturado com o drama pessoal de quem não aguentou entrar no lado escuro do negócio, talvez porque pensasse que ao tratar-se de coisas de ócio não tinham esse risco, cansou-me. Aprendo mais com um bom livro ou filme ou série. Daqueles que nos falam de casos fictícios em ambientes relativamente factuais do passado, ou os que experimentam cenários futuros projectando eventuais contextos construídos a partir do que sabemos do Presente.

O dilema, também social, é mesmo lidar com o Presente. Temos de o fazer todos os dias e seria bom conseguirmos fazê-lo usando algum do espírito crítico com que nos lançamos a avaliar o passado ou a vaticinar sobre o futuro... dos outros. Normalmente, a isso também se chama Educação, o substantivo desejavelmente mais comum, mas também próprio (no sentido da sua identidade complexa) que conheço. Usar as redes sociais é termos consciência de que não estamos sozinhos (e como isso até salva vidas e promove a saúde mental); é termos de saber como comportar-nos em público; é aprendermos a distinguir com quem nos queremos relacionar evitando dissabores - a nós, sobretudo, mas também, talvez, aos outros. E quando a nossa rede de relações cresce, até para o bem, isso pode ser um dilema. Habituemo-nos.

22.9.20

Os Trapos

 Falar do fim da vida, a partir das coordenadas em que a taxa de suicídios foi sempre macabra imagem de marca, não nos transforma nos maiores especialistas em como lidar com as soluções para quem vê esse fim aproximar-se. Mas pode ajudar. Torna-nos mais íntimos do que é essa realidade. Embora falar de fim de vida não signifique falar só de idosos, mas de todos quantos a têm ameaçada: seja pela doença, pela guerra ou pela fragilidade social. Coisas que roem. Com excepção da natural velhice, estas situações são complexas, com causas várias e difíceis, senão de prever, sobretudo de resolver.


Envelhecer, mesmo sendo natural e desejável, desperta muitas vezes as outras condições da doença e das dificuldades em continuar integrado na sociedade. (A vida é ela própria uma actividade de risco com prognóstico certo de morte, o que podia desafiar-nos para a aproveitarmos melhor. Porque nem sempre é possível, tantas vezes, perante a contrariedade exclamamos: é a vida! Mas exclamações não são desculpas, são o fim da linha de quem fez para que esse fim fosse o mais longe possível.)

Vivermos em lugares onde estas fragilidades são a realidade pode levar-nos a uma frieza que choca os que, à distância, têm delas visões adocicadas e românticas (no sentido de histórias com heróis que salvam e em que vai ficar tudo bem). Vulgarmente até dizemos que estes dão bitaites, são treinadores de bancada, para quem é fácil falar, porque não jogam, e só se interessam pela equipa do seu clube. Quando a desgraça sobe ao palco, incomoda, choca, e mobiliza durante o tempo do espectáculo, para depois a devolver aos mesmos de sempre: os que governam o todo, os que gerem os casos, os que vivem dos casos. E nestes há instituições que integram sistemas: são os que vivem para os casos. Aqueles cujo fim é plantar e regar uma árvore da qual nem sequer sabem se terão oportunidade de receber a sombra. Aqueles que terão de estar também atentos às dinâmicas do envelhecimento: os novos idosos, diferentes dos velhos idosos. Para que, em vez de ouvirmos que “velhos são os trapos”, passemos a procurar que se lhes diga que “qualquer trapinho lhes fica bem”. A eles e a todos os que precisarem de um apoio extra para viverem, com dignidade, muito mais tempo.

Para tentarmos mitigar as dificuldades em cumprir esta tendência, tão crescente quanto a idade média de vida, também vamos ter todos de começar a pensar mais cedo em nós próprios. É que os outros serão aqueles a quem, numa determinada altura, acabaremos por ter de nos entregar. Os outros somos nós, hoje, a tratar dos nossos mais velhos. Não vale a pena tratarmos o assunto só com... paninhos quentes. Poderemos pelo menos tentar não nos tornarmos a nós próprios gente mais difícil e escolher melhor as linhas com que nos cosemos.

15.9.20

Contra o que RÓI

 De volta às crónicas, renovo o agradecimento à DianaFm pelo convite que me permite dar-vos a ouvir e a ler a minha opinião.

2020 é ano que ficará na História pelas razões que normalmente assistem a essa marcação na linha do Tempo e que certos indivíduos, pateticamente, ambicionam, multiplicando-se em habilidades várias.

Mas são as guerras e as desgraças naturais, a par das descobertas científicas, que confrontam a Humanidade e a obrigam a crescer. São factos que se constituem como balizas para se contar o que já fomos, permitindo-nos acautelar, no que for possível, o que seremos.

Em simultâneo, nestes seis meses do meio do ano, assistimos ao nascimento de uma pandemia que abalou vários sistemas que tínhamos como confortáveis mas, pelos vistos, frágeis; assistimos ao ressurgimento dos ímpetos racistas com respostas reciprocamente violentas; assistimos ao reerguer do discurso do fascismo, rebocado por um espírito contestário mais destrutivo do que colaborativo, como isco para solução fácil de problemas trabalhosos. Trabalhosas são as muitas arestas com que a Democracia se depara, por ter de contar com a participação de todos, e cujo limar depende mais do indivíduo com carácter empático, do que daquele que, à volta do seu umbigo, apenas quer ter a vidinha arrumada, normalmente com jeitinhos de fazer inveja ao próximo.

E tudo isto com a Ciência a provar ao resto do Mundo que sim, que a dúvida, a tentativa e o erro estão-lhe humildemente na base, por muito que quem a combata faça do erro a poeira com que cega crédulos, e que estes se transformem instantaneamente em arrogantes sabichões para quem o remédio está em eliminar quem não creia.

