28.3.16

Multidões e Silêncio – crónica em fim de Quaresma

Tivemos mais um Março violento de acontecimentos que, tendo sido em países estrangeiros, nos afectam enquanto parte de um todo, nem que esse todo se divida em duas áreas mais específicas: a Europa e a Democracia. O atentado em Bruxelas, que não matou mais do que os que morrem às mesmas mãos noutros continentes todos os dias, trouxe o terrorismo para ao pé de nós para que uns encontrassem num qualquer céu as virgens prometidas em troca de outros poderem encher-se do poder que faz o mundo girar. As manifestações no Brasil, onde não parece haver virgens em matéria de “mãos untadas” que usam o poder para fazer girar o seu pequeno e privado mundo, expôs-nos às dificuldades de fazer vingar a Democracia a sério, e num promissor País tão novo nela.
Mas para além de todas estas questões sociais e políticas, tão importantes para a Humanidade em geral, é ao nível do indivíduo, e em cada um de nós cidadão-comum, que se voltam a criar sentimentos vários e confusos. Não só porque nem a todos apetece passar por esta vida sem se preocuparem com o resto para além do que a si-próprios diz respeito, como - a avaliar pelo rumo da escalada de violência que recomeça, evocando a barbárie da terra sem lei em que já se viveu, por muito distantes que sejam os acontecimentos - isto está tudo ligado e algum dia virá bater-nos à porta. Para além de que, se quisermos ser ainda e só cidadãos-comuns mas empenhados em exercer essa cidadania, importará viver, ensinar a viver e deixar viver de acordo com os padrões civilizacionais de que já não desejávamos, nem prevíamos, retrocessos.      
Para além das ruidosas manifestações de quem se indigna e dos silêncios que, a respeito da memória das vítimas, vamos demonstrando indignados na nossa consternação, começa a ser difícil encontrarmos o modo de nos contarmos às gerações que nos trouxeram até aqui e, bem pior ainda, às que ficarão depois de nós partirmos. A educação como transmissão de valores, como abertura de caminhos a formas de pensar, agir e criar, começa a esbarrar com extremismos que nos toldam uma existência que, eventualmente, se desejaria moderada, construtiva, tolerante. Ao ritmo a que a Natureza nos ensinou a reagir ao caos para dele fazer Vida.

O Vergílio Ferreira aconselhava assim: «Falar alto para quê? Poupa as forças, fala baixo. Poderás talvez assim ser ouvido ainda, quando os outros que falam alto se calarem estoirados.» E, pergunto-me eu: e se todos cairmos estoirados, uns de tanto gritar, outros de tanto calar? E se os gritos de uns e o silêncio de outros, entre a multidão e a morte, não nos deixarem aproveitar a vida para além da sobrevida? As dolorosas dúvidas, de que podemos ir fazendo uma espécie de luto, talvez só se apaguem com aquilo que nos faz ir acalmando a dor: o tempo e o amor que dispensamos e nos dispensam. Mas e quando é em nome desta espécie de deuses – tempo e amor -, ainda que falsos mas bem, muito bem, disfarçados, é que a dor se faz? Tenho para mim que há uma única resposta à pergunta que nos resume por estes dias – “onde é que vamos parar?”. É que não pára. Nós é que saímos dela. E essa é a boa notícia. Afinal, celebrar a Páscoa teria que nos ensinar qualquer coisa, não?

