26.5.20

A Gorjeta

A oposição desconfinada na AR, e um pouco pelos “diversos lugares que ocupa em instituições da dita sociedade civil, regressou à habitual atitude pandémica. É a que trata de desatar a exigir na oposição o que quando foram, no caso do Governo central, ou são, nos governos locais, poder executivo não praticam. É uma velha táctica que resulta não só numa fórmula que alavanca actores políticos de fraca qualidade, como enterra eleitores que deixam, assim, de ir às urnas.
Desta vez foi, obviamente, cavalgando a onda da popularidade dos profissionais de saúde. Fizeram-no alimentando a necessidade popular de novos deuses, os que ganham visibilidade através de janelas para o Mundo, mas com vidros espelhados, dos dois lados, o que tolda qualquer possibilidade de uma relação duradoura. Os dois casos tratam, afinal, de gorjetas: a do recibo de vencimento de 60 euros dos enfermeiros que, estando de baixa, apenas reportavam as horas extraordinárias devidas do mês anterior; e a pedichince de um reconhecimento monetário para os médicos de saúde pública que estiveram destacados na batalha directa com o Covid-19.

O caso dos enfermeiros jogou com a fraca literacia de quem ainda lê resumos de notícias de jornais. E quem distribuiu o jogo foi a bastonário Cavaco. Jeitosamente, omitiu no alarde o facto de, estando esses profissionais de baixa, o recibo mensal não ser o do ordenado mas o da pensão, emitido assim por outro Ministério.
Já o caso dos médicos, não escondeu o facto de, na sua tabela remuneratória, haver uma quantia de três dígitos que prevê a recompensa da disponibilidade que os profissionais (médicos de saúde pública) aceitam para, em casos de necessidade nas instituições públicas que servem,prestarem os seus serviços para além dos limites habituais. Quantia fixa que recebem, portanto, sempre, haja ou não situações ou estados de emergência. Mas isso não impediu de terem representantes seus, até na bancada da AR, a pedinchar. E cito, de um artigo de semanário, o que se pede: “um modesto reconhecimento pelo sacrifício pessoal que estas mulheres e estes homens fizeram nesta pandemia” (Expresso, 22/05/2020). Isto num parágrafo em que, está bom de ver, no mais fácil estilo populista e demagógico, se fala de prémios a gestores e empréstimos a bancos.
Manda a educação, a que não é prioridade nos bancos das escolas, e o humanismo, que sejamos reconhecidos a quem nos serve e ajuda. Manda o civismo contemporâneo que não se utilize a condição mais confortável - pela informação ou posses relativamente privilegiadas - para humilhar os que mais delas precisam. Querer fazer-nos crer que o Estado aldraba ou que uma gorjeta resolve problemas, até inerentes a várias profissões que idealmente merecem ver resolvidos, é tentar humilhar-nos a nós, os que assistimos aos jogos de poder. E isso, mesmo numa partida de retórica, é batota.

19.5.20

Um educar miúdo

Hesitei entre dois assuntos de crónica. Os dois incluíam crianças. Um é caso que aquece instintos justiceiros que, com a mesma rapidez com que nascem, arrefecem e deixam pouco para memória futura. O outro envolve uma profissão que acompanho e de que, felizmente, conheço testemunhos directos ou em primeira mão. Decido-me por este, sem nunca deixar de pensar no outro, o trágico e inconcebível fora das tragédias míticas.

A reabertura das creches lá se deu, a medo. E não sem ter sido precedida do costumado rol de opiniões que qualquer um pode dar mais ou menos publicamente. Fazemo-lo a partir da nossa perspectiva, que estendemos ao interesse colectivo, seguindo o adágio do “não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”. Só que ao contrário, o que não é exactamente a mesma coisa. É aliás o que multiplica o “achismo” e torna raro o contributo, mesmo de quem opina de forma benevolente. É completamente diferente a disponibilidade de quem diz “faz aos outros o que gostas que te façam a ti”. Até a mesquinha invejazinha tem de se descalçar à porta.

Mais do que prestar atenção ao que dizem mães e pais, natural e felizmente preocupados (e que evitam tragédias), estive mais atenta a quem está na profissão, a quem forma os profissionais envolvidos e a quem está em formação para o ser. Com estes últimos, alunos de cursos de educação, lido frequentemente, embora para assuntos laterais à formação profissional mas, parecem-me, importantes à sua formação pessoal que, imagino, ponham em acção em contextos também profissionais.

