29.4.14

O trabalho e a vontade

Esta é a semana do dia do trabalhador, parece-me que o mais internacional dos feriados. A propósito do dia da liberdade em Portugal os discursos vieram enfeitados com palavra de poetas, para esta crónica de 1º de maio, e respeitando a edição deste ano com citações, resolvi socorrer-me de um poeta americano que viveu entre 1874 e 1963, chamado Robert Lee Frost. É que a data tem mesmo a ver com esta época e com os Estados Unidos da América, já que surgiu em 1886 quando trabalhadores americanos em Chicago fizeram uma paralisação no primeiro dia de maio para reivindicar melhores condições de trabalho. O movimento espalhou-se pelo mundo e, no ano seguinte, trabalhadores de países europeus também decidiram parar por protesto. Em 1889, operários que estavam reunidos em Paris, na chamada Segunda Internacional ou Internacional Socialista ou ainda Internacional Operária, decidiram que a data se tornaria uma homenagem aos trabalhadores que haviam feito greve três anos antes. Nesse dia, deixou de haver greve, passou a haver feriado…
Dia do trabalhador, ou do trabalho, nascido da contestação, transforma-se, em meu entender e numa época em que o desemprego atingiu em Portugal, mas não só, níveis oficiais assustadores, um dia de reflexão sobre vontades. É que há lamentos que ouvimos, de gente que na mesma medida do assunto que lamenta antes fazia contestação e anunciava, mais ou menos explicitamente, resolução fácil; há lamentos, dizia, que parecem muito mais cheios de vontade do que de impotência…  
Ora disse então o poeta Robert Frost o seguinte: «O mundo está cheio de pessoas com vontade; algumas com vontade de trabalhar e as outras com vontade de as deixar trabalhar.» Desconheço as circunstâncias desta máxima, o que nos deixa ainda mais livres para a lermos à vontade, consoante precisamente as vontades: a minha, que aqui vos deixo, a vossa se for diferente, a nossa se concordarmos.
Talvez o dito se refira, de forma eufemística, a bons trabalhadores e preguiçosos, mas, já agora, bons preguiçosos que deixam o trabalho para quem tem vontade de o fazer. Nos dois casos poderíamos dizer que ambos reconhecem o valor do resultado do trabalho que, quando aliado à vontade, é sempre melhor do que feito sem ela. Grave seria, e é, se e quando as “algumas” fazem ou fizeram um bom trabalho com vontade, as “outras” têm vontade de não as deixar trabalhar, desfazendo, impedindo ou ignorando, o que vem dar ao mesmo, o que de bom está a ser ou foi feito.
É quando vemos a falta de oportunidade para demonstrar a vontade de trabalhar, como quando o trabalho escasseia para tantos, que valorizamos o trabalho que com menos entusiasmo vamos tendo; mas é também quando assistimos e uma raiva e indignação que vão crescendo nalguns contra aqueles que transformam a possibilidade de terem e fazerem trabalho, num poder de nada fazer ou até boicotar, que enfim já dá um bocado mais de trabalho e são precisas algumas vontades concertadas. Já agora, dizer-vos que a palavra boicote deriva do inglês boycott, do nome do capitão irlandês Charles Boycott que, no século XIX, era administrador de propriedades e costumava fazer exigências descabidas às pessoas com quem negociava. Estas pessoas uniram-se com o propósito de não se relacionarem mais com ele e a rejeição passou a ser identificada com o sentido de represália ou mesmo de sabotagem.

Termino desejando-vos um bom dia do trabalho e do trabalhador, que gozem se puderem o feriado, que é sinal que estão a trabalhar ou dependem de estruturas onde se trabalha. E que o dia seguinte seja também bom, não apenas porque é sexta-feira, mas porque é um dia de trabalho a seguir ao feriado. Aos que “meteram” um dia e gozam ponte, aproveitem-na lembrando-se que é um direito conquistado e merecido!

