29.3.22

Ninguém disse que era fácil e rápido

Junto-me aos que festejam o facto de o contador dos dias em Democracia ter ultrapassado o do “tempo da outra senhora”. Quase apetece dizer que, alinhados os astros a bater certo com as contas, está na hora de considerar que este dar a volta ao cronógrafo é o sinal para prosseguir com maturidade. A coincidência de ter sido no dia em que se conheceu o novo Governo, o 23º da Democracia, paritário e maioritariamente fornecido de políticos, também me ajuda a celebrar.

E celebrar a Democracia, para além de implicar trabalharem os políticos todos, e todos os dias, nela, significa acumular as lições retiradas dos erros e das conquistas neste período de crescimento do regime. Acontece algo semelhante quando alguém conclui o seu curso de governança em exercício e consegue, quando a oportunidade se conjuga, não apenas actualizar-se continuamente na matéria, como fazer escola e deixar descendentes, saindo de cena na hora certa. O contrário disso, pode chamar-se-lhe “efeito eucalipto”, não contribui para o crescimento e a diversidade, bens essenciais ao progresso de que a Democracia precisa. Não queremos isso e António Costa permitiu, proporcionando aos que demonstraram interesse em suceder-lhe, que mostrassem do que são capazes, dando aos eleitores, até em eleições primárias no Partido semelhantes às que o trouxeram até ao que é hoje, a oportunidade de escolherem melhor quem os governará no futuro.

Espero que o PS, e a suas correntes internas que o enriquecem tanto, use este património democrático para continuar a vencer. No extremo oposto, que também é exemplar e por isso ensina muito, tivemos o CDS: as lutas internas e privadas foram tantas que convenceram os seus eleitores de que o que parecia mais importante eram as figuras do que os alicerces ideológicos e as políticas propostas. Como a Democracia não se faz sem Partidos, espero igualmente que os Partidos da oposição, durante os próximos quatro anos tomem consciência da importância de não fazerem dos eleitores tontos.

A crise sísmica de São Jorge também parece ter acertado o passo com a maturidade da Democracia: aliando Ciência e Política, encaram-se as inevitabilidades com as melhores armas possíveis e tem-se um exemplo, bem prático e demonstrável à comunidade, de políticas públicas. Oxalá os inevitáveis estragos tenham o menor impacto possível nas pessoas, individualmente, e nas populações, colectivamente.

22.3.22

Quando numa folha de papel não se lê a palavra “guerra”

 Adultos da segunda idade, crianças e jovens, por aqui crescemos e fomos vivendo maioritariamente em paz, com a guerra lá longe. E com aquele costume de, inconscientemente, considerar o buraco, ou as ervas, na minha rua mais escandalosos do que a fome no Biafra. Problemas de primeiro mundo que dão cabo da nossa resiliência, pouca e mimada, treinada para a competição homem a homem (perdoem-me o anacronismo da padronização pela testosterona). Lutas por um lugar de relevância no seu nicho de relações, mais ou menos alargadas. Até se lhes encontra traços de empreendedorismo, retirando a especificidade das reais propriedades do conceito, juntando ambição desmedida, solta de limites éticos em muitos casos, ao que tem outro nome: competição.


A essa competição feroz entre indivíduos, chamamos, e percebemos agora que mal, guerra. Banalizámos, por ignorância da experiência, essa palavra. Como quando dizemos que estamos cheios de fome porque não petiscamos há oito horas. Pelo contrário, chamamos, e bem, guerra à luta contra inimigos difíceis de vencer, da droga ao cancro. Guerras que requerem esforços arrasadores e nos consomem o dia-a-dia. No fim, há apenas um vencedor, mas os, pelo menos, dois que se confrontam acabam arrombados, arrastando consigo muitos dos que os rodeiam.

Encontramo-nos no lugar desses que estão um bocado próximos de quem está em guerra. Até estamos próximos dos que nesta guerra são os invasores. E desse lado também assistimos, mesmo à distância, a uma luta particularmente cabotina, ou seja, e por palavras elas próprias menos cabotinas, uma luta de arrogantes e armados em centro das atenções. Refiro-me ao cancelamento da cultura russa. Afinal, tão semelhante às cenas em que as autoridades russas multam ou prendem manifestantes que empunham folhas de papel em branco. Foi a reacção das autoridades russas à leitura daquele papel em branco que lhe deu sentido: o gesto do resistente foi bem entendido no gesto do opressor. Deste “diálogo” saiu o que era para sair: o ridículo da opressão autocrática.

