28.2.17

As Borlas

Esta história mal contada dos offshores descontrolados na legislatura passada lembrou-me o curioso processo das “borlas”. Não aquele enfeites pendentes de fios de lã, nem a sinédoque que dá o nome ao todo de certos barretes ou insígnias doutorais. Falo mesmo daqueles serviços ou coisas que têm um preço mas que se conseguem obter sem pagar.
A borla é irmã da cunha. Mais pobre, é certo, porque pressupõe que não haja dinheiro envolvido, ao contrário da cunha que se vale tantas vezes de um outro rico produto-metáfora: a luva. Enfim, tipos de procedimento que desde que existe consciência social do poder, e isso já foi há muito, muito, tempo, terá sido praticado, mesmo quando poder vai variando os seus sinónimos figurados, desde o lugar político numa instituição, ao favorzinho de deixar passar à frente e à sorrelfa dos que se organizam numa fila de caixa de supermercado.
A borla acaba por ser uma prática tão malandra como a cunha, e revela um grau invejável de coesão social pois atravessa posições e bolsos de várias estaturas e envergaduras, mantendo-se por mais pequena que seja como um aleijão, ou pronto vá lá, uma mossazinha de carácter num sentido indisfarçavelmente democrático. E atenção que também não falo de favor. Os favores são legítimos, passam por um processo de avaliação de activos e passivos que os praticam, e em que não haverá terceiros prejudicados. É uma coisa que sendo assim mais íntima é, se calhar até por isso, um sinal de gentileza reflectido nas formas com que nos dirigimos, simpaticamente e com educação, aos outros.
E se em todo este tipo de processos malandros ninguém fica bem numa perspectiva de formação de carácter, normalmente até servem para ir corroendo o sistema em que se praticam e onde se finta a lei, a regra ou até só mesmo a boa-prática de convívio e camaradagem. Às vezes nós nem damos conta disto enquanto prática desviante porque se instala como prática dominante e quem não age assim é porque é parvo. Outras vezes gozamos de fora este tipo de situações e exclamamos que estão bem uns para os outros, ou que só se estragou uma família. Enfim, quem vai à missa e acredita na redenção pela confissão terá de admitir que não é coisa que se faça, isto de reclamar excepções para si, prejudicando o próximo. Pode acontecer-lhe como ao Frei Genebro do conto do Eça de Queiroz, que eu, já agora, recomendo como leitura para amanhã, Quarta-feira de Cinzas.
Mas o que acaba por me chocar ainda mais nesta banalização do mau comportamento cívico, nesta generalização que leva boas almas a serem arrastadas numa onda de desatenção até mais do que de indiferença, é o requinte de algumas pessoas que tão bem lidam com estes assuntos. Como se sabe, quem faz o bem não olha a quem, e estas malandrices passam mais despercebidas quando quem pede e que facilita se remete a uma discrição espertalhona. O que já me espanta é que se engula, ou queira fazer os outros engolir porque também se está metido na marosca, o comportamento e atitude de quem, com requintes de malandrice, alardeia que faz o que faz fazendo passar por um favor a alguém ou a alguma instituição algo que é do seu próprio interesse. É que os favores pedem-se e fazem-se, como eu disse, em silêncio. Quando apregoados normalmente escondem intenções e escondem-se mesmo, pela voz da própria pessoa, atrás de conceitos como coragem, espírito de missão e muita honra. Por favor! 