É contra o que nos rói - acrónimo também do racismo, do ódio e da intolerância; é contra o que parece ter apanhado boleia da frustrante pandemia para fazer emergir do pântano esses instintos que para vingarem, têm de se vingar em alguém, que me baterei com as palavras que vos vou deixando por aqui. E que nestes dias se revestem do enorme desgosto de ver a Évora das três culturas - judaica, islâmica e cristã-, a Évora Património da Humanidade, a Évora candidata a Capital da Cultura, poder ser cenário de quem se congrega contra a diversidade, contra o Conhecimento, contra o que é a construção humanitária e a troca pelo pseudo-solução instantânea como quem troca o ensopado feito a preceito pela sopa de pacote. O que, como todos sabemos, só engana quem ignora como isso se faz ou, por outro lado, quem sabe que poderá ficar com o ensopado que os outros se contentarão, enganados, com a sopa de pacote.

É contra tudo o que rói que continuo a usar da palavra, também aqui. 

7.7.20

Os Próximos

Termina esta temporada de crónicas da DianaFM e partimos para férias. O I Grande Confinamento Mundial, que nos manteve, de formas diferentes, próximos de uns e longe de tantos, marcou-as. A situação inédita, de caso de vida ou morte, levou naturalmente a isso. E a muito mais. Destacaria a vitória da incoerência. Ou melhor, da incoerência como outro nome para “desculpas”, esfarrapando-as.

Fomos tratando vários assuntos a propósito do tema da pandemia, tema incerto e gerador de incertezas, audácias, arrogâncias, coragens e asneiras. Hoje deixar-vos-ei uma reflexão sobre a proximidade, talvez até para que se perceba como a tal incoerência é tão pandémica há tanto tempo e pode, por isso, causar danos a quem a descubra com surpresa e não se resolva com ela.

Ao contrário da incoerência, a proximidade é uma noção de contornos positivos. “Do bem”, diríamos para sermos melhor entendidos. Mas será sempre assim? Vamos conhecendo as suas possíveis definições e os contextos do seu uso ao longo das nossas vidas. Ou das vidas de alguns. Mais do que a demagoga proximidade alardeada por políticos de ambições locais ou paroquianas, que são na sua esmagadora maioria sinónimo de cunhas e jeitinhos, interessa-me agora a proximidade entre concidadãos. Mais: entre almas que se conhecem, pelo menos de nome, reciprocamente. Interessa-me, para terminar esta série de crónicas tão marcada pela intimidade do lar, a proximidade dos que chamamos família, amigos, colegas e conhecidos. Assim, dos teoricamente mais próximos aos mais afastados.

O I Grande Confinamento mostrou também quão relativa é essa proximidade. Dos que, pelos laços familiares ou outros (os jovens em Erasmus, por exemplo), estiveram juntos confinados, terá havido os mais ou os menos ansiosos por desconfinar juntos, ou a adiar o mais tempo possível voltarem a cruzar-se numa qualquer esquina. E a proximidade da família pode ter ganho outro significado, nessa procura do reencontro. É que há os familiares tipo empresa de eventos, que exercem a proximidade em baptizados, casamentos, aniversários e funerais, o que não é pior mas de quem não se podia esperar muito nestes tempos. No lado oposto, há os familiares que sempre foram de longe, que multiplicaram as videocalls, os grupos de chat, os telefonemas fora do horário habitual, como se tivessem estado sempre juntos antes, porque de facto estavam. E foi também com a tecnologia que se pode ter descoberto que conhecidos se tornaram mais colegas de ocupações e gostos comuns, já que do zoom à troca de e-mails foi um instantinho. Poderá ter havido colegas que estreitaram laços e se consideram agora amigos, pois as sessões ao vivo vieram multiplicar a vontade de manter o contacto que afinal nos mostrou a falta que faziam as conversas de corredor ou do bar. E, sobretudo, podemos ter descoberto os amigos que nos faziam muito mais falta do que só o encontro eventual e cíclico. Enfim, distinguiram-se, nessa presença conquistada ao Grande Confinamento, outras proximidades que se revelaram afastamentos: os conhecidos que só merecem o grau básico do civismo de um cumprimento, felizmente agora ao abrigo da “etiqueta”; os colegas que dispensam o contacto que ocupe espaço e tempo para além do necessário, roubando-os ao que realmente importa; as amizades que se revelaram com prazo de validade curto e feitas de matéria facilmente perecível; os familiares de uma genética tão ténue como uma árvore genealógica desenhada para um TPC pateta ou uma cabotina busca de um pedigree perdido.

Talvez estas observações e possibilidades sejam resultado de incertezas ou de audácia arrogante na análise simplista de coisas complexas que nem a oportunidade de retiro, para pensar, chegou. Só o tempo, como com o caminho do Corona vírus, e quase tudo o resto, o dirá. Para já, desejo o melhor Verão possível a todos - familiares, amigos, colegas, conhecidos e os nada disto que me acompanharam - e que os próximos (falo dos textos de crónicas agora) nos encontrem de saúde e com bons ares. Até lá.

30.6.20

A lição de Eneias e a exaustão pela COVID19

Ensinou-me um dos melhores académicos portugueses especialista em Estudos Clássicos, Frederico Lourenço, que a lição da vida de Eneias, o herói da epopeia latina Eneida, é que o importante para levarmos uma vida sábia não é termos o que queremos, mas querermos o que temos. Está bom de ver que só um herói consegue viver tranquilamente de acordo com tal princípio, até porque tudo à nossa volta parece empurrar-nos para desejarmos até o impossível. Além de que estes tempos mais próximos são e serão tudo menos tranquilos. Se a lição de Eneias nos pode fazer parecer uns conformadinhos sem sal, viver de acordo com a pressão contemporânea vai certamente continuar a transformar-nos em stressadinhos com muitas frustrações.

