30.4.19

À sombra de uma azinheira

As crónicas da Diana não são espaço de crítica de livros. Antes pressupõem, e muito bem, a visão política e sobre a Política. Mas eu, que por feitio profissional, me movo no mundo dos livros que são feitos por e para pessoas, não consigo deixar de usar amiúde os vasos comunicantes que ligam a Política às Literaturas. Utilizo o plural numa, porque o sistema cultural em que a arte verbal acontece é também plural. Mas mantenho o singular noutra, pois ela é aqui sinónimo de uma visão de princípio para a governação do Mundo, independentemente das particularidades que há, bem entendido, nas diversas circunstâncias em que é preciso actuar para que “a Cidade” se organize e funcione o mais harmoniosamente possível. Posto isto, a crónica de hoje que prepara Maio, mês também do trabalhador, é crónica inspirada em livro.

Motivos vários quiseram que atrasasse a leitura de um certo livro até há uma semana, apesar da amizade e consideração que me liga ao seu autor. O propósito da sua escrita foi por si bem enquadrado quer de viva voz comigo, quer aos microfones desta Diana. Após a leitura fica-me o lamento que o trabalho de quem se diz Editora seja igual a zero. Uma negociata, a destas “editoras-vaidade” como a Literatura a sério bem lhes chama, que tende a atirar para o lixo o que não é. Só vêem até ao seu bolso e desmerecem o valor, sobretudo simbólico, que o livro tem e deverá continuar a ter para autores e leitores. Uma questão de respeito, seriedade, cuja ausência não consigo ultrapassar nem calar. É tantas vezes assim que se mata à nascença algo que podia ter uma longa e boa vida para além do circuito que se deixa ficar pequenino e pouco faz em prol do público. Enfim, avancemos.

Logo a abrir a prosa que nasce da memória, entramos precisamente num mês de Maio, Alentejo geograficamente profundo, debaixo de um daqueles calores que, inenarráveis, encontram nesta escrita as imagens (com cheiro, som e temperatura) certas e próprias de quem as sentiu mesmo. Através das páginas do livro vamos entrando num mundo simultaneamente conhecido e ficcionado, íntimo e colectivo, próprio e de tantos outros de uma geração que nasceu na segunda metade do chamado Século do Povo. Se a vila alentejana é o lugar paradisíaco da infância, como são todos os das infâncias felizes, é também o lugar de purgatório para os que não têm ou a sorte ou a oportunidade de fazer a sua própria sorte, seja por que motivo for, pessoal, familiar, social. E quase tudo ao ritmo do comboio, esse símbolo do progresso que para alguns está só de passagem e pouco adianta às vidas. Pouco mais que um relógio, um calendário, uma carta ou uma carroça que leva e traz notícias e gente dentro.

O que me sensibilizou neste retrato ficcionado e tão realista de um Alentejo foi o quão paradigmático é deste lugar ao Sul. A galeria de personagens tão autenticamente atraentes, o que não tem só a ver com os modelos inspiradores, mas sobretudo com o afecto genuíno de quem verte memórias na escrita e homenageia lugar e almas. Ficamos a perceber melhor por que um homem dedica uma vida a querer partilhar esforços e sucessos com o “seu” colectivo. E como o lugar da escrita, e desta literatura autobiográfica e memorialista, é um comovente momento e monumento de homenagem a um certo povo não tornado massa informe e manipulável a que muitas vezes, hipocritamente, se dá o nome de Povo, assim com maiúscula.

Se o livro traz “a peso” o progresso que o comboio representa, o que impressiona é como nada disso parece, até aos dias de hoje, arredar das pessoas dali que é também o aqui, para o bem e para o mal, uma mentalidade que tem dificuldade, ou que em sentido contrário tem é mesmo vontade e faz por isso, em deixar de querer viver a vida “à sombra de uma azinheira”. Que o progresso não precise que um dia se lhes arranque a azinheira, e que a vida fora da sua sombra lhes dê a força, só e muito sua, para de lá sair, desse tempo mítico da infância também de uma sociedade democrática construída por todos e não só por, e consequentemente para, alguns. Que Maio também sirva para pensarmos nisto.

