27.9.22

Guerra: espírito, palavra, acção

Podemos até tentar fazer de conta que a guerra na Ucrânia está lá longe. Tão longe que dá jeito a muitos enfiá-la no mesmo saco de outros conflitos, cujos impactos são menos sentidos em consequências no dia-a-dia da Europa e nas relações que a Europa tem com o resto do mundo ocidental. É o jeito de também se poder fazer um discurso “à la Miss Universo” de antigamente (confesso que não tenho visto concursos de Misses). 


O jeito do “não à guerra” dá-se quando, mais morto menos morto, esses, os mortos servem é para comprovar o odioso de um inimigo.  Um inimigo que, bem vistas as coisas, é tão só o concorrente  vencedor na corrida ao mesmo lugar: o de dominar, também ideologicamente, o Mundo. Tribalismo em escala grande, enorme, o maior deles. E pode-se chegar a elogiar o folclore da outra tribo, quando tocam a  música que interessa dançar, até usando a táctica da “quinta coluna” ou do “agent provocateur”. 


O espírito da guerra está latente na alma aparentemente mais doce e envolta em engodo para os demais espíritos que se lhe possam associar, com proveito próprio certo e prometido proveito comum. A palavra que diz que apoia, mas em que, afinal, se apoia quem quer arregimentar tropas (e porque fica mal a quem a contestar) é tão perigosa como a que berra e insulta. Embora muito mais civilizada, claro. É, aliás, essa  palavra civilizada que vai ensaiando o coro, procurando vozes que se transformarão em falsos solistas na gritaria do “Não!” porque sim. Esta espécie de palavra mansa, que não procura nem pede a reflexão e o entendimento, provocará e incitará e levará um dia à revolução e (não “ou”) à morte. 


Regressemos à Ucrânia para falar dos cidadãos russos mobilizados por Putin. A palavra do invasor transformou-se em ordem para que haja acção. Os cidadãos russos que perceberam ser carne para canhão, não para defenderem os seus, mas por uma causa que não é a sua, apesar das iniciais falinhas mansas de Putin e da sua “entourage”, estão a deixar o país. Percebemos como é e está assim a agir, sem poder falar, a oposição na Rússia. Por outro lado, pouco sabemos, pela comunicação social portuguesa, da actual vida política interna da Ucrânia, mas não seria pior termos notícias do que dizem e fazem os opositores de Zelensky.


Estará suspensa, a oposição de um país democrático em guerra? Esperarão o fim da guerra contra o inimigo de fora para combater os tiques populistas de um adversário cuja popularidade passou fronteiras? Mesmo populista, encostado aos extremistas no parlamento europeu, as posições de Zelensky de antes parecem agora inofensivas. Parecem. O espírito da guerra não morre no ser humano, apenas se tornará talvez aceitável se subsistir na palavra como sinal de instinto de sobrevivência. E nesse caso, apenas se poderá assim julgar aceitável, no dia em que o espírito vertido na palavra for coerente com a acção. 


Será esse instinto que, poucos meses depois mas muitos euros em cima de bens e consumos, de entoarmos quase todos “Slava Ukraini!”, nos leva a começar a assistir a desertores da causa? Querem lá ver que o engodo vai mesmo cair no goto de alguns e aproximar egoístas de comunistas? Varre-se, quando interessa, para debaixo do tapete a solidariedade, o humanismo, a democracia, reduzidas a palavras - falinhas mansas - que se apregoam nos cartazes. Falinhas mansas soam tanto a necrofagia, senhores! Como quando um véu, em nome de Deus, vale mais que uma vida… Mas sobre isso falarei em breve.

