30.11.16

Manequim

E neste Outono a febre da silly season não desceu e surge agora uma nova actividade para quem participa empenhadamente nas redes sociais. É o chamado “desafio do manequim”, em tradução do original Mannequin Challenge. Consiste, este desafio, em fazer um vídeo onde um grupo de pessoas fica parado, em poses mais ou menos complexas, precisamente como manequins. A criatividade de muitos internautas levou a que o fenómeno ficasse famoso, replicado por famosos que alguns conhecem e, na busca ansiosa da originalidade no repetitivo que estes fenómenos têm, a dificuldade das posições encenadas foi aumentando. O efeito pode ser hilariante e quem o faz estará seguramente a divertir-se muito.
O que poucos saberão, mas eu informo de acordo com o pouco que investiguei por aí, é que o fenómeno deste mesmo Outono de 2016 já tem uma história e regras que, obviamente, dificilmente nestas (e noutras) coisas da vida se cumprem a rigor, e o vírus recria-se em mutações. E que também já tem versões paralelas em que, tal como nos mitos, pode passar-se do facto pessoal à verdade ritual. Pois fiquei então a saber, e partilho convosco, que a música de fundo destes vídeos deveria ser sempre a mesma, a de um duo chamado Rae Sremmurd, e se intitula “Black Beatles”, tendo até no videoclip que a divulga, ao minuto 1:02’, uma recriação da famosa travessia de passadeira dos Beatles, os originais, em Abbey Road. Parece que pode ter começado por um desafio a senhoras famosas, com o impulso da Lady Gaga em biquíni, mas que, entretanto, ultrapassou a obrigatoriedade da indumentária reduzida. Quem se interessa por cinema não pode evitar comparações com algumas cenas de Matrix entre outros filmes que utilizam esta figura de estilo, chamemos-lhe assim, para ajudar a contar uma história. Com tudo isto poderíamos pensar que a coisa já teria uns mesitos. Qual quê?! Começou em Outubro e, como qualquer epidemia, espalhou-se viralmente pela Internet chegando a muitos dos 50% da população mundial que lhe têm acesso. Pois, só 50% e nós que a usamos a acharmos já que somos o mundo todo…
O manequim, que é aquela espécie de boneco que representa uma figura humana, e que serve para estudos na área das artes plásticas ou para assentar trabalhos de costura, também pode ser o nome dado à pessoa que exibe modelos de costureiros, e tem dois sentidos figurados que, não sendo sinónimos, têm entre eles um ou outro lacinho de afinidade. Se se pode dizer de um vaidoso janota que é um manequim, também se aplica o termo a alguém que não tem vontade própria e pode ser, como uma marioneta, manipulado.

Ora este fenómeno em que todos se transformam em manequins para aparecer, numa pequena e inócua vaidade, nas redes de (quase) toda a gente, faz-me é pensar naqueles que, mudos e quedos que nem manequins, e pelo contrário já não tão inócuos, nem sendo na brincadeira, parecem esperar a melhor oportunidade para saltar para a ribalta e atravessar-se no caminho de alguém, e que, outro alguém manipula com vontade e interesses próprios, lhe aponta as luzes, faça ouvir-se a música e o que vier soará sempre a uma grandessíssima encenação disfarçada de improviso, acaso ou até causa-efeito natural. Esse improviso saudável que arranca o riso ou até só o sorriso e que o Mannequin Challenge tem, na rapidez com que se espalhou, e que provavelmente e à semelhança de outros poderá vir a servir alguma causa, essa sim, socialmente relevante, como o do menos artístico desafio do “banho gelado”. Parecem, estas brincadeiras, tão mais para levar a sério que as outras que se fazem para dar um ar sério… 

