28.1.14

No país das maravilhas

A semana que passou foi de loucos. Por causa do déficit e da retoma, dos cortes nos vencimentos dos funcionários públicos e das pensões, da espiral recessiva e do princípio do fim da recessão, dos recibos de vencimentos e dos aumentos de janeiro, dos investimentos em investigação e dos cortes nos bolseiros... Foram tantas as declarações de governo e oposições, de “achismos” e de opinião, que não resisti à tentação de reler pela enésima vez essa obra-prima de Lewis Carrol, que por sinal era matemático e se chamava mesmo Charles Dodgson, uma das obras mais adaptadas, em versões e linguagens artísticas várias, e que é a Alice no país das maravilhas.
É que tudo o que se disse, e eu ouvi, em contraditórios mesmo que à vez, e se lhe quiséssemos, nós comuns cidadãos e eleitores, seguir-lhes o rasto e encontrar-lhes uma lógica, que estará de certo lá, me fazia lembrar esta narrativa literária. A Alice é um clássico da literatura que encaixamos na estante dos mais novos, mas que merece bem um regresso quando crescemos, sobretudo à versão integral que raramente conhecemos na infância ou mesmo juventude. Aliás, prova disso mesmo, é que quando falamos do “país das maravilhas” usamo-lo com ironia para designar um sítio onde tudo corre “às mil maravilhas”. Ora, aquele lugar imaginário onde Alice cai, e tudo o que por lá se passa, tem muito mais a ver com pesadelo do que com sonho.
Entre as diferenças de tamanho de Alice, com que forçosamente nos identificamos e que nos fazem duvidar se nós, os cidadãos, somos grandes ou pequenos, isto é, um fim importante ou um meio insignificante para atingir certos objetivos; até ao contacto com o poder e a justiça, personificados na Rainha de Copas e no julgamento sobre um roubo de tartes que não existiu; passando por um jogo de críquete impossível de jogar de tal forma é desregulado, ou um chá com um Chapeleiro Maluco e uma Lebre de Março, onde a ausência de Tempo tem os seus efeitos; tudo na história que a Alice vive a partir do momento em que adormece, me fez pensar que somos todos um pouco “Alices” quando queremos entender quem nos governa a vida. Se tivermos oportunidade, entenderemos. Mas é preciso saber ler muito bem as situações, relembrar a História e os factos, mais ou menos recentes. Como quando lemos com atenção o original de Alice no país das maravilhas e percebemos muita daquela “maluqueira” que por lá se passa.
É que até uma “corrida eleitoral” acontece nesta obra-prima da literatura de 1863, de que vos dou aqui uns excertos salteados, por ser ela precisamente uma das “piscadelas de olho” mais interessantes, em meu entender, que o Autor faz ao leitor adulto. Uma corrida que acontece como solução para a valente molha de alguns dos estranhos habitantes daquele país maravilhoso, depois de nadarem no mar de lágrimas que Alice provocou.  
« – O que eu ia dizer – (…) era que a melhor coisa para nos secar seria uma Corrida Eleitoral.
– O que é uma Corrida Eleitoral? – inquiriu Alice (…) 
– Ora, a melhor maneira de explicar é fazê-la – respondeu o Dodó. (E, como também vocês poderão querer experimentá-la, num dia invernoso, vou contar-vos como procedeu.)
Primeiro, desenhou uma pista de corridas, numa espécie de circunferência («não interessa a forma exacta», disse ele), e depois colocou cada um deles num ponto da pista. Não havia nenhum «um, dois, três, já!», mas principiava-se a correr quando se queria, e desistia-se também quando apetecia, de maneira que não era fácil perceber quando terminava a corrida. Todavia, após terem corrido cerca de meia hora, e estarem de novo secos, o Dodó gritou de repente:
– Acabou a corrida!
E todos o rodearam, ofegantes, a perguntar: – Mas quem é que ganhou?
O Dodó só pôde responder a esta questão depois de pensar longamente, e permaneceu durante muito tempo com um dedo apoiado na testa (a posição em que se costuma ver Shakespeare, nos retratos), enquanto os outros aguardavam em silêncio. Por fim, disse:
– Ganhámos todos e todos devemos receber prémios.»

