28.3.17

Metáforas

Não podia deixar de falar sobre as indefensáveis declarações do ainda Ministro das Finanças holandês e Presidente do Eurogrupo, bem como das reacções, talvez agora já menos exaltadas, que geraram. A polémica é, para quem ainda tivesse dúvidas, mais uma prova da importância das metáforas, e do seu uso, na vida de todos nós. E também, está visto, uma maneira de deleitar jornalistas e políticos ávidos de desviar atenções de índole necrófaga destes mesmos profissionais.
Arrumemos já a questão estilística: a metáfora usada não é bonita. Como não tinha sido aqui há uns tempos a que aproximava a concertação social com uma feira de gado, por muito que quem o tenha dito tivesse pedido as óbvias desculpas e respeitasse, efectivamente, uma e outras. O discurso político, em várias épocas de que há registo, nunca se pautou sempre e só pelo uso rebuscado e elegante das palavras. Aqui, também não há novidade.
A crítica à imagem das “mulheres e vinho” faço-a pela desigualdade de género, completamente desfasada dos tempos contemporâneos. Se tivesse usado “prostituição”, que até está, e eu concordo, a ser matéria de discussão, regulamentação e despenalização em Portugal,  estaria a ser igualmente moralista mas não sexista. Acrescento que a metáfora, assim corrigida e polida para “safe sex e bom vinho”, pode até ser um bom slogan para atrair investimento na região mediterrânica onde as safras são normalmente de excelência e as relações humanas calorosas. Tudo qualidades, portanto, e que podemos devolver ao senhor holandês. Ele sabe do que fala, também nesta área, porque tem lá na terra dele um Red District que é atracção turística, bem como umas coffee-shops que lhe dão algum nacional reconhecimento identitário e económico.
Relativamente ao essencial da questão – o mau uso de dinheiros públicos europeus por determinados países – o Ministro e Presidente de um Eurogrupo, em vésperas de sair dos seus cargos, a bem ou a mal, sabe do que fala, mas escolhe só falar do que lhe interessa. Qualquer pessoa desentendida em políticas públicas perceberá  muito bem a metáfora e, se calhar, até já a usou caso tenha a felicidade de ter tido para emprestar e a infelicidade de ter amigos mais avessos às economias domésticas.
A indignação dos políticos responsáveis de cada nação ofendida é compreensível, e pode sê-lo realmente, se comprovarem que os fundos europeus foram bem geridos e aplicados e, portanto, a metáfora não se lhes aplica. Parece-me que é coisa que deve ser possível fazer, com tantos formulários e relatórios a que estas medidas obrigam. Força! Estou convosco nessa luta! Acho até que o senhor holandês, e para vermos o lado positivo da coisa, pode contribuir para o incremento (ou talvez seja mesmo implementação) da prática assídua e generalizada da prestação pública de contas, que tem em inglês a bonita palavra accountability. Não fazia mal nenhum a muita gente e instituições...
Ah, claro! Depois há a questão da solidariedade, valor em que assenta a União Europeia e que, essa de facto, tem estado muito maltratada, não só em discursos de palanque ou púlpito, mas em atitudes expressas em documentos oficiais. Mas também devo dizer que, para quem já ouviu um Presidente de Câmara comunista afirmar que não lhe parecia justo que Câmaras bem geridas contribuíssem para um fundo financeiro de socorro a autarquias endividadas, nada disto é novidade. E usando a expressão que alguns políticos costumam utilizar para acabar com conversas: quanto a este assunto estamos conversados! 