22.11.16

Dedo-duro

Saiu na semana passada um estudo que revela a corrupção como o terceiro maior problema de Portugal para os portugueses, apenas superada pelos problemas no emprego e na economia. Confesso que estranhei só um pouco, sobretudo por aparecer acima das sempre estridentes notícias em torno das falhas na saúde, na educação, nos salários e pensões. Desconhecendo as ferramentas e metodologias usadas no estudo e presumindo que, tendo sido dados do barómetro da associação cívica «Transparência e Integridade», o termo corrupção e as suas diferentes percepções tivessem sido uma constante em todos os tipos de questões colocadas, a minha opinião arrisca a ser apenas e só isso mesmo. Uma opinião a partir dos dados que, na transparência com que foram divulgados na comunicação social, terão na opinião pública um efeito que, muito sinceramente, me parece ser zero para ajudar a resolver o problema. Sem menosprezar o facto de, bem entendido, se falar no assunto para além dos sketches humorísticos, que existem um pouco por todo o mundo sobre o assunto, ser importante.   
Diz que mais de 80% dos portugueses crê que no Estado e os que detêm cargos políticos são corrompidos por poderes económicos, uma corrupção por isso sistémica em que os mecanismos das instituições, que deviam estar ao serviço do chamado interesse público, estão distorcidos para favorecer interesses privados. Pensa-se sobretudo nos milhões de euros que, todos os anos, os governos investem em criação e melhoramento de estruturas públicas, das estradas às escolas, dos hospitais à distribuição de energia, criando a ocasião para…a corrupção.
Esta associação cívica, que integra uma rede internacional, propõe algumas ferramentas para corrigir ou prevenir esta corrupção que aflige os portugueses. Essas ferramentas são então os chamados “pactos de integridade”. Estes constituem-se como acordos entre uma agência governamental que abre concursos para um contrato e as empresas licitantes, em que se comprometem a abster-se da prática de, por exemplo, suborno e conluio, para que o contrato vá para a frente. Os “pactos de integridade”, visando garantir a prestação de contas, também incluem um sistema de monitorização normalmente liderado por grupos da sociedade civil.
A mim parece-me tudo muito bem, inclusivamente até a preocupação da secção portuguesa em proteger quem denuncie estas práticas sem ter de correr riscos de vida, ou até só passar por “bufo” ou traidor. Mas nos pequeninos momentos em que, na vida de todos nós, vamos podendo assistir à incubação destas práticas em atitudes que, a vários níveis, simulam comportamentos regulares não o sendo, ou que fecham os olhos a irregularidades sem justificação legalmente aceite, parece-me que quem os denuncie recebe em ricochete o “elogio” de dedo-duro e não é considerado como o cidadão activo no combate à corrupção e em defesa da integridade com a qual, neste estudo, todos parecem tão preocupados. É que, ao fim e ao cabo, fechar os olhos dá muito menos trabalho do que levantar um dedo. Parece.

15.11.16

The Day After

Desde a eleição de Trump para presidente dos EUA já muita tinta correu e muitas vozes se ouviram. Das que têm uma noção selectiva da questão do que são as regras estabelecidas por cada Estado democrático nas eleições, e nas quais não me revejo, até àquelas que do outro lado do Atlântico viverão com a que é, simbolicamente, a figura que representa o seu país e que expressam o seu desconforto e legitimamente se sentem zangados com quem, também legitimamente, o escolheu.
No day after, expressão que passámos a usar para falar do que vem a seguir às grandes hecatombes, naturalmente e porque na Natureza também humana se passa assim, tudo se irá acalmando e adaptando às novas circunstâncias com a ajuda do Tempo e da intervenção da razão humana unida com propósitos comuns. E isto não é pessimismo derrotista nem optimismo alienante, é realismo que dá muito mais trabalho e não se compadece com leis do menor esforço. Importante é que se apurem as diversas causas para explicar o fenómeno, compará-lo com os que o antecederam na linha do Tempo e os que poderão estar a incubar em linhas que se cruzam a definir o Mapa-mundi.
Para além daqueles muitos norte-americanos que não aceitam, nem simbolicamente, que Trump os represente espero, sinceramente, que os que convictamente o escolheram como o melhor para o fazer, também saiam decepcionados. Na melhor das hipóteses, reafirmo eu. Vai cumprir às instituições, e às organizações partidárias que as alimentam, defender a democracia sem esquecer, acima de tudo, o estado que alcançámos de progresso a vários níveis no bem-estar da Humanidade. E se o fizerem, aquilo que Trump utilizou para vender às massas mais sugestionáveis porque mais indolentes a usar a faculdade da razão que têm para prever o futuro e fazer uso da empatia no que esta significa na capacidade de nos pormos no lugar dos outros, ou seja aquilo que foram sobretudo enormes disparates, Trump acabará, espero eu, por esquecê-los. Julgo que os Republicanos não quererão confundir-se com Trump e, a concretizá-lo, restar-lhe-á cumprir uma outra agenda mais subtil e eficaz, e não menos perigosa no meu entender, com os resultados no passado para os cidadãos dos regimes, de todos os lados, totalitaristas. A atenção dos partidos com a realidade da polis onde actuam, lá como cá, bem como a relação da comunicação social com os cidadãos, terão de ser repensadas. É que já não há lugar, como o sentiu Hillary, para só mais uma vez voltar a usar encenações e guiões e adereços para representar uma actuação e preocupação com o bem-comum que, afinal, apenas serve a promoção ou corporativa ou, pior ainda, pessoal.