Ora digam lá que escrever sobre uma rainha de copas, que manda cortar a cabeça a toda a gente que a incomode, e falar de corridas eleitorais desta maneira, não é de nos pôr a pensar que, mesmo confusa, esta amostra de democracia cumpriu a sua função? É preciso é saber “lê-la” e o “texto” tem que ajudar.

21.1.14

Batotices

Dizia o Émile Voltaire que "fazer batota ao jogo e não ganhar, só de um tolo." O que assistimos na semana passada na AR não foi mais do que uma imensa e pública batota ao abrigo da democracia. Não foi uma ilegalidade, mas foi uma jogada pouco limpa em nome da escolha, que é também uma das regras da democracia, essa que, não sendo a perfeita forma de governo é a melhor, a que temos e a que temos obrigação de aperfeiçoar, os que governam e os outros, diariamente, se não quisermos cair em coisa pior. Podia, mas não vou falar, da tremenda injustiça que o vazio de uma lei que permita a co-adoção e adoção por casais do mesmo sexo. Injustiça para crianças já nascidas nesta situação familiar ou à espera em orfanatos. Injustiça perante a desigualdade de duas crianças, uma em situação de casal heterossexual, mesmo não tendo sido um deles o progenitor, outra num casal homossexual, permitindo-se a uns perfilhar e a outros não.
Vou antes falar desta batota no jogo político, entendido este, nesta crónica, como o exercício entre poder e contrapoder, seguindo as regras estabelecidas, uma delas que dá a uns maior responsabilidade na prossecução do objetivo final, mas indeterminado no tempo, de cuidar e legislar no sentido de que o bem e interesse públicos sejam defendidos. Jogo também, já que os jogadores são julgados vencedores ou vencidos, não apenas pela História, que demora, mas pelos populares que escolhem os jogadores e lhes alteram as posições, em determinados momentos a que chamamos eleições. Os tabuleiros de jogo são vários. No nosso caso português vão do local ao europeu passando pelo nacional. E é por isso que devemos tentar que nos expliquem o melhor possível as regras, para que a nossa escolha seja a mais consciente com os nossos princípios, no momento principal, e talvez único, em que somos de facto ouvidos para entrar nesse “um dos jogosque nos governa (noutros não temos, pela nossa condição humana a que se chama Vida, grande hipótese de escolha).
Assim vistas as coisas, a importância da escolha assume um aspeto assustador, a que muitos fogem, com argumentos em meu entender pouco válidos ainda que legítimos, já que, como sabemos, o voto não é obrigatório, sendo um dever, e a contestação é um direito de todos e usado por muitos em formas e doses diferentes. Regras…que se podem sempre mudar, entenda-se, dentro de outras regras maiores a que normalmente chamamos princípios.
Ora, ao que assistimos na semana passada foi a uma jogada batoteira, já que se uns estavam a levar o jogo a sério, outros houve que, vendo-se na eminência de uma derrota na jogada, resolveram usar uma estratégia que, na opinião de todos ainda que na decisão final do PR e do TC, evitasse essa derrota ou, pelo menos, a adiasse. A batota é isso mesmo. É quando num jogo uns o levam a sério, jogando com astúcia a sua melhor maneira de o ganhar de forma limpa, e os outros, os batoteiros, não.Perguntarão os senhores como é que tendo maioria os que fizeram batota estavam em risco de perder. Fragilidades no grupo, talvez. Até podia ser, mas não julgo que seja a única razão. Divergências de opinião nestes grupos, a que se chamam normalmente partidos, são comuns e, reconhecendo-se mais nuns no que noutros, poucas vezes são as causas de derrotas fora do grupo, mesmo se também neles haja jogadas tão pouco claras como esta batota. Mas, enfim, essas são lá com eles, que as resolvam entre si e com a consciência ética, e às vezes até moral, de cada um e uma. (Breve parêntesis para dizer que a moral incorpora as regras que temos de seguir para vivermos em sociedade e determinadas pela própria sociedade; a ética reflete sobre as regras morais e essa reflexão pode inclusive contestar as regras morais vigentes, entendendo-as, por exemplo,como ultrapassadas.)
Não esquecendo a frase de Voltaire, ela aplica-se a este tipo de jogada, que pode fazer ganhar tempo mas não ganhar o jogo. Para defender o grupo, o interesse particular, a batotice impedirá o batoteiro de agir na tal prossecução do objetivo final, de legislar no sentido de que o bem e interesse públicos sejam defendidos, atirando para uma outra jogada possível, o referendo, que tem no entanto condições que dificilmente a tornam jogávelagora. E isto não é ganhar o jogo, porque este não é o objetivo final do jogo da democracia como esta foi instituída.
Entretanto o vazio mantém-se, e os direitos das crianças não se cumprem. Relembro, para terminar, o ponto dois do artigo terceiro da declaração universal dos direitos da criança: «os Estados Partes comprometem-se a garantir à criança a proteção e os cuidados necessários ao seu bem-estar, tendo em conta os direitos e deveres dos pais, representantes legais ou outras pessoas que a tenham legalmente a seu cargo e, para este efeito, tomam todas as medidas legislativas e administrativas adequadas.»Acredito que esta batotice põe em causa este princípio. E eu sou contra.