23.4.19

Os Democratas

A viagem era curta e pouco amiga do ambiente. Curta porque foram muitos quilómetros feitos em pouco mais de 30 minutos. Pouco amiga do ambiente porque parece que, afinal, tudo o que vai para além do ritmo natural de um ser vivo pode ter um impacto negativo no que está à sua volta. Embora, depois da histeria gasolineira da semana passada, comece a pensar que antes de que a Natureza alguma vez retalie sobre o ser humano, já os seres humanos, de uma forma ou outra, se tramaram uns aos outros, aos poucos. E tudo bastante ajudado pela estupidez de muitos mais do que só aqueles que, nada tendo de estúpidos, apuram, com o aplauso desses, o dom da manipulação. Mas voltemos ao dia daquele vôo.

A revista mensal de Abril da transportadora aérea que nasceu nacional trazia, como é agora costume neste mapa contemporâneo em que aparentemente têm lugar de destaque todos os ofícios humanos que possam ser transaccionados, um texto de autor de literatura. Gonçalo M. Tavares, em formato edição bilingue, ocupava a página ímpar de um par delas que se enchia com título, autor e imagens trabalhadas. E o que me chamou a atenção, não fosse só o nome do autor que se reconhece com gosto, foi o título do texto: “Conversa sobre democracia, num banco de jardim”.

Quem conhece o Gonçalo M. Tavares reconhece sem estranheza a sua maneira de arrumar os sons nas palavras, as palavras nas frases, as frases no texto que criam ali no papel a imagem do que se vê e ouve naquele mundo imaginado. Mas ouvir uma conversa de jardim sobre Democracia em Abril, nas nuvens, pode ser surpreendente. Agradavelmente surpreendente. Depois recorda-se que, de um dos livros folheados do autor, aquele texto não era afinal estranho. O livro de onde saía era sobre uma viagem também, com conversas entre um eu e outro eu, parecia-me. Mas ali, numa revista que vende como destino de fugas paradisíacas lugares onde, apesar disso, vive e se governa gente, parecia estranho.

É o mês de Abril em Portugal e soa-me muito bem aquele pedaço de boa prosa em português a misturar-se com personagem de nome estrangeiro de referência mítica e a dizer coisas tão acertadas como só os que conhecem o poder das palavras sabem dizer e ler. E cito a frase que encerra o texto e que me acorda a por vezes tão dormente boa esperança ao aterrar em Portugal no cabo da viagem: “A decisão política de um democrata, diz Jonathan, é o ato do corpo que envolve mais sentidos humanos: além dos cinco habituais, ainda o sentido de justiça.” 

E eu apercebo-me de que não é com abraços, beijinhos e olhos em alvo numa máscara de lírio pendente na cara que se fazem os democratas. E que é o tempo de perceber porque, ainda assim, teremos de continuar a repetir: “25 de Abril sempre!”

16.4.19

Os incrédulos

A Páscoa é a Festa judaico-cristã. Para os crentes não há festa como esta. É nela que se celebra a vida depois da morte. Haverá lá coisa mais reconfortante do que saber que se permanece vivo no fim da história e que o “foram felizes para sempre” afinal não é a fingir! Apesar destas certezas em algumas pessoas não afastarem medos, nem demoverem vontades de deixar nesta vida o que não podem levar para a próxima. Mas adiante, porque estes desconfortos são de quem procura uma ordem fora do coração e alojada apenas nos neurónios, o que não dá grande ambiente quando se convive com gente de quem se gosta e de coração e neurónios no sítio e a funcionar bem.