Se é certo que há pessoas que fazem a diferença, isso é diferente de qualquer um, fazendo-se passar por um ser excepcional, ser essa diferença. Se também me parece continuar muito razoável a expressão de que “são as pessoas que fazem os lugares e não os lugares que fazem as pessoas”, resta-me desejar aos norte-americanos com responsabilidade que façam com que esse lugar da maior e mais antiga democracia do Mundo, que é o do Presidente, saiba moldar a pessoa que o ocupará.

8.11.16

Orçamentos

Orçamentos são documentos que servem para gerir o dinheiro que se tem na aplicação daquilo que se faz ou quer fazer. Quando se quer fazer mais do que o dinheiro que se tem ou se pensa vir a ter, há que ir buscar fora, pedindo emprestado e contraindo dívida que, de uma maneira ou de outra, tem de se prever como pagar. Nesta gestão, é importante saber quanto dinheiro se tem e se quer ter para fazer uso dele e, acima de tudo quando se gere o dinheiro de todos os que contribuem pagando taxas e impostos, onde é que se vai usar o dinheiro revertendo em benefício desses todos. Tirando isto, um orçamento de um organismo público e sem fins lucrativos, é um instrumento de alta precisão na área dos números e das contas, que implica que no final, entre os ganhos e as despesas, tenha que dar zero. Se não der para cima, há quem opte por redistribuir à última hora em actividades ou materiais que, não tendo sido necessários naquele período, possam talvez vir a sê-lo no período seguinte. Se não der para baixo, ou seja se afinal nem com dinheiro próprio nem com emprestado consigo fazer face a todas as despesas, haverá quem fique sem ser pago ou projectos que não chegam a avançar ou concluir-se nesse ano. Há depois toda uma série de formas para resolver estas questões, tirando de um lado e pondo do outro, imaginando mais ganhos sabe-se lá onde, e as contas lá se fazem para dar, imagine-se, o tal zero.
Um orçamento torna-se, no sector dos assuntos da política, a metáfora das boas contas. Aprovar um orçamento é poder governar aplicando, então, os dinheiros da maneira como se propôs. Chumbar um orçamento significa ter de ir gerindo mês a mês a mesma quantidade de dinheiro do período antecedente, sem perspectivar para além do mês seguinte. Chumbar um orçamento torna-se, em termos práticos, no retirar sem ser pela eleição democrática a possibilidade de quem está no governo governar. E, por tudo isto, discute-se o orçamento que se quer aprovado para se dizer que se está a ser rigoroso, cumpridor, transparente, certinho. Ora isto é o máximo que se pode dizer de um governante ou candidato a tal!
Mostrar as contas certinhas ou acusar de que as mesmas nunca passarão a “prova dos nove” - numa linguagem que o cidadão comum (aquele mesmo a quem vão servir os resultados de aplicação dessas continhas) dificilmente entenderá e sobre a qual parece que se podem fazer tantas leituras como as de uma obra-prima literária - é o mesmo que dizer que se discute o orçamento para se discutir a capacidade de quem o apresenta. Como se as contas e as verbas, em linguagem de números arrumados em rubricas, fossem a tradução de auscultações ao que está bem ou mal na vida daqueles para quem se gere. E quando a auscultação também se faz nas urnas, para além de um trabalho diário que deve ser o de qualquer político a tempo inteiro, na governação ou na oposição, sobretudo o eleito mas também o nomeado para cumprir o que os escrutinados pelo voto se comprometeram a fazer, então percebemos que a discussão pública de um orçamento, que pode ter momentos de discussão interna nada fáceis, é o momento de palco, arena ou ringue, do combate aceso entre adversários ou, como também acontece, entre todos, mesmo adversários entre si, contra um outro que é o alvo a abater.
Em toda a minha vida já votei vários orçamentos, mas os oito orçamentos municipais que já levo em cima, e que até no meu mundo académico corresponderiam a uma licenciatura com mestrado integrado mais parte do curso de doutoramento, retiraram-me qualquer veleidade em sentir-me uma licenciada em tal. Frequentei mas não obtive um grau que deixo para ser exercido a quem tenha a pasta e a equipa das finanças. E foi também por isso que aprendi nos sete anos que levo de vereadora que, no último dia deste mês de Outubro, votei o orçamento municipal de Évora afirmando, e cito-me: «Avaliar um orçamento acaba por ser avaliar uma proposta que, obviamente, nunca se pautará por intenções que não sejam benévolas, até mesmo quando não se concretizam.» Para terminar dizendo que iríamos «mais uma vez, dar o benefício da dúvida ao orçamento deste ano abstendo-nos. Contrariar por contrariar um orçamento seria só protestar por protestar, o que não faz parte da nossa postura, e não deve obstaculizar, por só mais um ano, e um ano de eleições, a que a CDU cumpra todas as melhorias a que se propôs e que prometeu aos Eborenses.».

