26.2.13

COMER

Hoje hesitei entre fazer a minha breve crónica sobre a banda sonora que, nos tempos que correm, acompanha os membros do governo, o que muito estranho pois cresci a ouvir a canção que era de todos e a extrema-esquerda privatizou, e o assunto da carne de cavalo, cruzado com a questão da segurança alimentar, para chegar ao fenómeno a que chamo “a fúria da cozinha”. Optei pelo segundo assunto por achá-lo muitíssimo preocupante para todos os cidadãos, independentemente destes se preocuparem ou não com as opções, atitudes e aptidões do governo ou dos seus opositores.

As informações da senhora bastonária da ordem dos veterinários de certa forma descansaram-me, já que a substância química que poderá estar presente na carne de cavalo não é, nas quantidades normalmente ingeridas por pessoa, perigosa para a saúde. Eu só fiquei espantada é por poder comer, sem saber, carne de cavalo, já que sempre achei que um cavalo era mais caro do que uma vaca ou um porco. Quando foi da polémica das minhocas para hambúrguer, já achei mais provável, pois minhoca deve ser bicho baratinho de criar.

Também não faço parte daquele grupo de pessoas avessas à origem dos alimentos menos usuais para o comum dos portugueses, muito embora, confesso, o aspeto e o cheiro da comida possam influenciar a minha vontade em provar alguns produtos. Mas fico e estou muito preocupada com o controlo da qualidade da comida a que temos acesso e custa-me muito pensar que poderemos correr o risco de nos envenenarem aos poucos, com consequências terríveis para a saúde, sobretudo dos mais novos. Porque cresci com a história dos azeites que teriam vindo de Espanha em mau estado e porque me lembro de me contarem relatos de marcas multinacionais de leite em pó que terão causado a morte a recém-nascidos e bebés na África com fome por má utilização. Andar a comer carne de cavalo julgando que é outra carne não me descansa nada quanto à informação prestada por quem a comercializa. Estaremos mesmo condenados a ser e a criar seres desconfiados com tudo e todos?

Por outro lado, também tenho reparado que na televisão, canal aberto ou cabo, há cada vez mais programas relacionados com comida e cozinha e tachos. Concursos e séries, que são uma espécie de inspeções violentas em forma de espetáculo, saltam a diferentes horas pelo ecrã. Numa época em que há também cada vez mais notícias de gente que passa fome, parece tortura. Como se a comida e a alimentação fossem motivo para momentos de evasão, como assistir a séries e novelas em que ficamos a sonhar com a vida dos ricos que ali vemos representada…

Enfim, tempo este tão estranho em que muito do que é escrito não se lê ou se treslê, em que a denúncia se entretém com o riso, em que a contestação se junta ao espetáculo não especialmente artístico, em que o estudo e o conhecimento se reduz a ter ou não ter “canudo”, em que o silêncio se parece transformar não no consentimento mas numa forma de prudência para não se ser preso por ter ou não ter cão, em que a esperança se confunde com o conformismo ou autopromoção. Não gosto nada disto. Acho que preciso de me, e vos, contar o meu mundo, que farão o favor de ir escutando à distância de um botão on e off, e perceber se desse lado há alguém que se sinta assim.