Toda a conversa sobre os jovens e a sua supostamente exclusividade de inconsciência no desconfinar é bem prova de que passamos a vida a arranjar desculpas. Ou, outro exemplo, as reacções ao estilo “guerras do alecrim e da mangerona”, com um pitada de Eça, para pôr na capital de um país a fonte de todos os males. Se não fosse um assunto sério, até dava vontade de experimentar uma cerca a Lisboa por 15 dias e ver “como elas mordiam”...

Isto parte da reacção à constante procura da culpa. Mesmo que seja só para disfarçar que, afinal, ela vai ter mesmo de morrer solteira, se não quisermos ter lá parte. E tem também alguma coisa a ver com as vozes e os ruídos concorrerem entre si para que quem tem de decidir decida. Uma consequência da Democracia, o mais trabalhoso dos sistemas de governo experimentado, o que mais nos faz termos o que queremos, mas também nos responsabiliza para cuidarmos do que temos.

Quando leio e oiço o que se diz de tanto mal sobre as possibilidades de algumas das práticas a que a pandemia nos obrigou, quase me esqueço do quão mal se dizia do que e como era antes. É um bom exercício, e não apenas de um nem sempre bem entendido conformismo.

Resumindo, usamos mal o que temos ao querermos logo o que não podemos ter. Vem um vírus e não somos capazes de dizer que a melhor alternativa ao castigo é sermos habilidosos em dar a volta à situação. Claro que cumprindo regras que custam quase tanto como castigos, mas a que nos habituaremos se, em vez do ruído em que muitos se empenham, ouvirmos as vozes de quem tenha pelo menos um objectivo: que se isto nos correr bem a nós, também lhes correrá bem a eles. É preciso é que corra mesmo bem! Não é fácil, nem está garantido, porque ainda assim os imponderáveis são muitos. De qualquer modo, em caso de vida ou morte, apetece-me mais obedecer em Democracia a quem represente instituições, do que armar-me em contestatária do sistema. Conseguiria dizer das instituições o que Frederico Lourenço dizia do herói de Virgílio, há dias, numa rede social: “Muitas outras coisas me fazem gostar de Eneias – pelo menos nos primeiros cantos do poema. Gosto da falta de egoísmo dele. Gosto da preocupação com o pai e com o filho. Gosto do modo como finge estar feliz perante os outros refugiados troianos, para não os contaminar com a sua infelicidade. Gosto da maneira como Eneias consegue ser (como se diz em inglês) «selfless» em vez de «selfish». Consigo solidarizar-me com alguém que vive em prol de algo que ele considera estar acima dele. O grande problema, claro, é a natureza desse «algo».”

23.6.20

Se não fosse a falta que faz...

Esta seria a semana que, em Évora, a Feira de São João estaria a “bombar” em pleno. Será, ao que consta, a terceira vez que nos quinhentos anos de existência ela não se realiza, novamente por questões de saúde pública como terá sido na primeira pestilenta vez, diz que rezam os arquivos. Para mim seria a trigésima Feira, numerozinho redondo a marcar o número de anos que levo a contribuir para a demografia do concelho e da região.

A Feira vai fazer falta a muita gente. Aos que com ela faziam negócio e aos que nela negociavam; mas também aos que nela faziam do ócio um lugar comum, sem lista de convidados a reservar o direito de admissão. Enfim, para todos, ainda que mais para os alguns com uns euros para gastar, e para os que se reencontram pelo menos uma vez por ano, em regresso esporádico à terra natal.

Vai fazer falta aos que dependiam em parte dela para se mostrarem aos outros, em acções de divulgação ou propaganda, lado a lado, em pé de igualdade no acesso a serem expositores por uma dezena de dias, embora havendo sempre mais matéria de alguma queixa do que motivo de louvor à entidade promotora. Também vai fazer falta aos que são pelas tradições, tal como fará aos que estão fartos do que é sempre a mesma coisa e lá vão, religiosamente, mais um ano acrescentar juros ao capital de queixa.

Alívio mesmo, deve ser só para dois segmentos deste velho mercado do feirar: o alívio dos que abominam este tipo de evento, ainda para mais a empatar o dia-a-dia; e o alívio dos que vão poupar uns milhares e muita mão-de-obra e hora extraordinária a distribuir, sem serem acusados de terem feito mal em suspender o evento (é a saúde, povo de Évora, é a saúde!), nem poderem dizer que a culpa é, como estaria bom de ver mais uma vez, do governo central. Uma chamada “win-win situation” onde, como nos altifalantes dos carrosséis e carrinhos de choque também se pode ouvir, quando apregoam: “As meninas não pagam! Não pagam, mas também não andam!” Enfim, se não fosse a falta que faz, para muitos, a Feira de São João não fazia falta nenhuma.

16.6.20

À Nação valente nem sempre, nem nunca

Lá fez o PR o gosto ao dedo organizando, da maneira que quis a mais exemplar das exemplares, a cerimónia oficial do 10 de Junho deste ano bizarro e sem graça de 2020. O ano em que se comemorou pela centésima vez o Dia. Quis que fosse simbólica e não fez senão, com isso, repetir exactamente o que são todas as cerimónias comemorativas: simbólicas. Lá se estragou mais um bocadinho o uso do adjectivo. É que não foi particularmente simbólica da data mas, parece-me, muito mais simbólica deste PR.