21.2.17

Alternativa

Poderia voltar a falar de Trump e das eleições americanas para tratar a “alternativa” como um conceito que tantos procuram agora esvaziar do seu sentido próprio e dar-lhe um sentido que a inclui na postura da não-verdade, versão adocicada de mentira, outra palavra infelizmente já tão banalizada e gasta. Mas o que vou dizer aplica-se também, como uma luva, a situações de pré-eleições, e pode acontecer num concelho perto de si. Não é uma denúncia de situações largamente acompanhadas por gente “batida” nestes assuntos, longe de mim imiscuir-me em festas para as quais não fui convidada. E como todos sabemos, há ausências de que se faz parte previsivelmente desde o princípio em que as festas se organizam e que, inegavelmente de forma coerente, se mantêm até ao arrumar das cadeiras em cima das mesas. Não vale a pena recontar versões de uma história curta em que os intervenientes estejam por aí, e não tenham sido mortos e enterrados, nem que seja com uma “sentida homenagem” como soe dizer-se. E tudo sem tristezas, pois claro, porque como também diz o Povo deste país à beira-mar plantado: “há mais marés do que marinheiros”!
É tão somente minha intenção, aqui e agora, lançar, a quem queira ouvir-me, um alerta. É acima de tudo uma palavrinha que sendo breve tem muito a dizer, palavra da autora, para aqueles que, ainda sempre convencidos de que quem vive activamente no meio dos partidos políticos é “farinha do mesmo saco” (que só entendo e confirmo se a farinha forem os indivíduos da espécie humana, e o saco o caldo da cultura local em que estão metidos e de onde não querem sair). É um tentar fazê-los entender de que o todo pode ser melhor do que as partes, e que temos o direito de, consciente e criticamente, recusar o todo que começa a parecer-se demasiado com as partes com que menos nos identificamos e que não temos de “engolir” a qualquer preço. Falo evidentemente de preço como valor, ou melhor, valores pelos quais aceitamos conviver, discutir, trabalhar e produzir numa determinada equipa para um objectivo que até podem dizer que é comum mas que, nos casos para que alerto, são só individuais, próprios e, até admitindo que qualquer um de nós deva retirar de situações em que nos empenhamos vantagem, nem que seja no gosto e prazer na actividade em si-mesma, normalmente gente como esta usa para disfarçar vantagem de sacrifício.
Ora a palavra “alternativa”, mesmo quando usada na anglo-saxónica expressão TINA – there is no alternative - vem do latim alternativus, e significa, etimologicamente, “escolha entre duas opções”. Se, por um lado, a análise da palavra mostra que nela já existe um radical (alter) que, em latim, significa “outro”, podemos considerar que a expressão “outra alternativa” é uma redundância ou um pleonasmo. Não podemos, no entanto, esquecer que, quando se fala em "alternativa", não se tem necessariamente uma dualidade, e se pode abrir um leque para uma multiplicidade delas. Ou seja, quando se fala em "alternativas", pode não se estar em face de apenas duas, mas até mesmo de várias para escolher. É até, em democracia, sinal de vitalidade dos cidadãos na vida das instituições.
Já na tauromaquia, "a alternativa" é a profissionalização do praticante desta arte, o que me leva a perceber que há quem tenha como única opção de vida "tomar a alternativa" e tornar-se na única opção de alternativas com quem nunca disputou o lugar. Obviamente, por falta de comparência de outros ou de capacidade de evitar previamente a ascensão ao lugar de quem nunca percebeu, nem quis perceber de forma escorreita, da arte que se propõe a exercer. Felizmente, lá para Outubro, poderemos exercer em liberdade a democracia, o que significa que há sempre a tal outra alternativa. 

14.2.17

Demolidoras

Assistimos na semana passada a várias cenas de televisão com demolições de um bairro clandestino de barracas no concelho da Amadora. Houve o caos óbvio, houve os espectadores participantes, houve as vítimas resignadas, houve as vítimas a choramingar por causa de outros que um dia poderão ser eles próprios. Houve relatos na primeira pessoa, houve diz-que-disse. E houve um pequeno coro de deputados da Assembleia da República que foram carpir aos microfones e câmaras da televisão.
Não é minha intenção subestimar a pobreza que se espelha nestes exemplos de pessoas que continuam a viver em condições sub-humanas. Não é minha intenção afirmar que, por magia, se resolvem agora problemas de décadas sobre a habitação social. Não é minha intenção isolar este problema da habitação dos outros problemas a ela associados, como o desemprego, a desestruturação de redes familiares e sociais, os comportamentos de risco, o descuidar da saúde. Não é minha intenção dizer que não se deva dar a conhecer aos telespectadores as realidades duras em que vivem sectores da sociedade, reflectindo uma inesgotável fonte de miséria desde há séculos, e que parecem ainda mais chocantes quando o caminho do progresso social até tem levado a que muitos destes ciclos de segregação social se tenha quebrado. Estas vidas são elas mesmo demolidoras da imagem de uma sociedade tão evoluída em tantas outras áreas.
Falo de toda uma cultura, como modo de estar, pensar e agir, que não escolhe sectores da sociedade para um “deixa andar”. Com a quantidade de associações, ONG, instituições que reúnem enormes esforços solidários em todos os concelhos e muitas freguesias, falo de uma cultura que aceita a miséria como uma inevitabilidade, a que a vitimização, própria ou também ela à sua maneira solidária, nada ajuda e que parece não levar a recorrer ao que está disponível, numa inércia incompreensível e que nos desperta sempre a desconfiança da ilegalidade e do crime, tantas vezes injustamente.
Falo de uma forma de fazer comunicação social que não procura o suficiente para nos dar a nós espectadores a informação de que se dizem especialistas. Ao ver aquelas imagens perguntava-me quando teria sido decidida a demolição, com que medidas adicionais, para além da natural e louvável acção de erradicar estas barracas a que alguns continuam a chamar casas, qual teria sido a posição de todos os vereadores sobre este assunto, o que constaria dos relatórios técnicos que levaram a esta decisão política… Bem sei que nem todas as Câmaras Municipais fazem rimar as formas de comunicar com a transparência a que estão obrigadas, mas estes assuntos constam normalmente de uma agenda pública e são discutidos e decididos em reuniões públicas. Demolidor da informação cabal, este tipo de tratamento noticioso.

