28.4.15

Bué

Hesitei em considerar bué um estrangeirismo. Nem o meu corrector automático que me aponta a vermelho a grafia pré-Acordo o considera um erro, apenas uma informalidade. E até porque é utilizado, quase de forma corrente, pela geração dos meus filhos e, de vez em quando nesta matéria de nos pormos à medida deles para melhor comunicarmos, também lá o vamos usando. Não é palavrão, é curto e expressivo, e é naturalmente humano deixarmo-nos fascinar por estas “modernices”. Mas não me tento a considerá-lo estrangeirismo sobretudo porque nos chegou com a lusofonia, e estas contaminações, ainda para mais com peso histórico e social, só enriquecem uma língua. Acrescenta-lhe valor, já que não deixamos de usar os sinónimos existentes. É verdade que às vezes se tornam “bengalas” do discurso um pouco irritantes, mas isso há muito que as há com os mais pomposos “portantos” e “efectivamentes”, normalmente reveladores de pouco à-vontade no discurso oral, mais do que sintoma de pobreza lexical.   
Bué, mesmo com este ar de interjeição, pode ser um advérbio ou um pronome que talvez tenha tido origem no quimbundo, um idioma angolano. De uso informal, significa o que se faz em grande ou intensa quantidade e qualidade, como na frase «andámos bué». Quando pronome até por vezes se lhe acrescenta a contracção da preposição “de” com o artigo feminino “a”, mesmo quando se lhe segue um substantivo masculino, como por exemplo em «estava bué da povo na praça». Há quem, inclusivamente, arrisque que esta fórmula é aparentada com o “beaucoup de” francês. Curiosa é também a apropriação que a língua portuguesa de Portugal vai fazendo do bué, arranjando-lhe plural, por exemplo, ou versões “torcidinhas” como o “buerére”.
Por tudo isto, mas não só, o bué desta crónica é um voto de hospitalidade aos que, vindos de fora e de longe, se integraram no nosso país, contra ventos e marés que foram encontrando sobretudo quando com o 25 de Abril, foram chegando das ex-colónias. Essas adversidades não existem só agora ou apenas nesse Mare Nostrum a que hoje chamamos Mediterrâneo, mas já em terra firme e entrados no sistema nacional e europeu. Aliás, até dentro do país os que mudam de terra são os que “não são de cá”, nem ao fim de várias décadas.
O multiculturalismo é uma realidade em construção há alguns séculos, que evoluiu civilizacionalmente, mas que é importante acompanhar. Certas palavras e expressões reflectem alguns modos de vida e de pensar, e podem inquietar mentes, no bom e mau sentido que inquietar pode ter. Abrir mentalidades, sobretudo no seu formato multicolor, só é possível quando haja uma predisposição para tal. É muito mais complexo do que abrir fronteiras (estaremos todos disponíveis para os receber e partilhar com eles os empregos, os hospitais, as salas de aula?) ou enviar tropas para tentar repor um modelo de vida nesses lugares de onde fogem (estaremos todos disponíveis para ir ou ver os nossos filhos partir para a guerra lá longe?) intrometendo-nos em terreno alheio. É certo que nada disto justifica que se ignorem os acontecimentos e que não se predisponha o resto do mundo – julgo que a escala é mesmo a global – a procurar soluções. Mas não se transforme o nosso choque em tresleitura de uma realidade que não é de leitura nem interpretação fácil. Comecemos pelo exercício de aceitar o bué, por exemplo.