25.4.14

O Povo unido é quem mais ordena

A data não pode ficar-se pelo feriado, nem pelo nome da ponte ou da rua ou do largo. 40 anos é ainda algum tempo. Algum, nem muito nem pouco, que isto do tempo, como de outras imaterialidades, mais ou menos palpáveis, é muito relativo. A outra data, a de outubro, o cinco, mal tinha feito 100 anos e já deixava de ser feriado… Muito barulho, muita indignação, mas os eleitos pelo Povo, os que o Povo, ou parte dele (qual terá sido a parte? A cabeça? O coração? Ou só a mão que desenha a cruz?), os que o Povo elegeu decidiram e ficou decidido. É assim que funciona quando vivemos em democracia e quem nos governa pode ser escolhido, de quando em vez, pelo Povo que é quem mais ordena, que é o mesmo que dizer que é quem põe ordem nisto. E é por isso, também, que o 25 de abril de 74, que hoje celebramos, é de todos e não de alguns que se acham os seus donos e evocam um estatuto de pureza imaculada para representarem o Povo, como se assim não o estivessem também todos os que são eleitos para ditar os destinos do país, no governo ou na oposição. (Sim, a oposição também tem o poder de se juntar para deitar abaixo governos ou, no lado oposto, permitir que boas medidas sejam implementadas.) É que hoje todos somos Povo, aos olhos de quem governa e que tem, ou deve ter, para connosco, o Povo, o sentimento, e a ação que lhe corresponda, de compromisso. O poder que temos, ó Povo, de de quando em vez podermos pôr ordem nisto…
Mas o Povo, o que foi unido há 40 anos, parece ter reencontrado o medo. Um medo estranho, porque afinal 40 anos dá para esquecer os outros medos: o medo de se dizer o que se pensa e o medo de se pensar diferente; o medo de se ter nascido pobre e não se ter oportunidade de sair dessa condição; o medo de se ser mulher, pobre ou rica, e ter vontades que só o homem pode ter; ou o medo de se ser homem e amar outro homem, ou mulher e amar outra mulher, pobres e ricos, e ter de o fazer às escondidas, porque fazer fazia-se sempre, claro. E o medo da guerra. O dos homens que iam e o das mulheres que os ficavam a ver ir. Fosse só esse o medo a acabar-se naquele mês de abril de 74 e já tinha valido tanto a pena! Não podíamos ter deixado de lembrar isto a cada rapaz ou rapariga que fez 18 anos nos últimos 40 anos. Não podemos deixar de lembrar isto a cada rapaz e rapariga que fará 18 anos de hoje em diante.  
Mas há um medo novo e estranho que vem chegando. Um medo que se vai expressando no número de não participantes na escolha de quem nos governa, como se um perigo se levantasse com aquela cruz secreta que se faz com alguma convicção – não digo muita, nem pouca – mas com o sentido cívico que nos foram ensinando e que fomos adaptando em ritmos muito próprios, personalizando o civismo: primeiro foi a novidade do voto, depois foi o ritual que como qualquer ritual evoca esse primordial gesto criador, depois passou-se a escolher em que ocasiões valeria a pena ir cumprir o ritual. Como crentes, sim, mas maus praticantes. Até que parece que muitos começaram a achar que nem valia a pena lá ir, acabando sempre a ser governados por quem não escolheram, mas sentindo-se livres por dentro para não se culparem pela escolha, como se isso os livrasse dos desgovernos e não tivessem que amochar como aquele que tendo escolhido quem o governa se arrepende depois de o ter feito. E o arrependimento que efeito terá? Levá-los-á a fazer a cruz noutro lado? Levá-los-á a reafirmar que aqueles são os que melhor defendem as suas ideias, os seus princípios, ainda que não sejam as melhores pessoas para o fazerem? Ou trará o medo de se voltar simplesmente a fazer a cruz? E como combater este medo, novo e estranho?
40 anos depois, não podemos deixar de festejar o fim de tantos medos, mas não podemos deixar de voltarmos a unir-nos e com as armas que conquistámos – a liberdade de pensar, de nos organizarmos, de votarmos, sim de votarmos – não deixarmos que a democracia, que é quando o Povo é quem mais ordena, se entorpece e nos assuste. Este é espírito do 25 de abril, aquele que vive da cidadania e do civismo que partilhamos todos, e não apenas alguns que o tentam monopolizar. Este é o espírito que me faz lembrar-vos que o sempre é já hoje e repetir a expressão «25 de abril sempre!». 