Marcelo quis tanto, na sua magistratura, fazer comemorações no território que adjectivou como espiritual de Portugal, mas a Covid19 veio, cheia de “toupet”, estragar-lhe a festa. Quase parecendo remeter a Metrópole à sua condição contemporânea e civilizada em que já não há cá colónias fantasmagóricas a evocar. Eu sei, eu sei que o princípio é não esquecer os Portugueses que criaram comunidades fora do território-mãe, de onde tiveram de, ou quiseram, sair, mas também me apeteceu fazer o meu “simbologismo espirituoso”. A coisa pôs-se-me a jeito. Teria sido na África do Sul, a do longo apartheid, e na Madeira, que amiúde reclama, em surdina e quando dá jeito, uma vontade independentista que tem tanto que se lhe diga.

A cerimónia valeu pelo rico e pedagógico discurso do Poeta clérigo, como também era previsível. A Covid veio confiná-la a um espaço simbolicamente perfeito: o mosteiro, lugar de recato, à beira do rio que foi cais dos que conseguiram daqui sair. No ano de 2020 em que Portugal tinha ao leme das comemorações do seu centésimo dia nacional um PR superstar, o super-herói da sociedade do espectáculo em que vivemos, assistimos à vanglória de quem, perante a contrariedade, habilmente tudo faz para manter o papel principal. A tempestuosa pandemia, o palco monástico, o discurso culto e humanista de José Tolentino de Mendonça (o melhor dos que tenho memória até hoje) de acesso difícil fora de certas elites, sem palmas. Tudo isto deu ao PR, por interposta pessoa, a oportunidade de brilhar como o melhor organizador de uma comemoração, que sempre quis popular, sem Povo. O melhor organizador de uma comemoração que pouco dirá aos que representam, da forma mais boçal, o Povo de que o PR se alimenta com as selfies e os insalubres beijinhos. A provar que se festeja por, pelo menos, três motivos: para não esquecer uma data precisa- o que não foi o caso; para alegrar os convidados - o que também não aconteceu; ou para enaltecer o anfitrião, provando que ele é que sabe como é que as coisas se fazem. Não foi de valente, mas serviu-lhe.

9.6.20

É crime e define um carácter, não é um direito nem uma opinião

Falo do racismo. Do que se perpetua, disfarçado de medo. Temos medo do que é agressivo e ameaçador. Receamos o desconhecido. Não podemos, nem devemos, fazer dos nossos receios e medos uma desculpa para julgar, sem provas, o outro. É isso que, argumentando com desculpas, faz o racista, mesmo quando não chega a vias de facto e faz uma conversa ligeira. Já só mesmo quando julga, pela diferença, a aparência.

Vivi em África, para onde fui com meses, até aos cinco ou seis anos. A minha mãe nasceu em África, o meu avô paterno nasceu em África. Da família materna, houve quem ainda regressasse à “metrópole”, houve quem já regressasse a Portugal, houve quem não regressasse. Como em quase todas as famílias, havia racistas, como houve quem desse cor à descendência que aumentou e enriqueceu a família com nova família. Mas nunca assisti ao fim do racismo, a não ser na lei, no papel.

O primeiro livro que li e que me fez chorar convulsivamente, teria 12 ou 13 anos, foi A Cabana do Pai Tomás de Harriet Beecher Stowe. Reli-o adultissima e pensei que, com aquela linguagem, literária mas uma estopada de época, só mesmo o enredo e o retrato daquela América esclavagista me podia ter feito chorar tanto.

Sou, sinto e vivi isto tudo, mas não sei do que estou a falar: sou branca e funcionária pública com vínculo ao Estado de um país democrático. Daqueles em que os eleitores vão ainda percebendo que ir atrás de personalidades que se autopromovem com o isco anti-sistema, o que sobrevive graças ao mantra “eles e nós”, só nos desgoverna. Tivéssemos nós dúvidas que aí estão, Trump e Bolsonaro, eleitos a fazer das deles e a esclarecerem-nos.

Posso tentar pôr-me na pele de quem nasceu negro e, nessa tentativa, reagir como seria cada vez que há uma injustiça só por se ser negro. Dificilmente manteria a calma. Dificilmente não gritaria, desalmadamente, para um dos “deles” que me fizesse sentir ou lembrar que eu era dos “outros”. Do que eu precisaria mesmo era de ter ao meu lado tantos quantos fosse possível. E é por isso que eu, branca, junto hoje a minha voz, aos gritos de todos quantos se sentem, porque são, maltratados, destratados, ignorados por serem negros. Floyd foi o último que conhecemos e acabou assassinado. Foi mais uma gota de água num copo que parece não parar de crescer e nunca parar de se encher. Sim, as tempestades justificam-se, e não são num copo de água. Vamos a elas, sem ódios. E sem ser para que fique tudo na mesma...

3.6.20

Expliquem-me a distância, por favor

Mais do que nunca se torna importante agora que as várias distâncias, relativas como o Tempo, sejam definidas e explicadas. Mas a explicação que está em falta também é a que se aplica ao ensino que faço à distância - eu na minha casa, os alunos nas deles - e que, ao que parece, passou a chamar-se “ensino a distância”.

O que estava errado na expressão ou no conceito usados por todos até 2020? Digo 2020 porque foi agora que o uso se generalizou e a estranheza da decisão assume contornos de ridículo, já que é preciso mais do que só virem dizer que é assim, e pronto. Já não estamos na época das versões “explicadas ao Povo e às Crianças” do antigamente. Todos os cidadãos têm direito a explicações completas. O que não tem sido o caso, já que as duas formas não são nem incompatíveis para significar o mesmo, nem uma está errada e a outra certa.

