25.10.22

Óleo de Girassóis

Nunca foi fácil ser jovem, apesar da pressão dos “outros” (chamemos assim aos que já não o são). Pressão a propósito da sorte em terem, teoricamente, o “tempo todo” pela frente a somar ao património que lhes foi deixado pelas gerações anteriores. E é fácil compreender que, perante a dificuldade em gerir o que lhes chega, haja gerações de gente jovem que até prefira ser deserdada. Já sou dos “outros”, mas lido com jovens que, por força da minha profissão, são eternamente jovens. Esse lidar tem-me dado o melhor dos barómetros para evitar embandeirar em irritações com certos “vaipes” e tentar envolver-me na compreensão de propostas para lidarmos, juntos, com o que podemos ajudar a deixar para os que serão os próximos jovens, ou estes já, transformados em “outros”.

Vem a conversa a propósito da performance das jovens que em Londres atiraram com sopa Campbell ao super-guardado tesouro patrimonial, os girassóis do Van Gogh, que estão expostos lá para os lados da praça de Trafalgar. O que aconteceu uns dias antes da corrida em pista oleada que os “outros” fizeram entre o Parlamento e o número 10 da Downing Street. Uma performance que também mereceu atenção e que, em parâmetro de disparate pensado e ponderado, não ficou longe em pontuação do das jovens woke. Com uma enorme diferença: as consequências de um, no museu, não tiveram a seriedade do impacto negativo do outro em Downing Street. 0 a 1, em que o menos é mais a favor das jovens, no campeonato dos disparates com agenda.

Para que fique claro, o disparate na National Gallery cai, na minha opinião, dentro da definição de disparate para designar o díspar, o que é incomum, avaliável pelo pouco convincente critério da questão de gosto. A performance de traços estéticos, ou pelo menos revelador de algum conhecimento sobre a história da Arte, não se compara ao que, no entanto, pode contribuir para contaminar sujeitos menos dados à semiótica, essa ciência de lidar com significados e símbolos, que desatem a vandalizar a torto e a direito. Já o outro disparate, o da politiquice a meter-se na Política, é mesmo do domínio da irresponsabilidade.

Os dois episódios, assim classificados pela sua dimensão de curta duração relativa que não chega a elevá-los a novelas, protagonizados por mulheres, o que também permite leituras de preferência tão díspares quanto impeçam generalizações, revelam-me a violência e a voragem contemporâneas. Estes modos de viver que nos estão a levar, aos jovens e aos “outros”, para um “carpe diem” alucinante, em que não temos tempo sequer para avaliar o passo seguinte, nem para aproveitamos da melhor maneira o tempo de qualidade que arranjámos conquistado a custo. Desde logo quando os “outros” de agora parecem, por exemplo, pouco preocupados com a sustentabilidade da segurança social.

Esta preocupação com o estado do Estado Social que uns colam à Direita, numa nova retórica que mistura cortar com não aumentar, mesmo havendo aumento. É que se trata da segurança dos que serão “outros” daqui a mais de uma geração; trata-se de tomar medidas que também nos preparem para não deixar cair os mais inseguros, em casos de dificuldade, já daqui a menos de uma meia-dúzia de anos, uma vez que é a velocidade que tem marcado o ritmo a que se sucedem imprevistos e previsíveis crises.

Esta nova retórica está, de resto, presente no discurso dos Partidos ditos de esquerda, os que, já agora, adoram as performances revolucionárias e tentam sempre monopolizá-las. Tal como servem de modelo discursivo aos novos liberais portugueses, caçadores de jovens rebeldes pouco dados às correntes do comunitarismo, mas muito atreitos a causas concretas, com acções tão cirurgicamente escolhidas que se concentram na árvore e esquecem a floresta. O que manifestamente não dá para gerir o que se deseje ser bem público, como se viu pelo caso de Downing Street.

O que me preocupa e ocupa os dias é convencer-nos para deixarmos de ficar à espera de figuras, indivíduos, quais artistas dos de sete instrumentos, a tentar lidar com tanta simultaneidade. E, no tempo que temos para pensar, fazê-lo de forma a que a nossa acção, a de cada um de nós, pelo menos não piore os males com que estamos a conviver. Os males que revertem o sentido da expressão em que pedimos para que se nos perdoe o mal que fazemos pelo bem que nos soube experimentar fazê-lo. Talvez ainda haja tempo para corrigir algumas rotas.

18.10.22

Aceitar e/ou Compreender

Estes dois verbos, aceitar e compreender, pressupõem relações humanas, modos de convívio, formas de comunicar. Implicam a capacidade de, momentaneamente, passarmos a ter a perspectiva do outro e escolher um de quatro caminhos: compreender e aceitar; compreender mas recusar; não compreender mas aceitar; não compreender e rejeitar. Caminhar nestas encruzilhadas dá trabalho e requer tempo. Mas, numa sociedade progressista,  também se dá a oportunidade de correcção das rotas. 