Aprender a ler o silêncio é uma tarefa difícil, porque, como bem sabemos, há o silêncio eloquente, o silêncio gritante, o silêncio respeitoso, o silêncio comprometido, e provavelmente muitos outros silêncios. Que esses nunca se confundam com o silêncio do que não quer saber, também ele cheio de mensagem a descodificar. Se a palavra “guerra” tem que se ler bem antes de se usar, o silêncio tem de se ouvir, com a inteligência que nos coube e a que damos uso constantemente.

15.3.22

Fazer o bem, à compita

 Como em qualquer situação extrema de vida ou morte, a tragédia da guerra, quando o drama ainda se desenrola, revela o pior e o melhor de cada indivíduo. O sofrimento pode, no fim e quando deixa as suas marcas nos sobreviventes, modificar muitas pessoas, mas quando começa, e retomo o que já disse sobre o acaso, encontra cada um como está e é.


Isto acontece a quem sofre no meio do cenário, mas cada vez mais condiciona o comportamento de quem assiste de fora, mas do longe que parece perto, em lugar onde alguns pingos da tragédia podem ainda vir borrifar. (Há-de convir-se que assistir à transmissão da guerra e ter pesadelos, ou a própria crise económica são uma pálida amostra do impacto da devastação do país onde está a guerra.)

Vem esta crónica a propósito da onda de solidariedade que, como é frequente, não apenas envolve quem já anda por aquelas águas e na zona de rebentação, mas atrai uma série de gente, e instituições, que sem que lhes peçam se atiram ao mar. Um manancial também de oportunidades para a selfie, o post, a reportagem na TV. Uma situação que acontece em ocasiões diferentes, a vários níveis que têm impactos de visibilidade também diferentes, mas com o mesmo princípio de mostrar como se quer fazer o bem. Como se é o melhor a fazer o bem, o que parece ainda pior.

Não tenho nada contra o gesto de ajudar, muito pelo contrário. Mas julgo ter-se muito mais a ajudar quando se contém esse gesto colaborando de acordo com o que a divulgação de formas organizadas indicam para o fazer. Estas indicações vêm de quem tem, na sua razão de existir, essa responsabilidade e sabe avaliar as necessidades no momento certo, sem precipitações.

Criar a necessidade é uma manobra de marketing para promover quem o faz e não o resultado do que se faz. Criar a necessidade a propósito de uma situação que trará, sem esforço nem demora, muita necessidade, deixa transparecer um receio de concorrência. Se isto, enquanto impulso de um inconformismo impotente, já deveria conter-se num exercício de auto-domínio, então a exibição destes gestos precipitados em público revela um despudor que não fica nada bem a quem os pratica. É que até correm o risco de se atropelarem uns aos outros e a fotografia tornar-se tragicómica, o que é visivelmente desajustado e inconveniente.

8.3.22

Do caso ao caos sem acaso

 Não vale a pena ignorar que “o caldo se entornou”. Os mais distraídos, que não são nenhuns dos que ouvem ou lêem textos como este, podem achar que esta é só mais uma “daquelas” de que havemos de nos desenvencilhar. Ou de que “alguém” nos há-de salvar. Mas a guerra que começou na Ucrânia, e não sabemos onde vai acabar, marcará o fim da nossa geração, a dos que já atingiram meio-século, e a geração dos nossos filhos. E talvez até a dos filhos que estes ousarão pôr no mundo.


É sabido que o acaso não traz nada de seu, porque não acontece sozinho. E muitas vezes é resultado de opções que não pareciam piores: neste caso, acreditar que os ideais da democracia podiam ser partilhados por quem traz em si, por tradição e educação, a semente da autocracia. Erro crasso, está visto. Os líderes como Putin, e outros herdeiros menos ricos de regimes imperialistas, não se preocupam em mitigar desigualdades, que beneficiam muitos, até os mais afortunados, mas em privilegiar alguns e usar outros como tapetes, degraus ou coisas parecidas.