Devo dizer que fiquei chocada com a falta de propostas, até criativas, de quem se espera que esteja na linha da frente de pensar alternativas aos hábitos instalados na relação de profissionais com bebés ou miúdos bem pequenitos. Percebe-se o momento de choque que paralisa, não se percebe que quem tem funções de direcção de serviços ou de desenho de modelos a experimentar e, eventualmente, a implementar em futuros casos semelhantes ou num futuro que permaneça nestas condições, prolongue essa paralisia inicial. E dois meses depois do choque ainda se ouviam vozes de responsáveis a “ladainhar” lamentos e demonstrando uma incapacidade gritante de se constituírem como parte da solução e contribuírem para a “segurança social” de que muitos ainda fazem parte.

O contacto físico é, sem dúvida, a expressão máxima do afecto. Ao ponto mesmo de a intenção contrária - tocar sem ser para demonstrar reciprocidade de afectos - levar muitos ao banco dos réus. E é não só instintivo em certas personalidades, como é promovido enquanto carácter essencial ao desenvolvimento da personalidade. São dados adquiridos numa cultura ocidental, extrovertida que mistura muito o privado e o público, garantindo muitas vezes que o afecto que não é recebido em privado, no seio da família (e que pode continuar com a Covid-19 entre nós), seja compensado por terceiros como os educadores e os amigos.

Pois chegou o momento de repensar a educação dos afectos, repensar que o simples e profundo gesto do beijo e do abraço que, convenhamos, até está tão banalizado que por vezes perde o seu significado íntimo para se transformar em gesto social. Essa demonstração de afecto terá de ser substituída em meio social, que as creches também são. À força, com choque, mas tem de ser. As palmas, o cu-cu do sorriso que se deixa por instantes aparecer num desviar da máscara à distância ou através da viseira, o piscar de olhos. E as palavras, claro, que vão ter de circular melhores, com sentido e sentimento, pensadas.

Todos sabemos que são muito mais os adultos que reclamam o beijo ao bebé do que o contrário, se bem se lembram de uma relativamente recente polémica que metia beijos, netos e avós... Pois parece mesmo que vamos ter de nos reinventar. Se não for quem trabalha na primeira linha da educação e quem equilibra o fazer ciência, com a variável “cada caso é um caso” a propor a reinvenção, então é porque estava algo muito mal até a Covid-19 vir estragar-nos a vida. A todos. Que haja quem faça alguma coisa, no exercício da profissão que abraçou até com um certo espírito de missão, sem ser só colocar obstáculos - que até é o oposto dos beijinhos, abraços e encorajamentos em que se tornaram especialistas - para resolver o que não queremos que nos aconteça. Nem a nós, nem aos outros.

13.5.20

Tuítar e ler na era dC

Tenho uns leitores/ouvintes muito simpáticos que, mais ou menos em privado, criticam os meus textos. São amigos e família que para além do “like” e do emoji enviam comentários apontando-lhes a densidade difícil. Agradeço muito esta atenção e aprendo sempre alguma coisa. Aprendo, por exemplo, o tipo de leitor que são e como tenho de tentar tê-los em conta. E há-os tão diferentes e com interesses tão variados.

Hoje a crónica é resultado de uma sugestão que me foi feita por uma muito querida leitora. Como é uma crónica também é o resultado de uma reflexão sobre o tempo presente. Sendo pessoa da leitura, também é sobre leitura. Gosto mais de falar do que sei, embora às vezes arrisque desmontar os assuntos, como se se tratassem de objectos que não sei como funcionam, para os tentar conhecer melhor e poder falar um pouco deles. Mas adiante.

Somos mais felizes se nos adaptarmos aos tempos do que se remarmos contra eles. Talvez fosse mais correcto dizer “cansamo-nos menos” do que “somos mais felizes”. (Agora terão talvez de voltar atrás e reler a primeira frase do parágrafo com a mudança das expressões entre aspas...). Alguns de nós preferem cansar-se mais, enquanto podem, para serem mais felizes.

Nos tempos que correm há mais gente a ler. Também há mais gente a ler tweets do que textos de 500 palavras. Gosto de tweets. E não gosto quando uma proposta minha para uma palestra é avaliada só através de 500 palavras. Há alunos de literatura que se queixam de que uma resposta em 500 palavras é pouco. Também acontece o contrário, mas esses normalmente não gostam tanto de ler literatura. Nem têm tanto a dizer sobre ela.