22.3.16

Da humildade ao orgulho

As palavras e os conceitos também são como o tamanho das saias e a largura das calças, e até os mais universais assumem, como o estilo clássico, variantes e ocorrências que parecem tendências do pronto-a-vestir. Confesso que acho o facto divertido (não valia a pena entristecer-me, o que até podia acontecer) e mesmo muito estimulante no jogo das interpretações de que alguns conhecem as regras. Duas dessas palavras que tenho ouvido muito, e estão ao que deduzo na moda, são humildade e orgulho. Às vezes até sentidas por, ou pelo menos a designar sentimentos de, uma mesma e só pessoa. Todavia elas são, na sua definição mais básica, profundamente contraditórias, mesmo se a humildade for uma obrigação óbvia perante algo realmente maior, ou se o orgulho nascer à boleia de uma simpatia convencional. Das duas, uma, e numa situação simples e sem rodeios: ou esvaziamos de humildade ou inchamos de orgulho. Parecia-me haver aqui motivo de reflexão, o que lá fui fazendo.
À distância de um clique, podemos encontrar várias definições para os dois conceitos. Sem evidentes controvérsias, uma definição de humildade pode ser a da “qualidade de quem age com simplicidade, uma característica das pessoas que sabem assumir as suas responsabilidades, sem arrogância, prepotência ou soberba. (…) uma qualidade bastante positiva e benéfica, onde ninguém é pior ou melhor do que os outros(…). (…) um sentimento de extrema importância, porque faz a pessoa reconhecer as suas próprias limitações, com modéstia e ausência de orgulho.” Já orgulho, de que aliás se sugere logo a seguir a consulta, surge como “um termo pejorativo quando se refere a um sentimento excessivo de contentamento que uma pessoa tem a respeito de si mesma, de acordo com as suas características, qualidades e ações” e, quando “se refere à dignidade de uma pessoa ou ao sentimento positivo em relação a outro indivíduo, o orgulho é um sentimento positivo.” Posto isto, dizermos que somos humildes é sermos orgulhosos num mau sentido. Termos orgulho em alguém é sermos humildes perante essa pessoa, reconhecendo-lhe talvez até um valor superior ao seu, mas por fruto da nossa própria avaliação. Não é simples, nem tinha de ser. Dá que pensar, que é o que se deve fazer antes de falar em determinadas situações, nomeadamente em público.
O Vergílio Ferreira dizia que «Há muita gente que é um poço de orgulho. Só não tem águas para o alimentar.» Presumindo que aqui se possa até espelhar o orgulho noutrem (eu sei, eu sei que o tiro seria mais certeiro e mordaz, mas adiante) subsiste o perigo deste orgulho bom se transformar em menos bom por menos altruísta. Numa situação, por exemplo, em que a pessoa que se orgulha se mistura com os feitos do outro, como se ela mesma fosse o outro, enchendo o seu poço com águas alheias, portanto. Mas enfim, diz quem sabe, que é quem estuda personalidades e comportamentos, que estes casos são raros pelo que devemos, às tantas, ficar tão só e humildemente contentes e agradecidos quando alguém fica orgulhoso com o que fazemos, sobretudo quando os envolvemos no motivo desse orgulho.   
Nada do que aqui fica dito, provavelmente, mudará hábitos de expressão que, tantas vezes, adquirimos sem pensar muito neles. Mas como se costuma dizer que o diabo está nos detalhes, o alerta pode vir a ter a sua utilidade.

14.3.16

Manhas

Estamos num país em que daqui a pouco todos nós, sem monopólio só de alguns, vamos poder celebrar mais um ano Abril e a Liberdade. Estamos no Alentejo, onde antes se tingiu de vermelho uma população que gritava com a cor o que a voz calava. Estamos numa sociedade em que todos, e cada qual, ganharam a possibilidade e os meios de poder dizer ou escrever, poder-se fazer ouvir ou escolher não o fazer, numa rede de comunicação acessível e sem filtros. Pois estando nestas circunstâncias, não é que se fala, a propósito do que diz uma só alma do Alentejo e dos que cá nasceram e gostam de o lembrar, em queimar um livro ou espatifar o seu autor?
Não me admiro com quem destile um pouco de indignação como uma interjeição, e não me espanta que o faça quem costuma também ocupar a vida fora das modernas redes sociais a opinar sobre tudo o que lhe parece, mesmo não sabendo o que é. Posso perceber que o faça quem não tenha o poder de utilizar o poder que tem ao seu alcance de ignorar, e utilize, elaborando-a em palavras, a reação mais básica, e dizem que saudável, de quem atira um valente palavrão depois de uma topada do dedo mindinho do pé na esquina do móvel. Mas não entendo quem se dê a tanto trabalho por algo que quer ver desaparecer ou tornar insignificante.
Talvez seja por me sentir mais da Humanidade do que da longitude cruzada com a latitude. Talvez seja por gostar de me encontrar gestos, expressões, práticas que reconheço comuns a alguns com quem cresci, ou com quem convivo há anos, e diferentes de outros com quem escolho estar. Talvez por estar numa fase em que os filhos, frutos do que também deles fiz, normalmente optam depois de pensar e que, quando não o fazem, ou reconhecem uma sorte irrepetível ou reconhecem a má escolha em si antes de a procurar nos outros. Talvez por não me sentir ofendida quando me insultam aqueles de quem um elogio me faria desconfiar muito mais do que ao insulto. Talvez pela intolerância com as minhas imperfeições que me fazem tolerar as imperfeições dos outros, o que não quer dizer que me queira misturar com quem obviamente não se quer misturar comigo. Talvez por tudo isto, ou por algo que não consigo explicar, mais do que ouvir só mais um a dizer umas coisas, fiquei espantada com a onda de indignação contra um cronista que escreveu um livro e que alguns, ainda não o tendo lido, vilipendiam, dando-lhe um capital de queixa equiparado ao do nosso Nobel da Literatura em tempos de um tal Sousa Lara, num Abril dos idos anos de 1992, a propósito do Evangelho Segundo Jesus Cristo.