Mas falo também de uma forma de fazer política que leva deputados da Assembleia da República a ultrapassar os eleitos locais, alguns até da mesma cor política imagino, protagonizando o dito coro de lamúrias e lembrando outra espécie de atitude, pertencendo ao tipo dos abutres que ficam à espera que uns matem, outros esfolem e eles tirem o seu proveito. É o tipo de maneira de fazer política só ultrapassada, na escala do bem-fazer-ao-mal-comum, à política do boato, essa sem dar cara nem voz e, só por isso, mais difícil de desmascarar. Mas que as há, há! E são demolidoras do que é Política a sério.

7.2.17

Síndrome do saco-de-plástico

Todos sabemos já que o plástico é uma substância que resulta do progresso tecnológico. Também sabemos que a tecnologia, graças à investigação científica e à inteligência humana, tende a evoluir e a aperfeiçoar os seus produtos. Por isto é necessário esclarecer desde já que o tema desta crónica, ao falar de plástico e sacos-de-plásticos tem o seu quê de regresso ao passado. É que o que digo refere-se ao tempo em que pululavam aqueles sacos-plásticos barulhentos, tanto mais barulhentos quanto mais espesso era o plástico, o que se por um lado lhes reforçava a resistência, já que os fininhos dificilmente chegavam do supermercado a casa inteiros, por outro lado feriam como lâminas as mãos de quem os transportava.
Importa também esclarecer que se define síndrome como um conjunto de manifestações ou condições clínicas de uma ou várias doenças. Uma síndrome pode, por isso, revelar vários problemas e não apenas um específico a quem dela padeça. Também me parece que a investigação e terapêutica das síndromes são cada vez mais, o que também faz, felizmente, com que muitas delas passem despercebidas ao olhar comum nas sociedades saudavelmente diversas e integradoras.
Mas a síndrome de que falo hoje é de sentido mais figurado do que a do campo da medicina, e refere-se a sintomas ou sinais de comportamentos em sociedade, o que pode ser interessante ter em conta quando nos interessamos por questões de Cidadania ou Política, dois níveis de uma mesma matéria. Neste sentido figurado, a síndrome surge como uma situação crítica e causadora de receio ou insegurança. Infelizmente, mais do que episódios agudos, há síndromes destas que parecem tornar-se cada vez mais crónicas.
Ora a principal característica desta que chamo “síndrome do saco-de-plástico” manifesta-se em seres humanos que, numa definição curta e bastante grosseira mas também certeira, fazem muito barulho mas não prestam para nada. De acrescentar que o muito barulho pode estender-se para lá do mundo dos decibéis e resultar em marcas físicas mais evidentes da violência. Podemos falar de bullies, de fanfarrões, de provocadores, o que até acaba por ser um diagnóstico muito mais rotulador do que a ligeira classificação de sofrer da “síndrome do saco-de-plástico”. 
De qualquer modo, fica o alerta para o caso de o caro ouvinte/leitor se cruzar com quem pretende mudar e melhorar o mundo, ou pelo menos aquele mundo em que vive, e o que até é muito de louvar, mas o faz esbracejando e gritando muito, prometendo alterações profundas, que normalmente não explica de forma cabal como, caso estivesse nas suas mãos mudar o estado das coisas. Parece-se muito e só aparentemente com uma cidadania activa, mas é apenas uma táctica para convencer todos de que se irá continuar a caminho do caos se não forem elas ou eles próprios a tomar conta da situação. O problema é que, vai-se a ver, quando passam para o lado de meter mãos-à-obra esse vento de mudança sai do saco de fininho e deixa tudo na mesma, se não for pior.
Curiosamente, a língua inglesa tem no seu ousado e rude dicionário de calão urbano uma expressão que talvez se possa aplicar a casos muito graves de quem demonstra ter certos sinais desta síndrome, e que também usa o saco como metáfora. São os chamados douchebag, que eu não vou traduzir mas que os interessados encontrarão se procurarem num qualquer motor de busca da Internet, está bem?