A propósito do mais recente disparate dito por Marcelo Rebelo de Sousa, a destacar-se dos constantes e cansativos comentários sobre tudo e mais um par de botas, e mais visível porque num assunto gravíssimo, há várias oportunidades de lições a retirar. Se Marcelo não compreendeu as condenações que lhe fizeram mas as aceitou, já eu, insuspeita que sou de gostar ou ter alguma vez votado em Marcelo, compreendi muito bem as suas declarações, que expuseram o rascunho de um argumento em que lhe interessa acima de tudo defender os seus amigos. Mas não as aceito, porque não é esta a Igreja, enquanto organização de influência, que serve o interesse do progresso humanista, e que para pôr a ser, e manter, suas vozes mais importantes bispos com o calibre do do Porto pouco de si tem para dar;  embora acabe por aceitar as desculpas de Marcelo, depois de o ver espezinhado na praça pública por quem, mais do que pensar no dor das vítimas, viu neste deslize de Marcelo a oportunidade ideal para continuar a amarfanha-lo. E espero que tenha sido a sua oportunidade para começar a tratar da verborreia. 

E podemos reparar em mais: porque o assunto é, precisamente, verbalizar, falar sobre um crime a que se foi sujeito e que, tendo-lhe sobrevivido, custará recordar usando palavras que trazem de novo a dolorosa situação do passado, o cuidado no discurso sobre o assunto deve ser redobrado. Até porque o vento já não leva as palavras, elas ficam registadas, graças a esse avanço democrático da técnica, que começou pela escrita e o audiovisual refinou. 

Nas diferentes e despropositadas actuações, Marcelo traz várias vezes para cima do palco os ensaios de peças burlescas que nos dispensávamos de assistir. Mesmo, e talvez por causa de vivermos, em democracia e o escrutínio ser uma prática que a fortalece, o direito ao “rascunho” do seu exercício até que o público, todos nós, possa usufruir da versão final, podia evitar-se. E melhor ainda quando, uma vez estreada qualquer acção política, venha acompanhada com “folha de sala” e crítica plural e informada. 

Que tudo isto sirva para a consciência do poder da linguagem que muita gente menospreza. Sobretudo quando há quem, em certas escaladas, no seu próprio interesse, se torna porta-voz de, por exemplo, tragédias ou estatísticas, não passando de vozes de um coro ensaiado por um misto de pitonisa com corifeu, ou de ecrã de calculadora científica, o que ofende reais vítimas de tragédias, ou quem se sinta reduzido a mais um número. Sejam cidadãos comuns ou vítimas de um drama que ainda se tenta corrigir para o futuro, percebe-se que, para certas vozes, elas e eles se transformam, nesses discursos, em personagens, por vezes instrumentais. E as crianças e os pobres são as que têm, desde sempre, mais sucesso nos castings. 

Há que dar atenção ao discurso, tal como há que perceber e distinguir a intenção e a irreflexão. E a ambas compreender e/ou aceitar, ou não. Tudo isto nos faz dar muito mais valor ao uso das palavras. E é como nos versos de Manuel António Pina: “São feitas de palavras as palavras (…) É o que falta que fala”. 

11.10.22

O sobressalto mediático

Foi no dia de aniversário do Tratado de Zamora, aquele em que se definiram os limites de Portugal que ainda são os de hoje, e no mesmo dia , 767 anos depois, em que se implementou a República; foi no dia 5 de Outubro que me dei conta de que o espaço público das crónicas de opinião da DianaFm tinha duplicado. Assinalo, com gosto, que os avanços democráticos, nisto de proporcionar igualdade de oportunidade de acesso, continuam a amadurecer nesta reputada cooperativa de comunicação. 

E se festejo a iniciativa, dou as boas-vindas, em particular e em nome da tão valorizada proximidade, a quem passou a, paredes-meias, partilhar comigo as terças-feiras. Presume-se que, consequentemente, de quando em vez, quem nos oiça ou leia, assistirá no uso das palavras e do discurso, no fundo o exercício da razão, perspectivas diferentes com argumentos próprios, mas também oriundos de ideologias de base com as quais os indivíduos tendem a identificar-se. Ideologias propostas para se aplicarem políticas públicas na gestão do País, ou da Cidade, e na administração do que serve a vida das pessoas e da sociedade. 