Sei que nem toda a gente tem gosto e tempo para ler literatura. Ou até só para ler um texto muito maior do que um tweet. E por isso cansam-se e distraem-se a meio dos textos. E até gostam do que estão a ler, mas distraem-se e cansam-se. O texto desencontra-se do leitor e, como um mau texto, não serve para nada. Mesmo que diga muitas coisas interessantes. Mesmo que muitas vezes o interesse esteja mais na forma como diz coisas que todos podem já ter pensado.

Com o passar do tempo, porque esta não é uma tendência só de agora mesmo, já deu para perceber consequências deste efeito. O efeito de cada vez nos darmos menos ao trabalho de ler até ao fim um texto mais extenso e menos óbvio. Esse efeito traz um defeito: é que já nem os textos mais curtos conseguimos ler e entender como merecem.

O combate à COVID19 parece vir demonstrar isso mesmo. Nem os tweets com indicações simples que diminuiriam a sua propagação são seguidas por muita gente. E mesmo os textos curtos, se facilitam a leitura rápida mas não têm efeito rápido benévolo, por vezes servem mesmo é a confusão e a desinformação. E a confusão e a desinformação servem a algumas pessoas, que serão sempre demais porque não são benévolas com os leitores.

O conselho que devolvo, recebendo a crítica benévola que me quer dar, amorosamente, mais leitores, também o vou dar em tweet: aproveite-se a menor distracção que os tempos COVID19 de confinamento proporcionam para transformar a perda de tempo de ler textos longos em investimento.

Ler nunca foi um acto fácil. Quem diz o contrário já se esqueceu do quão difícil foi, ao crescer, entender o que os outros diziam ou escreviam. Ler implica acompanhar raciocínios que muitas vezes não são os nossos. Isso é um gesto de interesse, nem que seja para discordar.

E é por tudo isto que eu gosto de leitores. Em particular os meus, que me lêem apesar de todos os meus longos e imbricados textos sobre assuntos de quem toda a gente, afinal, fala. Espero que um dia, esse esforço de uma leitura difícil, lhes sirva para alguma coisa. Obrigada.

5.5.20

Vamos lá ver se nos entendemos

Vamos lá ver se nos entendemos” costuma ser o início de uma conversa em que, partindo de pontos de vista discordantes, quem pronuncia a expressão tenta levar a sua opinião a melhor e põe a discordância sobretudo como uma dificuldade de comunicação. Não é aqui o caso, em que o assunto é a fase que se segue nos comportamentos sociais que vamos ter de adoptar, estejam ou não vertidos numa lei, num decreto ou numa ordem de serviço, já que quanto ao que nestes estiver não há forma de contornar sem prevaricar.

Entrámos na fase probatória de quem tem mesmo de se saber comportar em sociedade por uma questão de saúde. E, como sempre, isso tem a ver com a formação pessoal, a tal educação para além da instrução, que quando ausente por vicissitudes várias só se colmata com muita e exercitada actividade das celulazinhas cinzentas e um treinado gesto de empatia, que é o que chamamos à capacidade de pensarmos nos outros para além de nós, mas incluindo-nos também nos outros.

Do que se sabe sobre o vírus, e que a frustração da ciência diz que é pouco, já sabemos o que devemos fazer ou, pelo menos, o que não devemos fazer. A chatice é que, tirando as demonstrações de afecto que andamos há décadas a ouvir dizer que temos de ter com “o próximo” e que vamos ter de suspender, o resto até é coisa que todos sabemos que devia ser assim: água e sabão com fartura e ter consciência que o que sai de dentro de nós não é para partilhar com os outros. Asseio, portanto. Daquele que até achávamos que por ser demais não nos permitia ganhar anti-corpos, respaldados que estávamos com o adágio do “tudo o que é demais é erro”. E que depois tínhamos de explicar melhor quando o contrário, o “nunca é demais”, também era coisa de bom-senso.

Pois é disso mesmo que vamos depender: do bom-senso. Na esperança de que quem não esteja habituado a corresponder-lhe, mais dado a obediências ou, pelo contrário, a desobediências ao abrigo de uma noção muito própria do que é normal e fica bem, perceba finalmente que o que faz ou diz tem mesmo impacto. Primeiro nos que estão mais perto, e depois integrando um rebanho a que, por mais único e exclusivo que se ache, vai acabar por pertencer mesmo sentindo-se insultado.

Pensar nas circunstâncias e nos contextos ajuda muito a viver em sociedade. E a conviver. Mesmo que o medo, por exemplo e para não ser inconveniente, às vezes pareça impedir-nos de o fazer. Mais ainda: pensar ajuda, porque ajuda a entender. E é por isso que eu repito, qual oração mas sem poderes encantatórios: “vamos lá ver se nos entendemos”.