Há estas coisas da Religião que trazem a alegria a muitos e depois há também as coisas da Ciência que se agarram àqueles que, por definição, têm sempre poucas certezas e vivem cheios de dúvidas, à procura de provas. Às vezes, mais raras, convivem estas duas personae em espíritos abençoados que conseguem, de forma sublime na minha quase invejosa opinião, ir conciliando o mistério da Fé e a inquietação da Ciência. Uma felicidade que, talvez nos menos crentes em mistérios e mais ansiosos em poderem descansar perante a incerteza da Ciência, se consegue quando acontecem coisas como a primeira fotografia de um buraco negro. E assim como os incrédulos de Fé tendem a fazer chacota com as certezas dos crentes, assim também os houve quem, de espírito habituado à paródia, tratou logo de, no ambiente certo para isso, fazer piadas com fotografias semelhantes em lugares mais banais do que lá no meio do Universo.

O que não tem piada nenhuma, e é até um bocado triste, foi a notícia daquele bando de “cientoligiosos” que se puseram a caminh0 do Pólo Norte para provarem que a Terra não é redonda. Mas a eles também, como aos meus ouvintes, eu desejo uma boa Páscoa! Pode ser que lhes passe...

9.4.19

O logro da opinião pública

Eu sou do tempo do pós-25 de Abril em que toda a gente falava de Política. Muitas pessoas quase analfabetas discutiam a sua opinião fazendo ressalvas sobre o não perceberem nada daqueles assuntos, mas... E quando os interlocutores eram de uma elite que tinha passado os anos precedentes a 74 a ler e discutir clandestinamente sobre assuntos proibidos, invariavelmente a resposta a esse auto-apoucamento era de louvor à livre expressão de opinião. Louvava-se a forma como o estavam a fazer, argumentando em público sobre como gerir a coisa pública, já que em Democracia isso era fazer Política. Bem entendido que esse foi o tempo em que a percentagem dos que acorriam às urnas nas eleições fazia desses dias verdadeiros dias de romaria e festa. 

Era a infância da Democracia em Portugal. Essa idade de ouro que muitos olham com uma certa nostalgia. Uma nostalgia que se pode revestir de duas faces: a realisticamente pessimista que lhes retira as expectativas de que alguma vez a Democracia seja o adulto que tão feliz infância prometia; e a realisticamente oportunista que continua a dizer que dá voz a todos, mas que acaba por usar para si mais umas vozes que outras, resultando a habilidade que para calar umas as outras berrem desalmadamente. E isto, obviamente, não faz nada bem ao ambiente que se quer adulto, sem ser cinzento – ou vermelho, porque o que importa não são as cores mas a monotonia das mesmas. Quando se mistura tudo não se dá atenção a nada. Na mesma lógica, o que é de todos não é de ninguém. E isto, em Democracia, é muito perigoso.

Vir dizer que a opinião pública está mais exigente e escrutinadora é enganar as pessoas. Tal como chega dizer às pessoas o que é permitido ou proibido em Democracia, o que se despenaliza e o que se liberaliza, porque as pessoas exigem integridade e transparência. E depois esquecer-se que já houve momentos em que quem diz isto, como foi caricaturado, dizia que “é proibido, mas pode-se fazer”. Tudo isto para agradar a quem é a favor e a quem é contra e, numa chicana, vender-se a todos como se o todos fossem uma massa que se deseja informe e mais fácil de moldar. Populismo, é o que se chama a isto. 
Tratar a opinião pública assim como uma confusão de vozearias e, quando útil, promovê-la a fiel da balança de políticas públicas, usá-la usando os seus imponderados e epidérmicos argumentos, que tantas vezes lhe são injectados por elites bem organizadas e quando dá mais jeito, é um logro, uma intrujice, uma peta. Mas, hélas!, essa opinião pública, assim aconchegadinha, é a que, quiçá, se dará ao trabalho de ainda ir votar. E é por isso que o voto obrigatório já foi para mim uma realidade menos necessária e mais distante. 