Se é o que presumo, e aproveitando o contexto de preparação do OE2023, o que eu sei é que, deste lado, tendo a olhar para as opções de gestão nacional, aceitando que a afectação de recursos de todos nós mantenha um sector público forte, que possa ajudar-me sempre que necessário, e um sector privado próspero que, em conjunto com o sector público sólido, contribua para que não sejam tantas vezes necessários os apoios públicos, e que se crie riqueza no nosso País. Já se percebeu que isto é tarefa difícil, tarefa monstruosa que se avizinha com o agigantar-se da inflação e das taxas de juro, os vilões da sociedade de consumo em que todos vivemos. Em cima deles, acresce que muitas das decisões de hoje, todas discutíveis, só se avaliarão mais tarde. Acontece muito e falta-nos a prática de “pós-monição”, muito mais acessível e disponível do que a da premonição. 

Ora isto não serve quem precisa de estar sempre a anunciar “notícias de última hora”, nem quem precisa de ocupar espaço público no presente para condicionar a governação, às vezes qualquer que ela seja, e vir, talvez, a ser governo depois. Resultado: criam-se casos que o não são (sim, falo dos de Pizarro, da frota automóvel da TAP, do de Pedro Nuno Santos), escolhem-se adjectivos, comparações e exclamações que escondem as alternativas que não se tem coragem de dizer sinceramente que se aplicavam; ou até só, das antigas fotografias de fachadas, retocadas para parecerem novíssimas, se recorta quem se preocupou com o miolo e a alma dos lugares, tudo para levar a água ao moinho, como se fosse, e só pudesse ser, o seu. E acaba-se por fazer pairar, numa prática de ou aparente inconsciência, ou sub-reptícia intenção, ou tudo misturado, um arzinho a perigosas tentativas de descredibilizar a Democracia e manter, falsa e convenientemente, o nível de sobressalto dos media. É que às vezes basta ler mais do que os títulos das notícias, que nos berram aos olhos, mas as próprias notícias, que os esvaziam. 

Ainda bem que na vastidão da planície alentejana os ecos tendem a não se propagar. Pena que vozes de explicações e argumentos, mais demorados, por lá também, demasiadas vezes se percam. 


4.10.22

O véu diáfano da hipocrisia

A situação conflituosa no Irão é um sinal doloroso do impacto da globalização cultural.  Doloroso e agridoce, embora mais “agri” que doce. Demorou a instalar-se, talvez o tempo de uma geração, entre a generalização crescente da comunicação e da informação a circular mais livremente entre cidadãos, a consciência de que há diferenças tradicionais identitárias que não correspondem ao que consideramos hoje humanismo. Não se trata já só sequer de feminismo, embora seja bom rever-se a enorme importância deste movimento, no fundamental, sobretudo quem considere que ser feminista é ver em qualquer homem um agressor. Não é.

Se há décadas foram surgindo, de forma algo inorgânica, denúncias da retrógrada condição feminina vivida em nações e comunidades que, para tal, evocam leis assentes pela religião constituída como instituição, a geração de jovens dos nossos dias, muito graças ao “bright side” da Internet, não me parece disposta a baixar os braços ou deixar de dar o peito às balas pelas hipócritas tresleituras de textos chancelados como divinos. Que a lute continue,  em nome de um progresso humanista e para que os que nela tombaram não o tenham  feito em vão. Um argumento, de resto, muito usado nas vidas dos santos mártires.

E debruçados sobre o hijad, o véu islâmico, poder-se-á continuar uma mais longa conversa a propósito da reavaliação do peso da religião, organizada em instituições, na vida de indivíduos e sociedades. Foi, de resto e assinalando o facto de estarmos próximos do 5 de Outubro, ao que assistimos no caso dos alunos de Famalicão na implicância dos seus pais com as aulas de Cidadania. 

Um assunto que sucede há séculos, de acordo com a organização Opus Dei, tão conservadora como os puritanos pioneiros que chegaram à América ou os reguladores das madraças islâmicas, ao dizer, na sua página web, que se observa “uma tendência nos poderes públicos, que se vem manifestando em muitos países, pelo menos desde o século XVIII, a assumir de modo cada vez mais exclusivo a função educativa, atingindo nalgumas ocasiões níveis de monopólio quase total da escola”.  

Uma forma de estar nos dias de hoje tão estranha como ineficaz, na minha opinião, que não previne a infelicidade nem das almas, nem dos “rebanhos”, nem leva a que mais sigam os caminhos saudáveis do humanismo: os do respeito pelo livre arbítrio consciente, também e sobretudo, da presença de outros na nossa vida em sociedade. 

É que fica claro que os véus não tapam o pecado de quem os usa, mas o de quem não tem sobre si o domínio de controlar uma bestialidade que pode reconhecer. E por isso evoca o nome forte de um Deus, ao abrigo da lei da hipocrisia que, por fraqueza, escreveu.