21.4.15

The show must go on

Foi uma semana difícil, a que passou, porque eu perdi uma amiga e nós, na cidade de Évora, perdemos alguém que era detentora de um imenso saber. Não me era nada familiarmente, nem sequer íntima ou até “chegada” no relacionamento fora do contexto de trabalho em que tantas vezes, fora de horas, nos encontrámos. E por isso, também, me sinto à vontade para exteriorizar o que sinto, assim de forma tão pública.
A Ludovina foi a pessoa que me apresentou à carta ética da administração pública. Até porque a tinha afixada, para quem a quisesse ler, no serviço em que trabalhava. Fazia-o com essa certeza de quem cumpre e nada tem a esconder. E também porque a queria ver cumprida por todos quantos ali entrassem nessa condição, que também era a sua e que tão exemplarmente desempenhou, de funcionária pública.
E depois partiu o meu Ministro, o que também me voltou a entristecer. Sou de opinião que foi dos governantes que durante a minha vida enquanto estudante e depois professora e investigadora de facto assumiu, na área da educação e da ciência, essa função de servir, que é o que significa literalmente um ministério, o interesse público. Como lho ouvi dizer, “quis levar a ciência para a rua, a experimentação para a escola e a argumentação científica para os debates da sociedade e para a política”.
Estas perdas lembraram-me a expressão the show must go on, popularmente imortalizada por quem, com uma morte anunciada, ainda cantou as palavras àqueles amigos que já se preparavam para chorar a sua partida. Uma expressão que é um alento para que quem sobrevive aos que partiram continue a viver a vida, e não apenas a sobreviver, até em sua memória. O Shakespeare também disse, mais ou menos assim, que o mundo inteiro era um palco e que todos os homens e mulheres não passavam de meros actores, que entram e saem de cena. A fama, sabiam-no eles os famosos, não leva à imortalidade. Mas a memória, digo-o eu, honra os que partiram e nós amamos, nas diferentes formas de amar que a amizade conjuga.
Choramos os nossos mortos e nesse chorar não estão eles mas estamos nós. Choramos e isso alivia-nos, ou não, mas a eles, aos que partiram, já de nada lhes serve. Ainda assim continuemos a chorar, sim, porque isso é de Homem, com maiúscula. Mas depois de chorar, teremos de continuar a rir, a lutar, a exigir, a zangarmo-nos, a aprender, a ensinar, e a amar a vida que é o que eles, os que partiram, já não podem fazer.

Hoje vou ficar-me por aqui e vou ali respirar. E faço-o hoje, também, não só porque tenho de o fazer para viver, mas também pela minha amiga. The show will go on.

14.4.15

À la carte

À la carte é a expressão francesa que significa “de acordo com uma lista ou um cardápio”. Usada sobretudo nos restaurantes, a expressão estende-se a situações em que quem escolhe alguma coisa tem direito a fazê-lo sem ser num “pacote”, definido por quem dá a escolher. Normalmente, o que é à la carte pressupõe variedade e de facto a oportunidade de optar pelo que se prefere, sem ter que levar consigo algo menos apetecido ou que não agrade. 
O que parece tornar as escolhas à la carte mais raras do que a opção por um “pacote” ou “menu fixo”, ou como agora também se diz nos restaurantes um “all-you-can-eat” o “tudo-o-que-conseguir-comer” que se poderia com muita liberdade traduzir por “à enfardadeira”, são razões de preço. Fica normalmente mais económico o comensal que escolhe o menu fixo do que o que escolhe à la carte, o que em tempos de crise não é um argumento despiciendo. Interessante que, ainda no domínio da restauração, havia também a distinção de dose e meia-dose (e digo havia porque há muito que não oiço essa conversa), sendo que a soma das partes não era nesses casos, normal e exatamente, a mesma que o total, nem no preço nem nas quantidades, aconselhando-se por vezes, e em função do apetite, que duas pessoas ficariam melhor servidas com duas meias-doses do que com uma a dividir por dois.
Bom, mas não se imagine que vim para aqui falar só de restaurantes. Nem de listas, já agora. Venho falar de democracia. E de como às vezes me parece que, por economias várias, se tem vindo a impingir ao cidadão a solução do pacote, em vez de uma verdadeira e trabalhosa escolha. Trabalhosa porque necessita de tempo, explicações razoáveis e bons exemplos. Se existem já em alguns locais, e em algumas instituições, práticas, ou até mesmo ainda só experiências, mas consistentes e equitativas em várias instâncias, que tornam real pelo menos o exercício da escolha, certo é que muitas mais serão necessárias para que o cidadão comum não prossiga neste caminho de receio cada vez que sai de casa para escolher A, B ou C e afinal levar com uma espécie de ementa que acaba por lhe sair cara. Os resultados do sistema estão à vista, com uma enorme e assustadora abstenção, a pôr em perigo de falência um sistema que, se conta com o voto dos cidadãos, ficará reduzido a quê se os cidadãos não votarem?
À volta das movimentações para as eleições que se avizinham, umas mais perto outras mais longe, não há grande contributo para que a escolha seja feita de forma informada, no menu ou à la carte. Estratégias várias, algumas mesmo obscuras para quem já anda tão desconfiado de todos quantos se declaram disponíveis para trabalhar para o bem comum e dos outros que parece que os mandam não o fazer; mas também um exercício de quem tem o papel de informar as pessoas, ou usa os mesmos - felizmente cada vez mais disponíveis - meios de comunicação, mas nem sempre se preocupa em formá-las. E tudo isto a não contribuir para a boa saúde da participação democrática, fazendo crer que é tudo a mesma coisa. E também não há ilusões sobre quem mais do que apresentar soluções desfia contestações, não contribui nas negociações ou coligações – apesar das que por vezes surgem em estranhos cocktails
A persistirmos no modelo haverá cada vez mais domingos de eleições em que famílias inteiras se deixarão ficar dentro de portas, à volta de uma refeição caseira. E aí “comem” o que houver: nem menu, nem à la carte.