14.1.14

Disparates

Eusébio e Sócrates, o José, estiveram quase inexplicavelmente juntos, na berlinda, a semana passada. E este par tornou-se tão estranho como se estivessem estado juntos nessa berlinda o Eusébio e Sócrates, o filho de Sophroniscus, ou seja, o filósofo grego. Afinal, houve quem usasse Eusébio, mais uma vez e abusando do multiusos em que se transformam as figuras públicas de relevância, para, de repente, descobrir mais um, só mais um, motivo para zurzir em quem de facto não interessa, por variadíssimas razões, esquecer. E não fossem, com os recentes apelos à união de esforços de todos aqueles que estarão interessados em governar o país, lembrarem-se de que foi esse o esforço pedido por Sócrates quando da medida de contenção mais conhecida por PEC IV, às tantas mais valia, para alguma gente (que devia ter mais “cabeça”), distrair o “mexilhão” com o fait-divers que juntou, então, o sempre-herói Eusébio e o sempre-odiado (e porque, em meu entender, invejado) José Sócrates.
E foi assim que, saído de um comentário perfeitamente inócuo sobre uma recordação de infância que colocava Sócrates no reino dos comuns mortais a propósito do imortal Eusébio, talvez com medo que tal imortalidade contagiasse quem ousou também ter infância, se criou o dito fait-divers sobre “onde estava José Sócrates no dia do Coreia do Norte-Portugal de mil novecentos e troca o passo”.
Nós bem sabemos que o José Sócrates comentador não tem poupado a coligação do governo, e do governo com o PR, a críticas incomodativas e explicadas com uma argumentação que, não sendo a mais acessível ao cidadão comum e desatento aos meandros da política a sério, e não da intriguice, é, em meu entender, muito certeira. Também sinto, como muitos outros, e sem qualquer interferência na apreciação que faço do político que é e estadista que foi, que o jeitinho de José Sócrates para falar de coisas mais afetivas não é, em meu entender, dos melhores. Mas de um governante, confesso, espero mais do que jeitinho para embalar ouvintes embevecidos com histórias de encantar.
Ora durante toda a passada semana toda a minha gente falou sobre o Eusébio falando de si ou, em alguns círculos mais dourados, da relação de si próprio com Eusébio. Para quê disparar a propósito de Eusébio contra José Sócrates nostálgico, sem sequer utilizar munições ajustadas? Porque até isto de fazer intriga no meio político, e em geral no meio público, também tem a sua arte…
Como escreveu o Vergílio Ferreira «Afirma com energia o disparate que quiseres, e acabarás por encontrar quem acredite em ti.» E é por isso que quando inopinadamente desatamos a acreditar pia, pública e cegamente, em matéria pouco relevante para o interesse público, em quem desatou um disparate corremos um certo risco em, pelo menos, sermos tão ou mais disparatados. O desatino de quem tem também o nosso destino nas mãos, aproveitado por quem se supõe que vive de atinar em notícias e divulgá-las, enrola-nos por vezes na espuma dos dias… Temos de saber sobreviver-lhes, às vezes e para muitos, como heróis.    