Porquê mudar então uma prática que não estava errada, segundo conceituados dicionários? Os linguistas não gostam de crases, que é o nome que se dá à soma da proposição com o artigo e resulta em à, com acento?
Ou “ensinam a distância” como quem “escreve a caneta vermelha” para corrigir os incultos?

Percebe-se que em 2020 a distância tem mesmo de se ensinar, por uma questão de saúde. O que o bom senso e as boas maneiras já o garantiam há muito, mas que, hélas!, não chegava a todos e era até conscientemente contrariada como uma agenda política ou interesseira. Mas hoje é manifestamente insuficiente esta imposição, que não consegue demonstrar o erro, só porque sim.

É, na minha opinião, politicamente incorrecto insistir no uso de formas de expressão e comunicação ambíguas. Até porque parece servir apenas para manter uma certo mau uso de pergaminhos, infelizmente muito em voga em elites de rastos. O que, como dizem os meus alunos, “é só” ridículo. A mim, nesta, não me apanham.

26.5.20

A Gorjeta

A oposição desconfinada na AR, e um pouco pelos “diversos lugares que ocupa em instituições da dita sociedade civil, regressou à habitual atitude pandémica. É a que trata de desatar a exigir na oposição o que quando foram, no caso do Governo central, ou são, nos governos locais, poder executivo não praticam. É uma velha táctica que resulta não só numa fórmula que alavanca actores políticos de fraca qualidade, como enterra eleitores que deixam, assim, de ir às urnas.
Desta vez foi, obviamente, cavalgando a onda da popularidade dos profissionais de saúde. Fizeram-no alimentando a necessidade popular de novos deuses, os que ganham visibilidade através de janelas para o Mundo, mas com vidros espelhados, dos dois lados, o que tolda qualquer possibilidade de uma relação duradoura. Os dois casos tratam, afinal, de gorjetas: a do recibo de vencimento de 60 euros dos enfermeiros que, estando de baixa, apenas reportavam as horas extraordinárias devidas do mês anterior; e a pedichince de um reconhecimento monetário para os médicos de saúde pública que estiveram destacados na batalha directa com o Covid-19.

O caso dos enfermeiros jogou com a fraca literacia de quem ainda lê resumos de notícias de jornais. E quem distribuiu o jogo foi a bastonário Cavaco. Jeitosamente, omitiu no alarde o facto de, estando esses profissionais de baixa, o recibo mensal não ser o do ordenado mas o da pensão, emitido assim por outro Ministério.
Já o caso dos médicos, não escondeu o facto de, na sua tabela remuneratória, haver uma quantia de três dígitos que prevê a recompensa da disponibilidade que os profissionais (médicos de saúde pública) aceitam para, em casos de necessidade nas instituições públicas que servem,prestarem os seus serviços para além dos limites habituais. Quantia fixa que recebem, portanto, sempre, haja ou não situações ou estados de emergência. Mas isso não impediu de terem representantes seus, até na bancada da AR, a pedinchar. E cito, de um artigo de semanário, o que se pede: “um modesto reconhecimento pelo sacrifício pessoal que estas mulheres e estes homens fizeram nesta pandemia” (Expresso, 22/05/2020). Isto num parágrafo em que, está bom de ver, no mais fácil estilo populista e demagógico, se fala de prémios a gestores e empréstimos a bancos.
Manda a educação, a que não é prioridade nos bancos das escolas, e o humanismo, que sejamos reconhecidos a quem nos serve e ajuda. Manda o civismo contemporâneo que não se utilize a condição mais confortável - pela informação ou posses relativamente privilegiadas - para humilhar os que mais delas precisam. Querer fazer-nos crer que o Estado aldraba ou que uma gorjeta resolve problemas, até inerentes a várias profissões que idealmente merecem ver resolvidos, é tentar humilhar-nos a nós, os que assistimos aos jogos de poder. E isso, mesmo numa partida de retórica, é batota.

19.5.20

Um educar miúdo

Hesitei entre dois assuntos de crónica. Os dois incluíam crianças. Um é caso que aquece instintos justiceiros que, com a mesma rapidez com que nascem, arrefecem e deixam pouco para memória futura. O outro envolve uma profissão que acompanho e de que, felizmente, conheço testemunhos directos ou em primeira mão. Decido-me por este, sem nunca deixar de pensar no outro, o trágico e inconcebível fora das tragédias míticas.

A reabertura das creches lá se deu, a medo. E não sem ter sido precedida do costumado rol de opiniões que qualquer um pode dar mais ou menos publicamente. Fazemo-lo a partir da nossa perspectiva, que estendemos ao interesse colectivo, seguindo o adágio do “não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”. Só que ao contrário, o que não é exactamente a mesma coisa. É aliás o que multiplica o “achismo” e torna raro o contributo, mesmo de quem opina de forma benevolente. É completamente diferente a disponibilidade de quem diz “faz aos outros o que gostas que te façam a ti”. Até a mesquinha invejazinha tem de se descalçar à porta.

Mais do que prestar atenção ao que dizem mães e pais, natural e felizmente preocupados (e que evitam tragédias), estive mais atenta a quem está na profissão, a quem forma os profissionais envolvidos e a quem está em formação para o ser. Com estes últimos, alunos de cursos de educação, lido frequentemente, embora para assuntos laterais à formação profissional mas, parecem-me, importantes à sua formação pessoal que, imagino, ponham em acção em contextos também profissionais.

