Esta história mal contada dos offshores
descontrolados na legislatura passada lembrou-me o curioso processo das
“borlas”. Não aquele enfeites pendentes de fios de lã, nem a sinédoque que dá o
nome ao todo de certos barretes ou insígnias doutorais. Falo mesmo daqueles
serviços ou coisas que têm um preço mas que se conseguem obter sem pagar.
A borla é irmã da cunha. Mais pobre, é certo, porque
pressupõe que não haja dinheiro envolvido, ao contrário da cunha que se vale
tantas vezes de um outro rico produto-metáfora: a luva. Enfim, tipos de
procedimento que desde que existe consciência social do poder, e isso já foi há
muito, muito, tempo, terá sido praticado, mesmo quando poder vai variando os
seus sinónimos figurados, desde o lugar político numa instituição, ao
favorzinho de deixar passar à frente e à sorrelfa dos que se organizam numa
fila de caixa de supermercado.
A borla acaba por ser uma prática tão malandra como a
cunha, e revela um grau invejável de coesão social pois atravessa posições e
bolsos de várias estaturas e envergaduras, mantendo-se por mais pequena que
seja como um aleijão, ou pronto vá lá, uma mossazinha de carácter num sentido
indisfarçavelmente democrático. E atenção que também não falo de favor. Os
favores são legítimos, passam por um processo de avaliação de activos e
passivos que os praticam, e em que não haverá terceiros prejudicados. É uma
coisa que sendo assim mais íntima é, se calhar até por isso, um sinal de
gentileza reflectido nas formas com que nos dirigimos, simpaticamente e com
educação, aos outros.
E se em todo este tipo de processos malandros ninguém
fica bem numa perspectiva de formação de carácter, normalmente até servem para
ir corroendo o sistema em que se praticam e onde se finta a lei, a regra ou até
só mesmo a boa-prática de convívio e camaradagem. Às vezes nós nem damos conta
disto enquanto prática desviante porque se instala como prática dominante e
quem não age assim é porque é parvo. Outras vezes gozamos de fora este tipo de
situações e exclamamos que estão bem uns para os outros, ou que só se estragou
uma família. Enfim, quem vai à missa e acredita na redenção pela confissão terá
de admitir que não é coisa que se faça, isto de reclamar excepções para si,
prejudicando o próximo. Pode acontecer-lhe como ao Frei Genebro do conto do Eça
de Queiroz, que eu, já agora, recomendo como leitura para amanhã, Quarta-feira
de Cinzas.
Mas o que acaba por me chocar ainda mais nesta
banalização do mau comportamento cívico, nesta generalização que leva boas
almas a serem arrastadas numa onda de desatenção até mais do que de
indiferença, é o requinte de algumas pessoas que tão bem lidam com estes
assuntos. Como se sabe, quem faz o bem não olha a quem, e estas malandrices
passam mais despercebidas quando quem pede e que facilita se remete a uma
discrição espertalhona. O que já me espanta é que se engula, ou queira fazer os
outros engolir porque também se está metido na marosca, o comportamento e
atitude de quem, com requintes de malandrice, alardeia que faz o que faz
fazendo passar por um favor a alguém ou a alguma instituição algo que é do seu
próprio interesse. É que os favores pedem-se e fazem-se, como eu disse, em
silêncio. Quando apregoados normalmente escondem intenções e escondem-se mesmo,
pela voz da própria pessoa, atrás de conceitos como coragem, espírito de missão
e muita honra. Por favor!