22.4.14

Livros e profissionais aprendizes

Amanhã comemora-se mais um dia mundial do livro e dos direitos de autor, data escolhida pela Unesco e que coincide com aniversários, de nascimento e morte, de vários autores de entre os quais os grandes Shakespeare e Cervantes. Parece que este ano a figura estandarte da comemoração é a cinquentona Mafalda de Quino. Pacifista e contestatária, confesso que esta menina me ocupou larguíssimas horas da minha juventude e contribuiu em muito para que hoje tenha esta profissão de ensinar os livros e a sua leitura como um passo para se ler o mundo e o que nele acontece.
Não tenho como não ligar quase sempre a leitura ao trabalho de aprender, até porque quando abrimos um livro aprendemos sempre alguma coisa, nem que seja que não nos agradou. Nestes casos, estamos a aprender sobre os nossos próprios gostos e a encontrar os argumentos para justificar esse (des)gosto. Também é porque se aprende com os livros que ler dá mais trabalho do que aqueles que o fazem com um imenso prazer podem por vezes supor, não conseguindo pôr-se na pele dos que têm a leitura numa outra prioridade da vida.
Tenho essa imensa sorte de poder trabalhar com uma das atividades que mais me dá prazer fora das horas de trabalho e que é ler. E, acima de tudo, o privilégio de poder tentar contagiar os outros com este gosto. O Pessoa deu um conselho sobre esta ligação do trabalho e do gosto em tê-lo que diz assim: «Não é o trabalho, mas o saber trabalhar, que é o segredo do êxito no trabalho. Saber trabalhar quer dizer: não fazer um esforço inútil, persistir no esforço até ao fim, e saber reconstruir uma orientação quando se verificou que ela era, ou se tornou, errada.» Será também por isto que quando se trabalha se deve estar sempre disponível para aprender.
À volta do livro há vários trabalhadores: autor, por vezes ilustrador que é também autor, editor, livreiro e, acho eu, também o leitor. O leitor recebe o trabalho dos outros na forma do livro e acrescenta-lhe o seu trabalho, ler, valorizando-o.

Aqueles e aquelas que gostam de ler e que tenham a oportunidade de o fazer quando querem, que gostam de falar sobre o que leem hão de sentir-se, como eu e outros que somos profissionais da leitura de livros, que nos tornamos todos aprendizes quando lemos um livro pela primeira vez, pelo menos. Quando ensinamos a ler os livros ou os discutimos entre leitores, estamos a lidar com objetos que nos chegam daqui de ao pé de nós e da nossa realidade, ou dali do outro lado do mundo de onde só temos notícia por outros. Estamos a ouvir falar de circunstâncias do agora ou do antigamente e por isso estamos a aprender com os livros uma forma de olhar para aqueles mundos metidos lá dentro, através da leitura. E é por isso que saber ler um livro é uma boa aprendizagem para sabermos ler o mundo, a vida real. Porque às pessoas em geral, como aos leitores, o que importa é a vida real. E os livros são mais um lugar de trabalho em que se preparam os leitores, cidadãos, para o mundo.