Devo dizer que fiquei chocada com a falta de propostas, até criativas, de quem se espera que esteja na linha da frente de pensar alternativas aos hábitos instalados na relação de profissionais com bebés ou miúdos bem pequenitos. Percebe-se o momento de choque que paralisa, não se percebe que quem tem funções de direcção de serviços ou de desenho de modelos a experimentar e, eventualmente, a implementar em futuros casos semelhantes ou num futuro que permaneça nestas condições, prolongue essa paralisia inicial. E dois meses depois do choque ainda se ouviam vozes de responsáveis a “ladainhar” lamentos e demonstrando uma incapacidade gritante de se constituírem como parte da solução e contribuírem para a “segurança social” de que muitos ainda fazem parte.

O contacto físico é, sem dúvida, a expressão máxima do afecto. Ao ponto mesmo de a intenção contrária - tocar sem ser para demonstrar reciprocidade de afectos - levar muitos ao banco dos réus. E é não só instintivo em certas personalidades, como é promovido enquanto carácter essencial ao desenvolvimento da personalidade. São dados adquiridos numa cultura ocidental, extrovertida que mistura muito o privado e o público, garantindo muitas vezes que o afecto que não é recebido em privado, no seio da família (e que pode continuar com a Covid-19 entre nós), seja compensado por terceiros como os educadores e os amigos.

Pois chegou o momento de repensar a educação dos afectos, repensar que o simples e profundo gesto do beijo e do abraço que, convenhamos, até está tão banalizado que por vezes perde o seu significado íntimo para se transformar em gesto social. Essa demonstração de afecto terá de ser substituída em meio social, que as creches também são. À força, com choque, mas tem de ser. As palmas, o cu-cu do sorriso que se deixa por instantes aparecer num desviar da máscara à distância ou através da viseira, o piscar de olhos. E as palavras, claro, que vão ter de circular melhores, com sentido e sentimento, pensadas.

Todos sabemos que são muito mais os adultos que reclamam o beijo ao bebé do que o contrário, se bem se lembram de uma relativamente recente polémica que metia beijos, netos e avós... Pois parece mesmo que vamos ter de nos reinventar. Se não for quem trabalha na primeira linha da educação e quem equilibra o fazer ciência, com a variável “cada caso é um caso” a propor a reinvenção, então é porque estava algo muito mal até a Covid-19 vir estragar-nos a vida. A todos. Que haja quem faça alguma coisa, no exercício da profissão que abraçou até com um certo espírito de missão, sem ser só colocar obstáculos - que até é o oposto dos beijinhos, abraços e encorajamentos em que se tornaram especialistas - para resolver o que não queremos que nos aconteça. Nem a nós, nem aos outros.

13.5.20

Tuítar e ler na era dC

Tenho uns leitores/ouvintes muito simpáticos que, mais ou menos em privado, criticam os meus textos. São amigos e família que para além do “like” e do emoji enviam comentários apontando-lhes a densidade difícil. Agradeço muito esta atenção e aprendo sempre alguma coisa. Aprendo, por exemplo, o tipo de leitor que são e como tenho de tentar tê-los em conta. E há-os tão diferentes e com interesses tão variados.

Hoje a crónica é resultado de uma sugestão que me foi feita por uma muito querida leitora. Como é uma crónica também é o resultado de uma reflexão sobre o tempo presente. Sendo pessoa da leitura, também é sobre leitura. Gosto mais de falar do que sei, embora às vezes arrisque desmontar os assuntos, como se se tratassem de objectos que não sei como funcionam, para os tentar conhecer melhor e poder falar um pouco deles. Mas adiante.

Somos mais felizes se nos adaptarmos aos tempos do que se remarmos contra eles. Talvez fosse mais correcto dizer “cansamo-nos menos” do que “somos mais felizes”. (Agora terão talvez de voltar atrás e reler a primeira frase do parágrafo com a mudança das expressões entre aspas...). Alguns de nós preferem cansar-se mais, enquanto podem, para serem mais felizes.

Nos tempos que correm há mais gente a ler. Também há mais gente a ler tweets do que textos de 500 palavras. Gosto de tweets. E não gosto quando uma proposta minha para uma palestra é avaliada só através de 500 palavras. Há alunos de literatura que se queixam de que uma resposta em 500 palavras é pouco. Também acontece o contrário, mas esses normalmente não gostam tanto de ler literatura. Nem têm tanto a dizer sobre ela.

Sei que nem toda a gente tem gosto e tempo para ler literatura. Ou até só para ler um texto muito maior do que um tweet. E por isso cansam-se e distraem-se a meio dos textos. E até gostam do que estão a ler, mas distraem-se e cansam-se. O texto desencontra-se do leitor e, como um mau texto, não serve para nada. Mesmo que diga muitas coisas interessantes. Mesmo que muitas vezes o interesse esteja mais na forma como diz coisas que todos podem já ter pensado.

Com o passar do tempo, porque esta não é uma tendência só de agora mesmo, já deu para perceber consequências deste efeito. O efeito de cada vez nos darmos menos ao trabalho de ler até ao fim um texto mais extenso e menos óbvio. Esse efeito traz um defeito: é que já nem os textos mais curtos conseguimos ler e entender como merecem.

O combate à COVID19 parece vir demonstrar isso mesmo. Nem os tweets com indicações simples que diminuiriam a sua propagação são seguidas por muita gente. E mesmo os textos curtos, se facilitam a leitura rápida mas não têm efeito rápido benévolo, por vezes servem mesmo é a confusão e a desinformação. E a confusão e a desinformação servem a algumas pessoas, que serão sempre demais porque não são benévolas com os leitores.