2.11.16

Santinhos

Uma vez que a crónica vai para o ar no dia de Todos-os-Santos, ocorreu-me que aqui estaria uma palavra também já caída em certos usos no domínio da metáfora. Os preceitos canónicos dizem que, de morto a santo, têm de decorrer alguns anos, se bem que o prazo tenha vindo a encolher com a velocidade furiosa pela qual os tempos contemporâneos se pautam e, em menos de um ai, vi gente que foi da televisão ao panteão.
Fora ou dentro da religião, o santo é e será sempre sinónimo de puro, perfeito, incorruptível, verdadeiro, autêntico, sincero, imaculado, impecável, perfeito, e por aí fora. E quer-me também parecer que, ou se acumulam os adjectivos ou, tenham paciência (de santo até!) e é-se apenas uma meia-dose de santo. Bem ou mal servida, vai depender do tempo que convivamos com tal personagem e percebamos se essa parte não é compensada por outra, a que cai no domínio oposto, e que talvez seja a dos endemoninhados.
Quando o termo se transforma em metáfora vai por aí fora a dessacralizar-se até à banalidade e, por vezes, ganha até o carinhoso diminutivo. E não se iludam porque quem chama outro ou outra de santo ou santinha é porque o milagre – com muitas aspas – foi em seu benefício próprio e não para bem da humanidade. Mais do que virtudes heroicas em geral, o santinho fez-me foi um grande favor.
Claro que também aplicamos o termo às crianças, sem modos interesseiros em princípio. Mas até aí quem de facto sai a lucrar parece ser quem tem de conviver com esse tipo de cachopos. E aliás, quando usado com ironia, chamar a um adulto santinho ou santinha é um tudo nada insultuoso. Sendo que, no feminino, sobe, em certas circunstâncias, uns escalões na régua do escárnio e maldizer. 

Beatificação natural, diria, é a que no entanto sucede quando os que nos são próximos e de quem gostamos mesmo muito partem para sempre. Que, enfim, é muito tempo mas onde todos acabaremos por chegar. É a beatificação da memória selectiva, a que é filtrada pelo coração que é a parte do corpo onde guardamos todas as emoções e onde também guardamos os corações que pararam. Para sempre. Sem ironias e com a dor que nos faz às vezes esquecer que afinal é tudo só uma metáfora, isso do lugar que é o coração.