15.4.14

O ovo

É Páscoa, semana santa, vou falar de ovos. Podia falar de coelhos, mas não me apetece, o bicho anda com más conotações, coitado; podia falar de folares, mas o que os torna desta época é o ovo que os acatita; podia falar de cabrito ou borrego, mas de sacrifícios andamos todos “por aqui”; e podia falar de amêndoas mas, lá está, caímos no ovo que é do que elas se mascaram nesta quadra.
Podem supor, como eu supus, o quão difícil seria encontrar uma frase ou pensamento de autor, mais ou menos erudito, em torno de ovos, mas nem por isso. A grande maioria relaciona-o, ao ovo, ao tempo que há-de vir, ao futuro, à paciência, entre outros conceitos mais ou menos inusitados.  É que me apetecia mesmo falar de como os ovos são ou uma espécie de caixinha de surpresas, normalmente boas, ou, no extremo oposto, uma terrível caixa de pandora. Que deles saem fofos pintainhos ou patinhos ou passarinhos, enfim bichos de penugem que deixam qualquer um mais lamechas. Como saem répteis que logo evocam bestiários do mal, mais imaginados e simbólicos do que reais. Como saem espécies que são chocadas por outras espécies, como os do cuco, que para os pôr, lá tem que ser, perpetuar a espécie e manter a linhagem, mas para os chocar, que é o que dá trabalho e moengas, espera aí que tenho mais que fazer… Como há, ainda, os ovos que sendo podres cheiram logo mal e se denunciam quando se partem,  e os outros, de que é mais frequente encontrarmos vítimas o que me leva a pensar que são por isso os mais perigosos, que aparentemente de bom estado albergam a maldita e quiçá mortífera salmonela.
Afinal, eu queria falar do ovo e parece que acabei a falar da espécie humana que também lá tem, no fundo, no fundo, o ovo como génese. Isto está tudo ligado e por isso é que é em torno de histórias que se explica a religião, que religa tudo, e voltamos à Páscoa que está ligada ao Natal, como o nascimento está ligado à morte, e encontrar linhas, que são as histórias, que unam estes pontos é ir mostrando o caminho.   
Oscilei, por tudo isto, entre uma citação de Andersen, um autor por quem tenho um afeto muito especial, e que a propósito do Patinho Feio, claro, dizia que «nascer numa quinta de patos não fazia mal, desde que não se saísse de um ovo de cisne»; ou outra de um autor com quem convivo bastante, C.S. Lewis das Crónicas de Nárnia que dizia que «pode ser difícil para um ovo transformar-se num pássaro: seria uma visão divertida, e mais difícil para o pássaro, aprender a voar permanecendo um ovo. No tempo presente, somos como o ovo. E não se pode continuar indefinidamente a ser apenas um ovo comum, decente. Deve-se ser chocado e eclodir ou apodrecemos.»
Ora, afinal, estes dois autores de chamada literatura infanto-juvenil sabiam bem que isto de embalar as crias ao som de bons avisos e princípios, como os que estão nas entrelinhas das boas histórias e sem necessidade de grandes lições de moral a rematar, é meio caminho andado para que saibamos que o que de um ovo saia, retirada a casca, ou é o que se espera ou é uma surpresa para a qual devemos estar alerta.

8.4.14

Sem-abrigo

Os sem-abrigo são a face mais visível da miséria na sociedade e existem porque o homem se sedentarizou e estabeleceu regras de convivência e funcionamento que nem todos têm como forma de vida desejada ou permitida. Em maior número nas grandes cidades, mais raros nas cidades médias, onde muitas vezes são figuras conhecidas, a razão de ser dessa sua condição difere e distribui-se, quase como numa taxonomia, em vários casos. As afirmações do secretário-geral do maior partido da oposição, relativamente a estes já mais de 4000 cidadãos portugueses que vivem nestas condições, levantou vozes de acusação pelo irrealismo que a sua promessa de debelar este problema social, quando for governo, parece conter. Mas levantou também um alerta para estes milhares de cidadãos nestas condições específicas. Ora, é sabido, e é também a isso que se referia Seguro, que a falta de emprego e um deficiente acompanhamento, e até acesso, a cuidados de saúde são, na esmagadora maioria das vezes o que provoca a instabilidade e empurra para a miséria os muitos sem-abrigo pelo mundo inteiro. Resolver o problema dos sem-abrigo é também não deixar que estes problemas aumentem.
O “sem-abrigo”, nome generalizado que de certa forma substituiu a palavra “mendigo”, é aquele que, por uma ou mais razões, não tem, nem procura solução, para o seu problema habitacional. É o que faz da rua o seu lugar de vida a tempo inteiro. E se alguns são resilientes adaptados a uma vida onde foram parar sem querer, habituando-se a lá ficar numa reação que não pode servir de desculpa ao resto da sociedade para não tentar contrariar, outros parecem assumir o estatuto como uma filosofia de vida que, quem o não é e siga modelos de vida ditos normais, dificilmente entenderá. Mas também aqui, não há como não tentar que estas pessoas tenham a oportunidade de escolher outra forma de vida.
Conhecendo casos de diferentes lugares, aqui e no estrangeiro, a quem, oferecida solução esta foi recusada, os sem-abrigo têm também o dom de nos confrontar, quando com eles nos cruzamos, ou encontramos mesmo, com uma face da loucura que nos coloca problemas de reação. Já que um sem-abrigo por convicção é sempre alguém que desafia uma ordem, não sabemos se consciente ou não desse desafio, vivemos entre a dificuldade de os considerar diferentes ou iguais perante os deveres e, por isso também, perante os direitos, os deles e os dos outros.