O conselho que devolvo, recebendo a crítica benévola que me quer dar, amorosamente, mais leitores, também o vou dar em tweet: aproveite-se a menor distracção que os tempos COVID19 de confinamento proporcionam para transformar a perda de tempo de ler textos longos em investimento.

Ler nunca foi um acto fácil. Quem diz o contrário já se esqueceu do quão difícil foi, ao crescer, entender o que os outros diziam ou escreviam. Ler implica acompanhar raciocínios que muitas vezes não são os nossos. Isso é um gesto de interesse, nem que seja para discordar.

E é por tudo isto que eu gosto de leitores. Em particular os meus, que me lêem apesar de todos os meus longos e imbricados textos sobre assuntos de quem toda a gente, afinal, fala. Espero que um dia, esse esforço de uma leitura difícil, lhes sirva para alguma coisa. Obrigada.

5.5.20

Vamos lá ver se nos entendemos

Vamos lá ver se nos entendemos” costuma ser o início de uma conversa em que, partindo de pontos de vista discordantes, quem pronuncia a expressão tenta levar a sua opinião a melhor e põe a discordância sobretudo como uma dificuldade de comunicação. Não é aqui o caso, em que o assunto é a fase que se segue nos comportamentos sociais que vamos ter de adoptar, estejam ou não vertidos numa lei, num decreto ou numa ordem de serviço, já que quanto ao que nestes estiver não há forma de contornar sem prevaricar.

Entrámos na fase probatória de quem tem mesmo de se saber comportar em sociedade por uma questão de saúde. E, como sempre, isso tem a ver com a formação pessoal, a tal educação para além da instrução, que quando ausente por vicissitudes várias só se colmata com muita e exercitada actividade das celulazinhas cinzentas e um treinado gesto de empatia, que é o que chamamos à capacidade de pensarmos nos outros para além de nós, mas incluindo-nos também nos outros.

Do que se sabe sobre o vírus, e que a frustração da ciência diz que é pouco, já sabemos o que devemos fazer ou, pelo menos, o que não devemos fazer. A chatice é que, tirando as demonstrações de afecto que andamos há décadas a ouvir dizer que temos de ter com “o próximo” e que vamos ter de suspender, o resto até é coisa que todos sabemos que devia ser assim: água e sabão com fartura e ter consciência que o que sai de dentro de nós não é para partilhar com os outros. Asseio, portanto. Daquele que até achávamos que por ser demais não nos permitia ganhar anti-corpos, respaldados que estávamos com o adágio do “tudo o que é demais é erro”. E que depois tínhamos de explicar melhor quando o contrário, o “nunca é demais”, também era coisa de bom-senso.

Pois é disso mesmo que vamos depender: do bom-senso. Na esperança de que quem não esteja habituado a corresponder-lhe, mais dado a obediências ou, pelo contrário, a desobediências ao abrigo de uma noção muito própria do que é normal e fica bem, perceba finalmente que o que faz ou diz tem mesmo impacto. Primeiro nos que estão mais perto, e depois integrando um rebanho a que, por mais único e exclusivo que se ache, vai acabar por pertencer mesmo sentindo-se insultado.

Pensar nas circunstâncias e nos contextos ajuda muito a viver em sociedade. E a conviver. Mesmo que o medo, por exemplo e para não ser inconveniente, às vezes pareça impedir-nos de o fazer. Mais ainda: pensar ajuda, porque ajuda a entender. E é por isso que eu repito, qual oração mas sem poderes encantatórios: “vamos lá ver se nos entendemos”.

28.4.20

1.º de Maio em tom de elogio à classe trabalhadora dos Políticos

Sem dúvidas de que alguma vez venha a ser uma crónica caça-likes, para usar uma expressão das tão frequentadas redes sociais, não posso deixar passar a oportunidade do 1 de Maio para vir defender uma classe trabalhadora. Depois dos bombeiros em geral, depois dos profissionais de saúde em geral, se terem transformado em heróis colectivos - porque o ser humano anda sempre à procura deles - não corro o risco de estar a iniciar onda semelhante. Nem quero!

Esse tipo de onda também serve para escancarar a passagem a quem só espera o momento para ser esse herói sem ter sequer levantado o dedo mindinho para o merecer, a não ser apanhar a outra onda dos que vociferam que “qualquer coisa é melhor do que isto”. Os EUA e o Brasil podem ser-nos exemplos muito úteis.

É assim que, neste 1o de Maio, a minha palavra de reconhecimento, não desfazendo nas outras, vai para a classe política. E a ela pertencem não só quem ocupa os cargos que gerem colectivos maiores - Governos e Assembleias - como também todos os que exercem funções de gestão de instituições públicas, que vivem com o contributo de todos e, como tal, dispostas a servir todos o melhor possível.

Parece-me que esta é a única classe de gente que trabalha que nunca merece elogios colectivos. Muito pelo contrário. O que não só, na minha opinião, é injusto, como é mau ao ponto de também promover a atitude de mártires. Mesmo que não tenham a sorte, esses “wanna be mártires”, dos outros trabalhadores pseudo-mártires das outras classes que, a reboque dos mártires reais, se encostam a eles no momento das vénias.

O meu elogio é, pois, moderado, mesmo que reconheça o quão imprescindíveis são os Políticos. É afinal um elogio que tem um objectivo muito claro: que aprendamos, todos, sobretudo os que não se interessam nada por Política mas que, legitimamente, também não se coíbem de fazer o seu comentário mais ou menos informado, com um princípio elementar da Política e dos que a exercem com profissionalismo: em Política não se discutem casos, nem pessoas, discutem-se princípios e age-se em conformidade. Termino citando um líder de uma oposição responsável na sessão comemorativa deste 25 de Abril, um Político portanto, ao criticar posturas anti-democráticas, reveladoras de ingratidão: “o que é próprio de alguns homens é impróprio ao Homem”, ou melhor, corrijo agora eu, ao ser humano.

