27.10.15

Pessoas, Animais, Natureza(s)

Com a tomada de posse dos deputados para a 13ª Legislatura na Assembleia da República e consequente estreia de um  deputado que sozinho representará um novo Partido, o PAN, começaram logo a surgir nas redes sociais os ataques que (habitue-se senhor deputado!) fazem parte da vida de quem a passa, até por querer, a ter pública. Nada de estranho, a não ser ouvir de quem se diz democrata argumentos de ataque que se lançam neste ou naquele comentário que, imediatamente, faz com que essa dita atitude democrata, afinal máscara, caia. As opiniões, todas livres de existirem bem entendido, deixam de pertencer a um determinado sistema de argumentação quando lhes ignoram a regra. Passam a ser outras coisas, como insultos ou desabafos, graçolas ou queixinhas, de preferência a dizerem-se em privado, de modo a evitar que todas as restantes afirmações sejam entendidas também não como opiniões a considerar com seriedade, mas fugazes momentos de alguma, até desculpável, humana e saudável loucura, associada a maior parte das vezes ao humor.
Bem, mas para o que eu queria chamar mesmo a vossa atenção era para este novo Partido, tão focado numa causa com a qual não tenho grandes afinidades – a do lugar primordial dos animais na sociedade contemporânea – embora goste muito dos bichos, seja incapaz de maltratar algum e entenda que para muitas pessoas eles sejam absolutamente fundamentais para que possam viver melhor as suas vidas. Também não gosto particularmente do espetáculo tauromáquico, nem em termos estéticos, mas admiro uma boa pega, como aliás há uns anos atrás já o disse numa crónica. Por muito que lide com a minha gata como um dos de cá de casa, e em caso de catástrofe a salvaria primeiro do que qualquer outro bem, bicho é bicho, gente é gente. 
Interessa-me muito seguir o que fará este deputado naquele “circo de feras” em que se consegue transformar a Casa da Democracia, não nos momentos saudáveis de discussão mais ou menos inflamada, mas sobretudo em movimentações mais reservadas. Até porque parece-me ser um Partido completamente arredado das classificações de lateralidades à esquerda, à direita ou ao centro, num baile que já vai sendo, às vezes, mais de piruetas de fim de festa do que de coreografia com princípio, meio e fim. O deputado André Silva (curiosa combinação de nomes já que, etimologicamente, André deriva de “homem” e Silva de “floresta”) vai, talvez, dar que falar, ou não fosse ele representar os votos de aqueles que clara e inequivocamente se declararam Verdes, passando a constituir uma ameaça aos que desde há, mais ou menos décadas, reclamam para si o monopólio dessas causas. Pelos vistos não o fizeram bem ou os que não se sentiram representados não teriam eleito André Silva.
E foi a pensar nestas naturezas dos partidos, das pessoas e dos animais que dei com este breve texto de Vergílio Ferreira que partilho convosco:

Não se constrói o mundo só com a parte minúscula do homem, que é com que os pregadores do futuro julgam poder construí-lo. Há a outra parte, a interesseira, a comilona, e é essa parte que vós acenais para a ilusão. A parte grossa, a parte animal em disputa, a que dá facadas por causa de uma sardinha, a que dá tiros por causa de um olhar em desafio, a que dá pontapés numa pedra só porque tropeçou nela, ainda que fique ele pontapeado, a que rosna por causa de um osso, a que de todos os horizontes possíveis só distingue o da gamela, a pesada e grossa, a gordurosa. Em nove décimos do homem o que pesa é o animal.