21.3.17

Extremos

A Europa respirou de alívio na passada quarta-feira. O teste do populismo ficou adiado até novas eleições, desta feita em França, daqui a dois meses. Populismo arrisca-se aliás a ser a palavra do ano, tal não é a força com que opinion makers e académicos dentro e fora do seu habitat têm discursado, palestrado, debatido o assunto. Do primeiro trimestre do ano, há nesta discussão em torno do ou dos populismos uma linha que me interessa particularmente: a que coloca as leituras que são dadas em discursos aos cidadãos, o Povo portanto, sobre uma certa utopia da igualdade.
Quando estamos atentos aos discursos – e é bem importante que o façamos, pois é a partir deles que podemos pedir contas, no sentido de averiguar se “bate a bota com a perdigota”, isto é, se o que se diz é o que se faz – teremos todos muita dificuldade em duvidar das boas intenções dos que se propõem governar. Entre o “tudo a toda a gente” e o rigor e excelência que todos os cidadãos e todos os lugares merecem, é difícil, mas não impossível, ler nas entrelinhas dos discursos. Isto resulta também, desde logo, na recusa, pelo gozo ou pelo alarmismo, dos discursos assumidamente extremados.
Não querendo fazer a defesa do politicamente incorrecto que reage ao vazio em que caiu a expressão contrária, e porque normalmente me tenho esforçado por ceder à tentação de atitudes e opiniões menos moderadas – a não ser que sejam reacções inevitáveis a provocações, conscientes ou não, e normalmente em defesa própria o que, como tal, só fica mal a mim mesma – julgo que esta atitude “morna” pode estar a levar os mais atentos a extremar posições e a alinhar com quem, os que se habituaram a boiar na moderação artificial, ou goza ou acusa de terrorismo em versão menos bélica, rotulando uns e outros de populistas. Esta colagem do populismo ao extremismo obrigou-me a arrumar os extremos de várias áreas, assumindo, pelo menos nestes que vou enumerar, os que tolero e os que rejeito, sem no entanto me identificar nem com um, nem com outro. Talvez a negociação, palavra que prezo e tento praticar, seja a maneira de estar numa sociedade que acumula democracia com capitalismo, incontornavelmente. Sem aldrabices nem burlas, bem entendido.
Assim: de entre aquele que trata um animal com direitos de ser humano e o que o maltrata insistindo em ser seu dono, prefiro o primeiro; de entre o que defende contra tudo e todos o indivíduo, ou comunidade, cultural e socialmente desadaptado e o que exige a sua expulsão imediata do território a que não se adapta, prefiro o primeiro; de entre quem prega insistentemente a palavra de um qualquer profeta e o que maldiz o profeta de que não bebe as palavras, prefiro o primeiro;  de entre quem só larga piropos, ainda que de gosto muitíssimo duvidoso, e o que quer proibir o piropo, prefiro o primeiro; de entre quem ensina que não se pode ser “mole” e deve saber defender-se da agressão com agressão, e o que ao menor sinal abre um processo de averiguação por bullying, prefiro o segundo; de entre quem intervenha persistentemente no lugar em que vive, sempre que se sente ou é chamado a contribuir para tal, e quem ou tente passar despercebido ou insista em esperar para ver e depois criticar, prefiro o primeiro; mas de entre o que não se importa de alinhar com quem não se identifica, porque pode vir a extrair daí alguns dividendos, ao que prefere ser acusado de não colaboração, para que não se lhe encontrem semelhanças, prefiro o segundo. 
E haverá seguramente muitos mais extremos. Que não se tocam. E por isso, não, nem os aparentemente moderados são todos iguais, nem os escancaradamente extremistas estão todos abrangidos pelo direito à opinião. É que uma coisa é a formulação de opinião, outra a formação do carácter.

14.3.17

(Des)Culpa e (In)Justiça

Até provas em contrário, em caso de asneira ou crime, o indivíduo é considerado inocente. Funciona assim a regra dos sistemas de justiça das sociedades evoluídas. Daqui se depreende que julgamentos prévios e precipitados são antissistema. O antissistema da praça pública, das redes sociais, virtuais ou concretas, é prolífero em julgamentos baseados no saber popular do “onde há fumo, há fogo” e assentes em preconceitos de vária ordem. Do rumor à absolvição há tantas vezes um percurso que fica a meio que, mesmo chegando-se à última etapa no sistema legal das regras para uma sociedade que se deseja mais segura, a condenação que fica pelo caminho é quase tão definitiva como aplicada, tal qual uma sentença com pena paga por conta. Julgar é, também, penalizar alguém que se considera culpado de situações criadas, coisa que podem fazer os eleitores quando julgam as actuações de governo e oposições nos momentos eleitorais.
Temos a decorrer no nosso país vários casos de justiça e, curiosamente, os que são maiores em número de envolvidos e impacto público até têm nomes que utilizam expressões muito criativas e próximas do sistema da metáfora. Também temos as comissões de inquérito parlamentares na ordem do dia, aparentemente também com um tipo de processo similar ao da Justiça, no sentido de se apurar a culpa. Curiosamente, destes tribunais especiais que se formam com quem representa os eleitores portugueses na Assembleia que legisla o sistema em que vivemos, o caminho ou processo de averiguações assume uma preponderância especial, com muito mais relevância dada ao discurso do que ao facto. São excelentes oportunidades para exercícios de retórica e dialéctica, que comportamentos na restante vida parlamentar poderiam emular. Mas o nível de argumentação e discurso de quem tenta procurar, por definição do que é ser oposição, a culpa de uma determinada falha (uma versão de crime), tem-se revelado tão estranho quanto baixo, por assumir estilos a que nos habituámos serem mais usados por quem nunca teve responsabilidades governativas e se especializou, a nível nacional, em ser oposição que, mais do que fiscalizar a acção dos governos, se reclama ser a voz dos mais imediatamente prejudicados por determinadas opções, nem que estas sejam em nome de projecções que, mais cedo ou mais tarde, os poderão vir a beneficiar. Aliás, esse estilo de protesto, de contestação e reivindicação, terá dado origem a várias estruturas corporativas que se integram no sistema e, até certo ponto, o ajudam a manter o equilíbrio necessário.         
Encontramo-nos politicamente a nível nacional numa situação inédita de governação à esquerda, mas o Alentejo é a região em que a nível local a situação já tem a idade da Democracia portuguesa. Talvez fosse interessante os demais Portugueses – e porque não os Alentejanos mais distraídos – pensarem um pouco nas semelhanças das formas de governo, decisão e aplicação de princípios ideológicos (que qualquer político por mais independente que seja deverá ter, sob pena de não ser então um político) dos Executivos das várias “cores”. Das mais habituais no poder central, às mais distantes e ainda assim relevantes no poder local. Talvez este exercício – que requer muita atenção a programas eleitorais, editais e decisões aplicadas – nos faça reequacionar socialmente os processos de decisões precipitadas de culpa, na descoberta da desculpa fácil e no cuidado em distinguir a aplicação do que se faz em nome da justiça ou do que se recusa por se considerar injustiça. A quase seis meses das próximas eleições, os Portugueses em geral e os Alentejanos em particular vão ter oportunidade de se pronunciar sobre quem mais próximo os governa. E aqui o Alentejanos, face à novidade da situação nacional, podem dizer que conhecem (se procurarem conhecer mesmo) a governação à esquerda, e estão 40 anos adiantados.