21.4.20

25 de Abril ou isso

Imagino que possa ter sido a inveja, pueril e por isso piedosamente compreensível, por não poder estar na AR a comemorar o 25 de Abril ao lado de alguns privilegiados, que levou a que muitos vociferem que este ano não devia lá haver comemorações oficiais da implantação da Democracia em Portugal.
Ou isso, ou a oportunidade para suspender simbolicamente o espírito de Abril, o tal que até passou a permitir vociferações. Ou isso, ou o orgulho ferido do zelo com que fiscalizam as cautelas do distanciamento social no seu dia-a-dia como acham, ou têm a certeza absoluta dos déspotas, de que mais nenhum cidadão do bairro o faz. Ou isso, ou a desconfiança de que um cidadão por 25m2 num lugar fechado permita a normalidade que conseguimos manter, evitando um ainda maior descalabro da economia e da saúde mental colectiva. Ou isso, ou o desejo de que a normalidade do trabalho de alguns, mesmo condicionada como acontece em muitos locais de trabalho, não possa conter momentos de celebração, como o são as comemorações do 25 de Abril na AR. Ou isso, ou o paleio de que os deputados não servem para nada, o que é argumento anti-democrático e diferente do “estes” deputados não servem para nada e que leva a alguns irem ciclicamente votar para que mudem ou se mantenham, que é o que permite também quem não vai votar. Ou isso, ou não ter percebido que entre 12 de Abril e 25 de Abril se passaram 13 dias, o que, no controlo sanitário e também social de uma pandemia, quer dizer alguma coisa sobre a gestão do Tempo. Ou isso, ou viver iludido de que são os festejos religiosos que invariavelmente dão oportunidade a um fim-de-semana prolongado que levam a ajuntamentos na Páscoa. Ou isso, ou não terem reparado que no Vaticano houve comemorações da Páscoa, tão fechadas ao público de fiéis este ano como, todos esperamos, serão as do 25 de Abril. Ou isso, ou não respeitarem o facto de que para muitos de nós as cerimónias transmitidas em espaços simbólicos, seja uma basílica ou um parlamento, ouvindo homilias ou discursos políticos, tão oficiais uns como outros, são também uma forma de continuarmos a comemorar. Ou isso, ou estarem-se nas tintas para toda e qualquer comemoração simbólica, de qualquer espécie, porque o que importa é a sua vidinha, com o menos chatices possíveis pois claro (quem não?!). Mas para isso não vale a pena terem trabalho a vociferar. É que se arriscam a parecer mais comentadores de bola do que defensores de princípios como o do cumprimento da lei.
Posto isto, é isso mesmo – o cumprimento da lei – que eu espero ver no dia 25 de Abril de 2020, dentro ou fora da AR. Sem beijar de cruzes. Desculpem, sem ajuntamentos festivaleiros. Quanto a mim, que é o que menos importa porque continuo a assistir pela TV essa, este ano única, comemoração da Democracia, sabe-me bem, poder ouvir mais gente a dizer “25 de Abril sempre” do que uma qualquer atoarda mais moralista do que intelectual, mais tribalista do que nacional. Ou isso, ou mais nacionalista do que patriótica.

14.4.20

Uma crónica sobre tapetes 3

Hoje a crónica é também sobre um tipo de tapete que vamos ter de passar a usar muito mais: o mouse-pad, ou seja aquele tapetinho em que movimentamos o rato do computador para vermos, ouvirmos e falarmos através dele. Vamos, quero dizer, nós os que temos que, ou queremos, manter contacto com o mundo sem presenças perigosas para a saúde pública.

Pouco mais de metade do mundo já está relativamente preparado para a ubiquidade da comunicação: ao mesmo tempo, em lugares diferentes, o mesmo discurso. Discursos que, depois, se podem revisitar ipsis verbis, assíncronamen te. Mais do que hardware, skills, pads, IPads ou outros confortos que, finalmente, possam vir a ser ferramentas e não luxos ou negociatas (talvez Magalhães seja mais do que nome de circum-navegador na nossa memória e se faça justiça retroactivamente); mais do que isto que é o básico, obrigatório e imprescindível, e que todos os responsáveis por orçamentos não poderão empatar (sob pena de algo não estar a bater mesmo nada certo nesta democracia), o que importa é que quem use e usufrua deste universo tecnológico esteja consciente do que vai estar em causa. Em público e em privado fazem-se e dizem-se coisas diferentes. É disto que estamos mesmo a falar: um muito maior escrutínio do que já não se faz só dentro de uma sala, já que a privacidade é apenas um pressuposto facilmente deposto.

Que os novos utilizadores das tecnologias, depois do b-a-ba inicial, aprendam as outras regras do comportamento em público. Sob pena de passarem por vários adjectivos: do preguiçoso ou medroso ou altivo - para quem não intervém no mesmo plano - ao tonto, fala-barato ou provocador - para quem parece não medir o que diz ou quando diz, em público.

Todos quantos passarmos a deslizar neste plano tecnológico, somos chamados a fazê-lo consciente e criticamente, sem qualquer espécie de atitude passional que o imponha a tudo e todos, a toda a hora - é que ao discurso fora do contexto real chama-se delírio e a tal ubiquidade da internet propicia-o; ou numa atitude religiosa, que o considere o milagre salvífico da Humanidade. Para isso continuamos a ter Deus, naquela relação que o desassossegado Pessoa nos descreveu: “Nasci num tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido – sem saber porquê.”