20.2.13

OPINAR

Desde há quase 40 anos que os portugueses têm podido opinar livremente em diversos fóruns. Até com o aparecimento das redes sociais esse direito, e o seu exercício efetivo, têm permitido que cada vez mais pessoas opinem num espaço mais ou menos público para além dos espaços mais formais como são os órgãos de comunicação social. É certo que há opiniões e opiniões, algumas mais relacionadas com a vida de cada um, ou uma, e sobre questões mais existenciais, aquelas que dificilmente serão resolvidas por alguém de características heroicas ou providenciais. Mas também são estas questões que, quando ultrapassadas por quem as sofre, faz de cada um, ou uma, um herói do quotidiano.
Depois há opiniões que são fruto de primeiros impulsos, são quase reações primárias que, normalmente, pecam por falta de reflexão e podem ser contrapostas com igual verve e de forma igualmente impulsiva por quem esteja em situação diametralmente oposta. Estas são mais arriscadas para ocuparem o espaço público, mas habitualmente são usadas pela comunicação formal dos media como grandes parangonas, as chamadas, “gordas”, já que também da função apelativa da linguagem vive este setor da comunicação. Os artigos de opinião são sempre um risco para quem os produz e, talvez também por isso, é que muitas vezes há opiniões que se escondem por trás de pseudónimos ou do anonimato, formas mais ou menos “contorcionistas” de evitar esse risco. O sistema permite-o e torna-se quase banal conviver com ele.
Por outro lado, a opinião quando não é sobre as tais questões existenciais e, por isso, apenas resolúvel pelo próprio indivíduo, reporta-se quase sempre a ações de outrem, normalmente de quem tem poder para agir e essa ação ter algum impacto no espaço público e na vida de um determinado coletivo.
Ora se em épocas mais recuadas, de há alguns séculos atrás, a discussão sobre qual a maior eficácia entre a espada que trespassa ou a pena que fere com as palavras que se jorram no papel nos destinos quer individuais quer coletivos, essa discussão, na evolução civilizacional da humanidade, atingiu um estado tal que nunca se discutirá que a diplomacia poderá ser precedida da solução armada. E isso veio dar à escrita, ou melhor à prática verbal, um lugar central em ajustes de contas, medidas de angariação de opiniões idênticas e, muitas vezes, formas de acabar com ações que são desmascaradas por esses alertas verbalizados mas que, consequentemente, são verificados ou verificáveis em outras ações ou opções diferentes. Estas são as opiniões fortes, consistentes, informadas, frontais mas profundas, que são assumidas claramente por quem as emite e por elas dá a cara. Normalmente, estas opiniões fazem escola, uma expressão que nos mostra muito claramente como a educação pelo exemplo, o exemplo da coincidência do discurso sólido com a prática de quem o profere, é importante. Aceitar ou contrapor este tipo de opinião é, julgo eu, apenas possível, ou pelo menos apenas vale a pena ter em conta, quando quem opina está em condições à partida de alguma semelhança: conhecer o facto sobre o qual se opina, optar por um lado para se posicionar ou avançar outro alternativo ou ainda, eventualmente, assumir a incapacidade de se encontrar num beco sem saída. Mas acima de tudo, opinar significa e tem como primeiríssima condição assumir-se enquanto autor dessa opinião ou, também aceito, opinião de um coletivo do qual se quer fazer parte sem destaque individual ou com esse destaque muito claro. Longa vida à opinião e a quem a exerce!

FOLGAR

Porque hoje é dia de Carnaval é mesmo dele que vos vou falar. Em Évora há muito que não há o chamado corso de Carnaval. Lembro-me de há mais de 20 anos ter visto um, daqueles híbridos entre o traje de verão do Brasil em mocinhas tiritantes e máscaras mais ou menos brilhantes à Veneza e até com a trapalhice de figurões que pareciam sobrar de trupes mais popularuchas. Lembro-me até de um ano em que por essa época o tempo não ajudou e adiou-se o desfile para ter lugar já em plena Quaresma o que, mesmo para quem como eu não pauta o seu calendário pelo litúrgico, pareceu no mínimo ridículo. Enfim, o mais próximo do que será um caos permitido serve para extravasar energias antes de se retornar à contenção do que é o quotidiano de regras que permitem, ou devem permitir, uma convivência mais ordenada.

Temos em Évora uma preciosidade cultural que são as Brincas de que até já vos falei nestas crónicas no ano passado por esta mesma altura. Se brincar ao Carnaval significa perpetuar uma tradição, a verdade é que há sempre um espaço para uma falsa novidade que são as piadas em torno dos políticos. Piadas em forma de gigantones nos ditos corsos e desfiles, ou bocas mais ou menos engraçadas que os palhaços que atrapalham, ou melhor tentam atrapalhar, a encenação e desempenho do fundamento das Brincas, fazem.

Como os programas de análise política e os comentadores de sucesso de TV e Rádio, independentemente do calendário das festividades, fazem atualmente constantes graçolas sobre os políticos – e alguns põem-se a jeito, é verdade – supunha, e ainda não perdi a esperança de ver ou ouvir, que este ano houvesse efetivamente alguma novidade nos corsos de Carnaval. Para além dos adiamentos durante o fim-de-semana por motivos meteorológicos que também não são novidade e que espero sinceramente que hoje se resolvam, para além da ausência de dispendiosas figuras públicas que têm atravessado o Atlântico para tiritar connosco de coroa na cabeça, estava à espera de ver desfilar os banqueiros e empresários portugueses, que vieram ao longo deste último ano entre carnavais fazer intervenções em espaço público, e que me pareceram dignas de serem respondidas também em críticas de desfile de Entrudo.