20.10.15

A Paz

Alcançar a paz parece-me ser o fim último do indivíduo e da humanidade. Falo do fim com sentido de objetivo ou meta a alcançar. Mais ou menos consciente, por vezes mesmo totalmente ignorada enquanto tal e reconhecível apenas por uma vivência constante no estado oposto de guerra, o indivíduo ao longo da vida, como a humanidade ao longo dos séculos, muitas vezes ou ciclicamente, orienta a sua atuação para a obtenção da paz. Nem que seja para, logo a seguir, encetar outra empresa em que até chegar à paz seguinte muita guerreia se há-de fazer.
É desta forma que a paz reúne em si todas as contradições deste mundo, as que vão da bondade ao cinismo, da espontaneidade ao calculismo, da prudência ao disparate. É também por isso que alcançar a paz é uma tarefa árdua e que se lança mão de muitos instrumentos, ferramentas ou argumentos, quando a paz para que se caminha depende das palavras, dos conceitos e das ideias e a guerra não deixa de ser guerra. Nos momentos em que a guerra para, supostamente, alcançar o melhor, do qual uma paz fará em princípio parte, se combate pelos raciocínios, com opinião, julgamento ou exortação, é quando tantas vezes nos desmascaramos, enquanto indivíduos e por vezes com impacto num coletivo, revelando afinal o lado mais primário da dominadora espécie humana. Curiosamente como com os animais se disputa o parceiro mais forte, o território mais fértil, o lugar mais poderoso, poucas das muitas guerras entre os humanos vão para além disto mesmo.
As lutas são tão mais violentas quantos mais danos colaterais se infligem e, por isso, estar ao lado de quem faz a guerra mesmo que em nome de uma qualquer paz, se ou quando da queda, não se pode ser dano colateral, nem isso ser dado como desculpa para dela se sair o mais ileso possível. Tal como quando toca a repartir os despojos entre os vencedores não haverá quem falte à chamada, e tantas vezes uma outra guerra se inicie, quando fosse para “lamber as feridas” haveria que estar lá também, o que nem sempre acontece. É que um exército composto por quem veio de outro tendo em comum as cicatrizes é um exército que, por muito que combata em nome do que quer que seja, há-de ter a vingança como primeiro troféu. E isso não serve como argumento para se fazer a guerra em nome de outros, mas de si próprio.

Talvez tudo isto, e mais alguma coisa, se encaixe na opinião de Vergílio Ferreira que dizia que O homem não gosta da paz. Gosta só de conquistá-la. Entre uma coisa e outra há muita gente estendida. É a que tem a paz verdadeira.

13.10.15

Meritocracia

Enquanto andam pelas casas e pelos corredores da Democracia a decidir quem há-de fazer o quê para governar o País nos próximos quatro anos – que foi para isso que nos chamaram a nós, cidadãos eleitores, às urnas –, vou falar hoje de meritocracia. Parece-me ser este o mais temível sistema de opção e escolha que, no patamar abaixo da hierarquia que põe no topo a eleição democrática pelo voto, poderia ser considerado, com bondade, o garante para o sucesso da atuação dos eleitos, ou em sistemas mais fechados e menos públicos, dos escolhidos. Devolver-se-ia à escolha, e às eleições, o papel de uma atividade que me é tão cara: a avaliação. (Os meus alunos sabem bem o que para mim significa – em trabalho, em estímulo, em aprendizagem, para mim e para eles – isto da avaliação, mas adiante.)
Digo temível, isto da meritocracia, porque impõe princípios que visam eliminar as falhas, os erros, os experimentalismos, os jeitosos, num caminho para a eliminação dos possíveis telhados de vidro de quem é escolhido, já que se as “saraivadas” podem ocorrer por circunstâncias exteriores, quem com elas leva deve conseguir resistir-lhes. Afinal o jogo do poder, em qualquer nível, mede forças, ainda que forças de campos tão díspares como a real e frágil condição humana, a capacidade de trabalho, os limites de resistência e, último mas não menos importante porque se pode confundir com muitas outras características muito mais relevantes para se ser candidato à escolha pelo mérito, a vontade.
É muito curioso o que se pode ler lá pelo meio, na entrada da mais popular enciclopédia contemporânea, falo da Wikipedia naturalmente, com todas as reservas que só o nomeá-la suscita ao mundo académico, e que diz alguma coisinha a propósito da associação que vos faço de eleições, e respetivas consequências, e da meritocracia. Diz-se, e mesmo desconhecendo o ou a responsável por tal observação tendo a concordar, que numa «democracia representativa, onde o poder está, teoricamente, nas mãos dos representantes eleitos, elementos meritocráticos incluem o uso de consultorias especializadas para ajudar na formulação de políticas, e um serviço civil, meritocrático, para implementá-los.» E tocando no que considero ser o cerne da questão, acrescenta: «O problema perene na defesa da meritocracia é definir, exatamente, o que cada um entende por "mérito". Além disso, um sistema que se diga meritocrático e não o seja na prática será um mero discurso para mascarar privilégios e justificar indicações a cargos públicos.» Eu sei que é a Wikipedia! Mas precisamente porque é a Wikipedia e dá a volta ao mundo, retira qualquer interesse particular no nosso caso, o português e caseiro estado do momento presente.
O Vergílio Ferreira, que muito escreveu, quer em ficção quer em ensaio e reflexão, mais sobre os méritos e desméritos dos insondáveis comportamentos do indivíduo ao longo da vida e perante as realidades que a definem, faz no seu diário, entre 1984-85, uma paródia a um adágio popular que estende ao comportamento coletivo, em sociedade portanto, o que considero um retrato de quem, nos quais me incluo, começa a descrer de alguma vez ver acontecer em tempo de poder assistir à implantação da meritocracia como princípio orientador. Escreveu ele que «Num mundo de cegos quem tem um olho é aleijado.» Felizmente, digo eu, que as muito minhas descrenças não me impedem de acreditar nas gerações futuras e ir tentando abrir alguns olhos no tempo que a mim me resta.