A opinião pública tem o seu quê de lirismo, e eu explico porquê. Quem não estuda literatura - um campo com técnicas, métodos, história e teoria próprios - poderia dizer que aquele menino que, quando a escola não era a tempo inteiro ao terminarem as aulas não tinha ninguém em casa com quem ficar, dizia que ficava “fechado na rua”, estava a fazer poesia. Não estava. A frase bonita que disse era apenas reveladora de uma incompetência linguística, um ainda imaturo uso da linguagem, facilmente confundido com a capacidade de metaforizar. Esta é própria dos Poetas, aqueles que tantas vezes, como eu já também tantas vezes disse e não me cansarei de repetir, olha para o Mundo com um olhar inaugural, como se fosse a primeira vez, e lhe descobre o que está escondido ou esquecido. Como também não me cansarei de, na medida das possibilidades que estão ao meu alcance, contribuir para que a opinião de um que se juntando a outros, e eventualmente contribuindo para a opinião pública, seja baseada no uso do siso, usando as faculdades da razão, com a liberdade de ter a sua forma de, precisamente, pensar por si.

2.4.19

Não, não é normal

Não sei se alguém já alguma vez vos pediu que metessem uma cunha para que fulano, que conhecem vagamente mas é sobrinho da prima do vizinho impecável, fosse desempenhar uma determinada função; e que o fulano tivesse conseguido por isso o cargo e tenha sido altamente incompetente e incapaz. Deve ser uma vergonha... para quem meteu a cunha. Mas há quem ache normal estas cunhas e anormal quem não lhes ceda e não ache que, ser aquela pessoa a quem se mete cunhas, é crescer alguns centímetros.

Pois é, as relações entre membros da mesma família no mesmo Governo não é normal, mas também não devia ser tema da conversa que para aí vai só porque sim. Elas, de facto, são também sinal de fechamento de certos grupos em determinadas funções, para além de serem resultado de crescer com interesses e conversas à mesa em comum. E dos cargos políticos em equipa terem de estar assentes em relações de uma confiança que só imagino que deva existir equiparável quando nos metemos nas mãos de um cirurgião.

Essas relações que existem em todos, repito, todos os Partidos, estendem-se a autarquias, mas também, por exemplo, a universidades (a famosa endogamia que compete com as chamadas “formações de aviário” e que acabam por desvalorizar as próprias instituições, independentemente do mérito de quem nelas corresponda a esse perfil), quando se tornam tão visíveis como agora, só terão, atrevo-me a alvitrar, solução compósita e de frentes várias e simultâneas: que os estranhos à família estejam particularmente atentos para que a relação familiar não seja prejudicial ao resultado do desempenho definido para a função; que se constituam mecanismos dentro das organizações em que o mérito seja previamente escrutinado, no caso de cargos por eleição, antes de os familiares se constituírem como única solução ou opção; e que ao mínimo deslize de alguém que esteja nessas condições se exonere a pessoa e que quem a substitua não possa estar nessa mesma condição. Obviamente que isto é ilegislável, mas assim como nada há a proibir a situação presente, estes termos seriam uma boa referência. E a Comunicação Social poderia, então, aprofundar muito mais os casos que deram para o torto, do que andar só a soprar a espuma dos dias para nos dar matéria para umas piadas, algumas bem divertidas, diga-se. São casos não normais, merecem mais atenção do que só serem faits-divers, que é o que vai acontecer quando, e se, se abrir mesmo este assunto assim transformado em Caixa de Pandora.

Quando me convidaram para um dos alguns cargos políticos que já exerci e o comuniquei passadas umas semanas a uma pessoa próxima da parte da minha família que sempre teve membros politicamente ativos desde há quase 100 anos, essa pessoa perguntou-me quem tinha dito a quem me convidou de que família eu era. A expressão da pessoa, por amizade estou em crer, quando lhe respondi que essa pessoa ainda não sabia, foi quase de desilusão. É o que temos, e não, não me parece que deva ser normal.