20.9.22

O que aconteceu

Os tempos estão quase bíblicos, com peste e guerra e seca e dilúvios, e pouco teve de divino o filme de recordações destas férias de Verão… Uso o adjectivo “divino” no sentido pagão, o que damos, por exemplo, a uma refeição daquelas para que, nas férias ou quando há tempo e ambiente, muitos nos reservamos. Mas também estas, se para uns têm efeitos espirituais, para outros caem todas juntas em cima dos corpos, a ocupar espaço. Uma maçada… 


A boa notícia é estarmos - quem escreve e quem ouve ou lê -  de volta às crónicas, para mais uma série, para mim a 13º, como o número dos mais importantes comensais da tradição judaico-cristã. Mas vejamos, assim telegraficamente, uma  pálida amostra dos muitos assuntos deste Verão, que podiam ter dado quase duas crónicas por semana.


A pedofilia na Igreja também católica a ultrapassar os soundbytes das regressadas romarias já turistificadas. A subida aos Céus em foguetão de quem quase entrou no “buraco de uma agulha” (se acreditássemos mesmo que o Paraíso existe e não está num punhado de contas milionárias de que uma só criatura pode gastar à tripa-forra). O Purgatório da ameaça de falta de gás, com impacto financeiro em tudo quanto dá luz e mexe, e os castigos em corte nos quilovolts que nos querem infligir, como se todos tivéssemos painéis publicitários acesos 24/24 horas nas janelas das nossas casas. E , por fim, a saída de Marta Temido, provavelmente farta dos rankings montanha-russa de popularidade de que a política vive (mais do que de políticas), deixando a Pizarro exactamente os mesmos problemas que a penúria do País, associada à cultura do desleixo no serviço público, que durarão até à tal vinda do Diabo, profecia sem novidade, nem pecado, e de sucesso mais ou menos adiado. Nessa altura, o Inferno será legitimado, o País ficará melhor e as pessoas pior. Tudo por culpa de outros: dos que gastaram o que não tinham para ir calando alguns e dos que vieram a seguir endireitar as coisas, sem medo dos gritos dos moribundos.


Do que à eternidade das almas diz mesmo respeito, deixando de lado o fim do conto de fadas da Rainha de Inglaterra que quase viveu “feliz para sempre”; fazendo por esquecer os macabros episódios políticos do coração monárquico feito em pickles e da urna republicana a servir para o voto angolano e para a exposição de desavenças familiares que não escolhem classes sociais, marcou-me que da poeta Ana Luísa Amaral já não tenhamos, demasiado cedo, mais versos novos de inquestionável literatura, embora continuemos a ter tantos poemas para usar como orações de aprender a sentir o Mundo e a Vida; já nos antípodas, tivemos uma promoção a autor de referência europeia um medíocre alinhador de palavras que consolam não-leitores, chagando a palavra “Literatura”.  O “meu” primeiro humorista também parou de envelhecer, e a eterização de Jô Soares trouxe-me à memória tantos dos momentos divertidos com os mesmo meus que já cá não estão; sou da tribo que crê que é só mesmo o humor que nos salva: o imprescindível amor está tristemente contrafeito e a contrafacção do humor é mal menor, só mau gosto. Um herói, ou pequeno deus da bola Chalana, que desaparece deixando à espreita, para quem tenha interesse em pensar sobre o assunto, o admirável esgoto do mundo da competição futebolística, negócio que tantos crentes assíduos de certas catedrais ajudam a alimentar. Sobretudo porque contaminam modos de estar tribais em sociedade, chegando até ao debate político, que está paupérrimo. E partiu Jean-Luc Godard e Javier Marías, e, e… Cronos implacável, a Arte a tentar fintá-lo. 


Dos incêndios talvez fale uma semana destas, já que não foram, nem serão, exclusivo da época estival 2022. E talvez, um dia, seja oportuno voltar ao tema da conciliação difícil das vidas pública e privada dos políticos, questão menor mas muito reveladora das mentalidades marcadas pelo fenómeno cultural mais relevante da Humanidade: lá está a religião… 


Perante tudo isto, o único remédio que encontro é procurar o tal “divino” à mesa das refeições e penitenciar-me do mal que me fazem, só a mim, pelo bem que me sabem, trazendo-me a felicidade ao céu do palato. Haja saúde e, claro, matéria da cor do deus com que se compram os melões…