6.10.15

O ano de Vergílio Ferreira

É um prazer estar de volta às Crónicas de Opinião da DianaFM, desta feita depois de umas mais prolongadas férias do que o habitual, motivadas pelas eleições legislativas de domingo último, precedidas do igualmente habitual período de campanha. Habitual mas estranho. Pareceu-me que, após 41 anos de Democracia e 105 de República, cá dentro, e 25 anos de Reunificação da poderosa irmã europeia Alemanha, ao tomar o período de campanha eleitoral como tubo de ensaio de comportamentos sociais com impacto na opinião dos indivíduos que tende a generalizar-se às massas, o balanço possível da observação de reações várias é de que algo, ou muito, está ou mesmo a mudar ou, pelo menos, a reclamar mudança.
As mudanças fazem-se, normalmente, por desgaste e o desgaste contemporâneo não me parece que se resolva nem com cortes que ainda que aparentem ser radicais se revelam fugazes, nem com uma inércia que redunda em fatalismo. Vivemos numa época em que a mente, a seguir ao corpo, está cada vez mais desocupada pelo conforto que lhe vai proporcionando a evolução técnica, mas que continua a ser efémero porque mortal, exigindo o mais interdito que lhe traz maior prazer ou simplesmente confundindo-se com os ritmos naturais que lhe poupam energia e obedecem à lei do menor esforço. 
Dias como os que vamos vivendo, e sim falo também da vaga de refugiados sírios, mesmo que sejam dias políticos que impõem argumentos mais complexos porque respeitantes ao coletivo, mexem com cada um de nós individualmente e para além daquilo que é a nossa esfera familiar e sentimental. Às vezes quando nessa esfera mais íntima soam alarmes, pensar no resto do mundo é uma forma de irmos dando razão à existência. É ocupar-nos a mente, agora que o corpo está livre do trabalho mecânico, substituído pela máquina, e o pensamento se enche também de espaços que o passo seguinte da civilização humana – ir aliviando as tarefas do raciocínio - vai deixando para que o Homem usufrua dessa conquista à ociosidade. Pensar torna-se um ato de resistência quando o que é cómodo para o corpo parece invadir a razão. Ou quando nos damos conta de que contam com a nossa ociosidade para pensar em vez de nós, como se o efeito nos fosse tão benéfico como quando a máquina lava por nós a roupa.
Por tudo isto, e porque ao longo deste ano de crónicas vou comemorar os 100 anos da vida que Vergílio Ferreira continua a viver nas palavras que nos deixou, a propósito de cada crónica citarei o professor, escritor, filósofo que, não sendo de Évora nela viveu 14 anos, retratando-a  como poucos vi de forma tão conseguida fazer. Vergílio Ferreira fez de Évora uma personagem e isso interessa quem quiser conhecer Évora, por dentro, ou até quem já a conheça, num saber de experiência feito.

Porque as opiniões se fazem de palavras que exteriorizam e partilham pensamentos e, as mais conseguidas, podem fazer a diferença na vida das pessoas e mudar alguma coisa. Ou não. E a consciência dessa possível impossibilidade é, por si só e na minha opinião, já um desafio a partilhar com quem gosto e vou fazê-lo convosco. Escreveu o Vergílio Ferreira no seu Diário a que chamou Conta-Corrente: Porquê? Para quê? Economiza os teus «porquê» e «para quê». Ou utiliza-os só até onde houver resposta. Porque a última resposta a eles é o impossível e o vazio. Ou então terás de mudar de universo. E estás cá tão bem...