Resumindo, julgava que aos políticos era dada alguma folga. Não porque ache que não haja motivos que permanecem e vêm desde tempos longínquos para os criticar, apesar de as mais finas e imaginativas críticas tenham sido, na minha opinião, as caricaturas à política mais do que aos políticos. Nem muito menos por exercer desde há mais de três anos um cargo político. Quem não quer ser lobo não lhe vista a pele. O que me parece, e estou pronta para discuti-lo, ou melhor ainda por agir de forma e conforme, é provar que não há só Lobos Maus… e os Capuchinhos Vermelhos não são todos puros!

10.2.13

RETRATAR

O retrato escondido da Rainha Isabel II, em que a monarca aparecia com um pescoço esquisito, é o tema desta minha crónica de hoje. Tema que veio a reboque na imprensa britânica por causa de outro retrato, o de Kate Middleton, a mais recente “estrela” da monarquia britânica. A imagem é sem dúvida um assunto a que o poder, ou candidatos a ele, dão muita importância, mesmo quando, no caso da monarquia, não há muito por onde escolher e o retrato não é seguramente um fator determinante na lógica de sucessão. E ainda assim, conta. O aspeto físico que o retoque da pintura, como o trabalho de Photoshop, recompõe o modelo deve corresponder a visões que se assemelharão muito, julgo eu, às orientações de agências de comunicação e publicidade. E se, no passado, os retratos da realeza serviam até para melhor contratualizar casamentos, então é porque de facto a imagem servia, e continua a servir, para cativar.

Toda esta conversa pode parecer muito estranha em tempos de crise, todo o assunto muito típico de uma velha Europa muito pronta a defender tradições de uma forma que, ao invés de se adaptar aos tempos e portanto ceder ao lado dinâmico da vivência humana cultural, se enquista em práticas anacrónicas em nome da defesa da tradição. (E estamos até a ver, desde a última intervenção urbi et orbi do Primeiro-ministro britânico, o quão especiais podem ser os da ilha em relação ao resto da tal velha Europa.)

Não sei de causas, nem efeitos, nem abrangências pelas “tribos” deste mundo afora, das diversas tendências neste tipo de comportamentos, até por não ter formação em antropologia que me permita falar com propriedade sobre o assunto. Mas observo o mundo à minha volta, recebo este tipo de notícias e contacto com gente tão diferente que, com alguma segurança, me permito afirmar que a imagem conta para todos. Mesmo para aqueles que aparentemente, e dentro de condições ditas normais de espírito, se mostram muito displicentes em questões como essa das aparências. Este assunto dos retratos não tem até nada a ver com a vaidade dos retratados. Há por aí muito “peru” ou “pavão” que nunca foi modelo de nenhuma natureza morta ou paisagem campestre…

O que a história do retrato da rainha me suscita é a reflexão sobre o empenho que toda uma corte tem em cuidar dessa imagem, como se a partir dela e desse cuidado se evitassem todas as críticas às imperfeições que os comportamentos possam vir a ter. Cuidar da imagem através de um retrato é como revelar, no sentido bíblico, a personagem retratada. É lançar um véu sobre as imperfeições para que se mostre apenas o seu melhor lado. E se isso não faz história por ser tão banal, o seu inverso é motivo de notícia e fait divers, que por vezes perdura nas estórias à volta da História com maiúscula.

O que também é interessante nesta historieta de rainhas e princesas e retratos é como a arte, apesar de estar por vezes, muitas vezes, ao serviço do poder, também precisar do tempo para se assumir nos seus arroubos inovadores. Se o retrato da velha rainha enquanto nova parecia esquisito à época em que foi pintado, passados todos os movimentos artísticos mais ou menos arrojados, e perante um inovador retrato da jovem princesa deste tempo que faz notícia também, aparece agora ao Povo como uma dádiva da casa real inglesa em prol do rigor sobre a sua própria história.

Não imaginam os meus caros ouvintes como estou contente por não ter deste tipo de folclore, e uso a palavra no seu sentido de prática tradicional, numa República em que, mesmo com gente até muito compostinha, não se apressam a medir os governantes, ou se preocupam os humildes plebeus em medi-los, em função do retrato físico. Parece-me a mim…