7.4.15

Bypass

Nas últimas semanas houve dois acontecimentos que foram programados por gente aparentemente comum e que vitimaram, cada um deles, mais de uma centena de inocentes que apenas estavam à hora errada, no lugar errado. Foram crimes, portanto. Se um deles, o do avião propositadamente precipitado nos Alpes franceses por um dos pilotos, foi feito em nome individual revelador de um protagonismo doentio; o outro, o da chacina na Universidade de Garissa no Quénia, fez-se em nome de um colectivo adorador de um Deus que se revela assim de maneira nada saudável. Ambos acabaram por se me afigurar como formas de desviar atenções: um, mais inusitado, para si próprio, outro, que tende a tornar-se dramaticamente rotineiro nesta estranha guerra santa que grassa neste mundo que conhecemos, para uma ordem que treslê leis divinas. Não foram incidentes ou acidentes, foram massacres.
Com a Páscoa, e com o que de passagem esta festa judaico-cristã tem, mas também por causa desses dois acontecimentos recentes, pus-me a pensar na palavra bypass. Bypass significa contornar, desviar. É uma passagem secundária que permite dar a volta a uma determinada situação. Tanto pode ser um caminho alternativo, se considerada uma definição generalista, como uma determinada técnica da engenharia hidráulica, ou uma operação para equipamentos electrónicos ou ainda, e talvez o contexto mais conhecido, uma intervenção cirúrgica. Nesta área da medicina, o bypass é também o nome de um equipamento que ajuda os doentes em estado grave a terem uma vida melhor, pois permite que se desviem as funções de vários órgãos do corpo, mantendo-os a funcionar. Já na eletrónica é uma operação que serve para desviar a corrente e a tensão dos equipamentos, e que é utilizada quando se tem que fazer a manutenção ou substituição desses equipamentos, tornando-se uma medida de segurança para quem está envolvido nesse tipo de processo. Na área de hidráulica, o bypass é um caminho para fazer com que a água consiga chegar até ao caminho principal, mas por vias alternativas.

Enfim, o bypass parece ser um atalho benigno e não uma espécie de passe de mágica ou ultrapassagem com artimanha. O lado bom do curto-circuito que permite a solução e não constitui um problema. Uma forma de preservar a vida, pensada e utilizando a técnica, fruto do engenho humano. Uma demonstração do poder do homem através da ciência, e não ao serviço da morte, como nestas duas tragédias. Ou como em muito menos trágicos episódios de vidas públicas, ou não, em que rebuscadas estratégias de desviar atenções para si ou para outros, mascaram com o tal e mesmo engenho, objetivos pouco claros e, normalmente, que apenas beneficiam os que montam esses desvios. Bypasses que são, afinal, manifestações de poder ao perigoso alcance de cada vez mais comuns mortais e que, para se tornarem imprevisíveis, se tornam cada vez mais terrivelmente surpreendentes e criativos. Num muito mau sentido.