Hesitei em considerar bué um estrangeirismo. Nem o meu corrector
automático que me aponta a vermelho a grafia pré-Acordo o considera um erro,
apenas uma informalidade. E até porque é utilizado, quase de forma corrente,
pela geração dos meus filhos e, de vez em quando nesta matéria de nos pormos à
medida deles para melhor comunicarmos, também lá o vamos usando. Não é
palavrão, é curto e expressivo, e é naturalmente humano deixarmo-nos fascinar
por estas “modernices”. Mas não me tento a considerá-lo estrangeirismo
sobretudo porque nos chegou com a lusofonia, e estas contaminações, ainda para
mais com peso histórico e social, só enriquecem uma língua. Acrescenta-lhe
valor, já que não deixamos de usar os sinónimos existentes. É verdade que às
vezes se tornam “bengalas” do discurso um pouco irritantes, mas isso há muito
que as há com os mais pomposos “portantos” e “efectivamentes”, normalmente
reveladores de pouco à-vontade no discurso oral, mais do que sintoma de pobreza
lexical.
Bué, mesmo com este
ar de interjeição, pode ser um advérbio ou um pronome que talvez tenha tido
origem no quimbundo, um idioma angolano. De uso informal, significa o que se
faz em grande ou intensa quantidade e qualidade, como na frase «andámos bué». Quando pronome até por
vezes se lhe acrescenta a contracção da preposição “de” com o artigo feminino
“a”, mesmo quando se lhe segue um substantivo masculino, como por exemplo em «estava bué da povo na praça». Há quem,
inclusivamente, arrisque que esta fórmula é aparentada com o “beaucoup de” francês. Curiosa é também a
apropriação que a língua portuguesa de Portugal vai fazendo do bué, arranjando-lhe plural, por exemplo,
ou versões “torcidinhas” como o “buerére”.
Por tudo isto, mas não só, o bué desta crónica é um voto de
hospitalidade aos que, vindos de fora e de longe, se integraram no nosso país,
contra ventos e marés que foram encontrando sobretudo quando com o 25 de Abril,
foram chegando das ex-colónias. Essas adversidades não existem só agora ou
apenas nesse Mare Nostrum a que hoje chamamos
Mediterrâneo, mas já em terra firme e entrados no sistema nacional e europeu.
Aliás, até dentro do país os que mudam de terra são os que “não são de cá”, nem
ao fim de várias décadas.
O multiculturalismo é uma realidade em
construção há alguns séculos, que evoluiu civilizacionalmente, mas que é
importante acompanhar. Certas palavras e expressões reflectem alguns modos de
vida e de pensar, e podem inquietar mentes, no bom e mau sentido que inquietar
pode ter. Abrir mentalidades, sobretudo no seu formato multicolor, só é
possível quando haja uma predisposição para tal. É muito mais complexo do que
abrir fronteiras (estaremos todos disponíveis para os receber e partilhar com
eles os empregos, os hospitais, as salas de aula?) ou enviar tropas para tentar
repor um modelo de vida nesses lugares de onde fogem (estaremos todos
disponíveis para ir ou ver os nossos filhos partir para a guerra lá longe?)
intrometendo-nos em terreno alheio. É certo que nada disto justifica que se
ignorem os acontecimentos e que não se predisponha o resto do mundo – julgo que
a escala é mesmo a global – a procurar soluções. Mas não se transforme o nosso
choque em tresleitura de uma realidade que não é de leitura nem interpretação
fácil. Comecemos pelo exercício de aceitar o bué, por exemplo.