A semana que passou foi de loucos. Por causa do déficit e da
retoma, dos cortes nos vencimentos dos funcionários públicos e das pensões, da
espiral recessiva e do princípio do fim da recessão, dos recibos de vencimentos
e dos aumentos de janeiro, dos investimentos em investigação e dos cortes nos
bolseiros... Foram tantas as declarações de governo e oposições, de “achismos”
e de opinião, que não resisti à tentação de reler pela enésima vez essa
obra-prima de Lewis Carrol, que por sinal era matemático e se chamava mesmo Charles
Dodgson, uma das obras mais adaptadas, em versões e linguagens artísticas
várias, e que é a Alice no país das maravilhas.
É que tudo o que se disse, e eu ouvi, em contraditórios
mesmo que à vez, e se lhe quiséssemos, nós comuns cidadãos e eleitores, seguir-lhes
o rasto e encontrar-lhes uma lógica, que estará de certo lá, me fazia lembrar esta
narrativa literária. A Alice é um
clássico da literatura que encaixamos na estante dos mais novos, mas que merece
bem um regresso quando crescemos, sobretudo à versão integral que raramente
conhecemos na infância ou mesmo juventude. Aliás, prova disso mesmo, é que
quando falamos do “país das maravilhas” usamo-lo com ironia para designar um
sítio onde tudo corre “às mil maravilhas”. Ora, aquele lugar imaginário onde
Alice cai, e tudo o que por lá se passa, tem muito mais a ver com pesadelo do
que com sonho.
Entre as diferenças de tamanho de Alice, com que
forçosamente nos identificamos e que nos fazem duvidar se nós, os cidadãos,
somos grandes ou pequenos, isto é, um fim importante ou um meio insignificante
para atingir certos objetivos; até ao contacto com o poder e a justiça,
personificados na Rainha de Copas e no julgamento sobre um roubo de tartes que
não existiu; passando por um jogo de críquete impossível de jogar de tal forma
é desregulado, ou um chá com um Chapeleiro Maluco e uma Lebre de Março, onde a
ausência de Tempo tem os seus efeitos; tudo na história que a Alice vive a
partir do momento em que adormece, me fez pensar que somos todos um pouco
“Alices” quando queremos entender quem nos governa a vida. Se tivermos
oportunidade, entenderemos. Mas é preciso saber ler muito bem as situações,
relembrar a História e os factos, mais ou menos recentes. Como quando lemos com
atenção o original de Alice no país das
maravilhas e percebemos muita daquela “maluqueira” que por lá se passa.
É que até uma “corrida eleitoral” acontece nesta obra-prima
da literatura de 1863, de que vos dou aqui uns excertos salteados, por ser ela
precisamente uma das “piscadelas de olho” mais interessantes, em meu entender,
que o Autor faz ao leitor adulto. Uma corrida que acontece como solução para a
valente molha de alguns dos estranhos habitantes daquele país maravilhoso,
depois de nadarem no mar de lágrimas que Alice provocou.
« – O que eu ia
dizer – (…) era que a melhor coisa para nos secar seria uma Corrida Eleitoral.
– O que é uma
Corrida Eleitoral? – inquiriu Alice (…)
– Ora, a melhor
maneira de explicar é fazê-la – respondeu o Dodó. (E, como também vocês poderão
querer experimentá-la, num dia invernoso, vou contar-vos como procedeu.)
Primeiro, desenhou
uma pista de corridas, numa espécie de circunferência («não interessa a forma
exacta», disse ele), e depois colocou cada um deles num ponto da pista. Não
havia nenhum «um, dois, três, já!», mas principiava-se a correr quando se
queria, e desistia-se também quando apetecia, de maneira que não era fácil
perceber quando terminava a corrida. Todavia, após terem corrido cerca de meia
hora, e estarem de novo secos, o Dodó gritou de repente:
– Acabou a corrida!
E todos o rodearam,
ofegantes, a perguntar: – Mas quem é que ganhou?
O Dodó só pôde
responder a esta questão depois de pensar longamente, e permaneceu durante
muito tempo com um dedo apoiado na testa (a posição em que se costuma ver
Shakespeare, nos retratos), enquanto os outros aguardavam em silêncio. Por fim,
disse:
– Ganhámos todos e todos devemos receber prémios.»