 Até para a semana.

7.1.14

Palavras, coisas e mudanças

«A coisa nenhuma deveria ser dado um nome, pois há perigo de que esse nome a transforme", disse Virginia Wolf nos inícios do século XX. Como estamos a estrear um ano novinho em folha, como as palavras são uma das matérias-primas das crónicas, como há um orçamento novo e um plano de atividades novo de um executivo novo numa Cidade antiga que é Évora, resolvi juntar este alerta de Virginia Wolf, e rebuscado exagero literário, a uma prática que descobri, não sem algum tempo de reflexão, no novo governo da Cidade.
O orçamento já está aprovado e, em princípio, porá a trabalhar como se propuseram a fazê-lo e os eborenses, vá, a maioria dos eborenses que quis votar, escolheu, os elementos do novo executivo municipal, que é como quem diz presidente e vereadores. Nestes dois primeiros meses não era previsível que muito se fizesse, ainda que afanosamente se tenham divulgado inúmeras iniciativas que, a maioria órfã de quem as gerou, foram perfilhadas por quem se deverá encarregar do seu destino. É normal, já que ao fim de 12 anos, haverá programas e projetos que não poderão ter ultrapassado a fase de adolescência, o que já não aconteceria se tivessem uma consolidação de 20 e tal anos. Mas adiante. O que me traz hoje aqui é o aspeto inovador do plano de atividades que se propõe começar agora e cumprir até 2017, em princípio.
E inovador em quê, perguntar-me-ão desconfiados, com este aparente elogio vindo de vereadora da oposição. Pois bem, o plano de atividades é inovador no uso de palavras. Dar-vos-ei um exemplo só, para já e para não vos maçar mais, e porque outros poderão voltar às crónicas, uma vez que visitarei o documento várias vezes. Além de que, julgo eu que poderão consultar os outros, nos meios de comunicação municipal, e avaliá-los em relação direta. O exemplo é de como, de repente, o plano de atividades e o orçamento passaram a referir-se expressamente à Câmara Municipal de Évora como Município de Évora. Com a insistência quase que parecia que estávamos a ver as palavras a negrito, com direito a abreviatura nova e tudo e que se pode ler MÉvr. Assim mesmo. E admito que levei algum tempo a perceber o porquê desta nova forma de se referirem, e presumo que desejarem que nos refiramos, à Câmara.
A CME passar a MÉvr, porquê? Eu que até acho graça, e uso com afeto, a corruptela popular de “cambra”, fiquei mesmo a matutar no assunto. Depois de algumas voltas aos últimos quatro anos, relembrando as intervenções de ex-membros da oposição agora governantes ou a eles chegados, em diferentes lugares, percebi finalmente uma possível razão. É que ao fim de 12 anos a tentarem, persistentemente, denegrir a imagem da Câmara Municipal de Évora, até quando esta era pública, nacional e internacionalmente reconhecida, a Câmara e não apenas a Cidade, teriam agora de se querer livrar dessa mancha que eles próprios derramaram e rebatizar então a “coisa” com novo nome de Município de Évora ou, na sua versão “diminutivo-nickname”, MÉvr. Pronto, aparentemente deslindada esta curiosidade, outras haverá que trarão assunto com elas.