Anatole France, autor e crítico francês do virar do século XIX, pega precisamente na figura do sem-abrigo para falar desta dificuldade em generalizar, mas da necessidade de o fazer, sobre o que esperar de um sem-abrigo convicto. Ele afirma numa das suas obras que "a majestosa igualdade das leis, (…) proíbe tanto o rico como o pobre de dormir sob as pontes, de mendigar nas ruas e de roubar pão." Longe de pensar que a filosofia do sem-abrigo é uma excentricidade de ricos e pobres, ou arriscava-me a pertencer ao clube de boutades Jonet, tantas vezes penso que há leis que ao proibirem têm mesmo a função de obrigar o legislador a encontrar a solução antes, ou pelo menos ao mesmo tempo, de punir os seus infratores. E esta é uma frincha do mundo da justiça por onde às vezes passam os casos mais injustos. 

1.4.14

Uni-morfismo - Conformismo

"Tornamo-nos no homem do uniforme que usamos" é uma expressão atribuída a Napoleão Bonaparte. Fui buscá-la esta semana a propósito do “magnífico” corte de cabelo do líder norte-coreano Kim Jong-un (não sei porquê mas a palavra “líder” na minha gramática acompanha sempre muito bem com a referência àquela nação em particular e que tem o seu máximo expoente de aplicação quando se lhe antecede o carinhoso adjetivo “querido”). Foi, aliás, na qualidade de líder que, determinadamente, terá imposto a todos os homens daquele país o corte de cabelo igual ao seu. Parece que a medida está a criar algum incómodo aos norte-coreanos que passaram de um extenso cardápio de 10 possíveis cortes de cabelo – nem mais, nem menos – para esta uniformização que dita o que deve ir por fora da cabeça daqueles homens. Já as mulheres, essas têm um limite muito mais alargado, que até ver se mantém, de 18 modelitos para se comporem nos cabeleireiros. Tudo isto em nome de um maior conforto e capacidade de repelir os efeitos corruptíveis do capitalismo. Imagine-se!...

Se não fosse trágico, porque o que se passa na Coreia do Norte todos sabem embora alguns disfarcem, este assunto até era cómico, pelo ridículo não do penteado – gostos são gostos – mas do desejo do líder em reforçar a idolatria que acompanha e “faz pandã” com o comunismo e outros regimes totalitários e ditatoriais. E acaba por se tornar risível a ideia de que todas as fardas e uniformes servem para evitar o exibicionismo de uma diferença de estatuto e que, no que me agora ocorre, só consigo ver ainda aplicável com essa função ativa às fardas de colégios e, obviamente, aos trajes académicos, onde a feira de vaidades tem de transferir-se, porque persiste, humanamente, para outros sinais exteriores de diferença. Aliás, por muito uniformes que sejam as fardas, há sempre uns acessórios, desconhecidos pela generalidade das pessoas, mas reconhecidos pelo meio e por quem interessa, que distinguem as diferentes hierarquias e põem cada um no seu lugar, acima ou abaixo, mas sempre diferente, creem alguns para melhor, de quem não a usa.

Voltemos a Kim, ao seu penteado e à frase de Bonaparte. Aquilo que seria uma versão militar do ditado popular «o hábito não faz o monge» põe na aparência exterior um sinal com um peso simbólico, habitualmente vindo de um passado recôndito e grandioso, que limita e influi os comportamentos que se desejam, à partida, dignos para que se continue a merecer envergar essa aparência. Mas ao pôr na aparência esta importância, permite-se que muitos mais facilmente se escondam, também nela, disfarçando comportamentos que não a mereceriam. Enfim, uma coisa apenas compreensível para quem dá às roupas e aos cortes de cabelo não apenas o valor do conforto e do gosto, esses inimigos do povo, para os transformar em estilo de vida e até, imagine-se, forma de pensar, ou seja, obediência a uma determinada ideologia.


E por muito que esta manifestação do comunismo em estado puro, uma espécie de aldeia ou quinta pedagógica da ideologia defendida onde se criam em cativeiro exemplares para amostra, seja defendida por quem deseja que se replique no resto do mundo, não consigo deixar de achar trágico que estas notícias saiam a público e que esse resto do mundo se conforme com o que transparece deste uniforme.