7.3.17

Ser de Raça

Mais uma vez na América reerguem-se temas de discussão que, nunca tendo desaparecido, têm tido momentos mais sossegaditos. E aqui no jardim à beira-mar plantado voltaram na modalidade boutade de rede social. Um deles é o racismo, termo cientificamente tão errado como anacrónica é a existência real de um conceito largamente usado de “raça”. O upgrade é a xenofobia, que até corrige de forma consensual, não esse traço de carácter que está latente em quem tem sempre debaixo da língua a expressão “não é de cá”, mas essa tendência de estender as questões de administração geopolítica a características de sociabilização, pondo em causa o velhinho conceito da ética humana que é a hospitalidade. 
A laracha de que falo foi aquela largada por um fadista cujos pergaminhos de pertença a linhagem educada, uma forma de também “ser de raça” já agora, parece terem sido esquecidos. É sempre uma situação trágico-cómica quando se soltam estes desvarios de descompostura. Parece que o ódio ao politicamente correcto, que pelos vistos evitava pelo menos estas tristes figuras, chegou a quem normalmente tem a sorte de ser educado nos princípios do bom convívio em sociedade, que é o que politicamente correcto também quer dizer. Lá o que fazem depois entre eles, e desde que, se for algo de muito ruim, não contamine o resto do ambiente, é mesmo só lá com eles! À privacidade todos temos direito. Mas o espaço público é também um “salão com regras” e a sistemática quebra destas pode torná-lo um lugar muito tóxico. E que não venham com a grande dignidade do que é dar a cara de onde saem impropérios. É que há coisas que não são meras opiniões, são marcas de carácter e nem mesmo ditas olhos nos olhos têm o beneplácito de quem se preocupa exactamente com o bom ambiente desse mesmo espaço público.
Felizmente a Ciência tem evoluído de forma a deitar por terra todo o tipo de manual de argumentos que justificam atitudes de exclusão. É até uma forma de reequilibrar um mundo onde cada um pode dizer o que quer, mas onde isso não quer dizer que tudo o que se diga esteja correcto, nos vários âmbitos a que este adjectivo se aplique. Por acaso, o que destacaria do desabafo do fadista a propósito da inaudita cerimónia dos Óscares deste ano é a ofensa que é feita não à cor da pele nem à orientação sexual de actrizes e actores, para mim muito lamentável mas esclarecedor do tipo que é quem o diz, mas à própria arte de representação. Em ricochete quase me apetecia dizer que quem tem muitos SS e RR no nome também pode ser fadista, ou toureiro, ou jogador de canasta. Não o digo, por muito tentador que o estereótipo seja para fazer a laracha, porque não é verdade.    
Quer as histórias bíblicas, quer as narrativas mitológicas relatam situações em que deuses ou figuras divinas testam a bondade das pessoas a partir do modo como estas exercem a sua hospitalidade. É a hospitalidade associada ao altruísmo e à bondade, tudo em nome da felicidade. E é assim que algumas pessoas têm a sorte de viver em territórios tão valorizados pelos que neles nasceram e se criaram por serem classificados como património da Humanidade. Eu cá tenho encontrado muita gente assim, hospitaleira, de muitas das poucas partes do Mundo que conheço. E desses encontros serei eu quem sai certamente mais feliz e os que assim me fizeram sentir mais altruístas e bondosos. Uma experiência a que todo o ser humano devia ter direito, o que às vezes até é mesmo possível logo que se passam fronteiras que delimitam concelhos, distritos ou regiões. Essa experiência seria sem dúvida um bom contributo para a formação, também de carácter, de muitos. O que é difícil para quem, mesmo viajando muito, tem o espírito, a alma ou, como eu gosto mesmo de chamar a isso, o carácter amuralhado.