O Vergílio Ferreira, que tinha esse tremendo hábito de pensar e de, depois de o fazer, escolher bem as palavras para o dizer, escreveu uma vez este pensamento: «Para ajuizar do que é inferior é preciso ser-se superior. É por isso que um imbecil facilmente se julga um génio.» Duas frases que não deixam de fora nenhum dos protagonistas de mais um episódio em torno dos livros em Portugal. Isto diz bem da falta de educação, também literária, da nossa Democracia. Mãos à obra, então!

8.3.16

Dia de Mulher

Foi por pouco que deixei passar em branco a coincidência do dia da minha crónica, a única das desta rubrica com voz feminina na Rádio Diana, com o Dia Internacional da Mulher. Parece-me, apesar da desmemória apanhada a tempo, um bom sinal para mim. Revela a minha sorte em não sentir, pelo facto de ser mulher, nenhum tipo de discriminação. Revela que me dou com pessoas que não acentuam esse facto como o meu maior traço distintivo de identidade no meio social em que me movo. Ou, pelo menos, eu não dou por isso. Mas há quem dê, e por isso vale a pena comemorar o dia.
Apesar da rotina pessoal quase fazer-me esquecê-lo, é tão mais importante esta celebração internacional quanto, também fruto da sociedade de informação em que vivemos, continuam a chegar-nos factos em notícias sobre discriminação e abuso que, não podemos ignorá-lo, em nada fazem jus à evolução civilizacional que vivemos e a que chegámos. E é aqui que também percebemos que, paralelamente às diversas etapas das conquistas técnico-científicas pela Humanidade, o relacionamento humano, na intimidade e em sociedade, corre numa linha mais lenta. O papel que muitas e muitos tiveram no passado, deve servir-nos de exemplo e requer a homenagem deste dia. É de olhos postos neles que teremos de corrigir o caminho, apressando-o, para que essas duas linhas se encontrem em etapas mais evoluídas do futuro da Humanidade.     
Ao afirmar que «A mulher escolhe sempre o homem que a escolhe a ela, como é da sabedoria das nações. A verdade também.», Vergílio Ferreira, com uma piscadela de olho à expressão de Simone de Beauvoir, parece apontar uma reciprocidade que esconde tantas vezes a diferença, ou melhor, o castigo da diferença. Beauvoir, mulher de Sartre, num livro cujo título inclui esta expressão da “sabedoria das nações”, desmonta sentenças que continuamos a ouvir ainda da boca de homens e mulheres e que mostram como a consolação da mentira e da resignação, ditas com tons de sabedoria, em nada contribuem para a grandeza da Humanidade. São expressões como "O homem procura sempre o seu próprio interesse", "A natureza humana nunca mudará" ou  "Ninguém dá nada a ninguém" e "Enquanto se é novo, é tudo muito bonito"… Lugares comuns como dados adquiridos, que exprimem uma visão do mundo incoerente e cínica e que devemos combater, segundo os Existencialistas.

É que a confiança no Homem não pode deixar-se derrotar pelo senso-comum, já que o rumo da Humanidade está nas suas próprias mãos. E é por isso que o que está mal nas ainda demasiadas situações de discriminação de algumas mulheres, às vezes comunidades inteiras, é assunto de mulheres e homens, é assunto da saúde da Humanidade.