Mas o acaso, que parece uma surpresa ao virar da esquina, também encontra cada um como está. As cúpulas políticas da Europa saída de um traumático Brexit e seguido de uma devastadora pandemia que conseguiu ir controlando, apesar de tudo, parecem ter-se consciencializado de que a Europa é União. Falta-nos a nós cidadãos tomar também essa consciência (se pensarmos nas vezes em que falamos do dinheiro que vem de Bruxelas como se não fosse nosso também, para o bem e para o mal, vemos como não nos sentimos em muitos níveis parte dessa União). A proximidade connosco em vários aspectos dos Ucranianos - cor da pele, cultura e religião - fez-nos até reagir com um quase excesso de zelo para com a situação (que nunca deveria ser diferente para outros casos semelhantes que há décadas se arrastam, pedindo-nos ajuda porque os valores da Europa são, na realidade, maiores do que os valores de clã ou de tribo).

Se a pandemia nos acordou para a urgência climática, agora ainda mais ameaçada pelos efeitos da guerra, este conflito, que talvez seja a III Guerra Mundial, poderá despertar-nos para uma redefinição de limites que nos ajudarão a entendermo-nos na diferença. Que do caos, não fruto do acaso, consigamos resolver vários “casos pendentes”, como há e haverá sempre, e não nos esqueçamos que, do sacrifício do retrocesso destas duas ou três gerações, se retirem lições.

Já agora, não apenas por acaso, por estes dias também e pela primeira vez na história da Humanidade, o lixo humano que vagueia pelo Espaço caiu na Lua abrindo-lhe uma cratera. Caiu do céu, mas não foi para lá por acaso.

1.3.22

Entre a câmera e a bala

A guerra de hoje passa no pequeno ecrã, em tempo real, numa actualização dos pequenos filmes a preto e branco que passavam nas salas de cinema americanas e de que vemos hoje representações em muitos filmes e séries. 

Deu até para perceber, por algumas reportagens televisivas da semana e meia até as coisas aquecerem, com enviados especiais a Kiev, que o potencial cenário de guerra foi uma espécie de “passadeira vermelha”. De pouco ou nada serviram já que, aos microfones, quem cá ficou a tentar diagnosticar e prognosticar tinha de avisar que o que diziam era no “caso de se confirmarem as informações”. Seria de esperar que aquela espécie de figurantes descendentes da Nikita do videoclipe do Elton John, quando as balas assobiassem aos ouvidos, fossem rendidos pelos repórteres de guerra a quem tanto, de facto, devemos. 

Reparámos igualmente como o uso do espaço mediático pelos dois protagonistas do conflito, Putin e Zelensky não está a ser um detalhe estratégico, como nunca o foi a propaganda dos regimes totalitários. Todos os que se interessam por comunicação vão ter aqui assunto, depois (ou ao mesmo tempo, sei cá, que isto desta contemporaneidade tende a micronizar prazos) de se chorarem os mortos e se ajudarem os feridos. 

Também deu para reparar que o Dr. Rangel, já depois de há uns tempos ter perdido o vôo para a Venezuela quando lá ia exterminar comunistas com a bandeirinha do PP Europa em punho, ter agora anunciado a sua ida a Kiev e em força, e tenha acabado, à força também claro, por ficar em Bruxelas. (Há, pela ludo-net, espécie de lado solar da dark-net, umas dicas bem giras para fazermos fotos de vistas de um avião sem sairmos do nosso modesto primeiro andar.) 

E por falar em Venezuela, em regimes comunistas e em Rússia, também está a ser curioso observar o PCP (parece cada vez mais escusado voltarmos a usar a sigla CDU) e as suas proclamações quanto às boas razões da Rússia e de Putin para iniciarem nova saga do Império Contra-Ataca. Declamações encenadas, e bem ensaiadas, enfiando agenda própria mas ao estilo do discurso treinado para se ser Miss Mundo. Talvez para além de deixarem de usar a sigla CDU, devam mesmo deixar de invocar em vão a palavra que está na origem da letra do meio - “democrática” - sob pena de agora se notar mais que era só para a fotografia. Como a vontade do Dr. Rangel, que queria muito ir para o cenário pré-guerra, a democracia que o PCP defende é mesmo com minúscula e a servir de isco num anzol bem enferrujado de tão antigo. 

Guerra é guerra, pá!Deixem-se de figuras em frente às câmeras e dêem lugar ao jornalismo decente, o que mostra e explica, testemunha e argumenta, e usa o seu legítimo importante poder ao serviço dos cidadãos e em nome do progresso. E apercebam-se, ó políticos a fazer política de pacotilha, que o século XXI não é só “o das selfies”.