24.2.15

Habitat

A Europa e o rumo da sua União estão na ordem do dia, o que era até bem previsível depois das eleições gregas. Não consigo ficar indiferente ao assunto. Nem ficar-me mesmo só como espectadora. Interessa-me a Europa, aquela que decidiu unir-se, como me interessa o bairro, a rua, o quarteirão onde vivo. Tudo porque não consigo deixar de considerar este conjunto de países o meu habitat.
O habitat é o local que oferece as condições climáticas, físicas e alimentares ideais para o desenvolvimento de uma determinada espécie da Natureza, animal ou vegetal. E enquanto o habitat é essa localização adequada para a vida, o modo como cada espécie vive, se desenvolve e se reproduz num determinado espaço é chamado o “nicho ecológico”. Este nicho é uma parte do habitat e refere-se mais às circunstâncias em que um ser vive, ou a sua a forma de vida, do que o princípio do ideal que o habitat define.
Não que tenha qualquer tipo de problema com outro qualquer lugar do mundo onde seguramente encontraria, como já me aconteceu, lá está, o meu nicho. Mas porque entendo que a Europa é uma escala suficientemente significativa para que a diversidade, e toda a riqueza que dela advém, me permita sentir-me pertença de um coletivo verdadeiramente variado. Nada contra, também, a vizinhança de ao pé da porta, com quem as regras de civismo e civilidade permitem o são convívio. Afinal, quando ficamos limitados ao nosso nicho por razões que não da nossa vontade haverá lá melhor ambiente do que o da proximidade? Mas isso, de preferência, quando já se pôde ver mais mundo… E é também por isso que todos os programas de mobilidade que o facto de integrarmos a União Europeia proporcionam são, em meu entender, uma enorme mais-valia na formação de um indivíduo. Ou não tenha sido eu uma pioneira aluna Erasmus, há um quarto de século atrás. Talvez até por isso a minha consciência europeísta seja tão forte e as diferenças que uma identidade comum pode ter não seja, à partida, uma expressão contraditória nos termos, antes um enorme fator de riqueza.
Não consigo olhar para a Europa como o ATM, a caixa multibanco, dos governos e instituições nacionais, onde se vai apenas levantar dinheiro ou gerir as nossas continhas. Sabendo que esta é uma área muitíssimo importante para a vida contemporânea, sem idealismos anacrónicos nem medos apocalípticos, ambos impeditivos do progresso, o nosso e o dos outros, incomoda-me que a UE se tenha tornado, aos olhos de muitos dos seus cidadãos, um sítio lá longe onde se passam umas coisas e que o que é mesmo importante é que nos caia “algum” para gastarmos. Como se cada um de nós não contribuísse também de facto para esse “pilim” que nos é depois atribuído. Como se os dinheiros europeus não fossem públicos e, como tal, tão de cada um de nós como qualquer bem comum que para dele usufruirmos teremos de bem o tratar.
E é por isso que, do meu nicho, me preocupa tanto o que vai acontecendo por esse habitat fora, onde extremismos a bombordo ou a estibordo são cegos às circunstâncias. Felizmente, e com o que aparenta ser o rumo desta última semana a nível político – embora com fortes razões financeiras e desiludindo uns ou excitando outros - algum bom senso parece estar a ser tentado. É que na bandeira da UE luzem, no simbólico número de 12, estrelas com o mesmo tamanho. E o círculo é o símbolo da união que dá a imagem do lugar, habitat acolhedor, de quem dele faça parte na plenitude dos seus direitos e deveres. 

17.2.15

Fungagá

E porque é de Carnaval esta terça-feira, cá vai mais um ano uma crónica sobre o assunto. Afinal, estas festividades cíclicas também são uma forma de irmos contando os anos que passam. E este é já o quarto em que o Entrudo me entra pela escrita. Como o país do Carnaval é o Brasil, desta vez o estrangeirismo soa ao português que é: o fungagá, substantivo que designa, em português de cá e de lá, uma orquestra desafinada.
O mais conhecido fungagá português, dos anos 70 do século passado, é o da “Bicharada”, título de música infantil e disco de enorme sucesso, assinado e interpretado pelo Barata Moura – que se tornou num tão respeitável professor catedrático como foi como sucesso do mundo artístico e até chegou a Reitor da Universidade de Lisboa, onde esteve entre 1998 e 2006. O seu “Fungagá da Bicharada” fala precisamente de uma grandessíssima misturada de vozes e comportamentos algo caóticos dos chamados animais da quinta. Curiosamente, e se calhar não por acaso, é também uma peça musical clássica com animais a mais famosa do Carnaval: o Carnaval des Animaux, uma composição para dois pianos e orquestra do francês Camille Saint-Saëns, criada, pois claro, em Fevereiro de 1886, quando o compositor passava férias na Áustria. Parece que Saint-Saëns não terá permitido que a obra fosse publicada em vida, com receio que ela arruinasse a sua reputação de "compositor sério". Apenas o “andamento” d’ O Cisne, por ter um caráter mais sério, foi publicado durante a sua vida. Ironia do destino, entre os melómanos mais leigos, e tendo uma obra bastante vasta, esta é talvez a sua peça mais famosa.
O período do Carnaval, que é sobretudo festejado pelas crianças e muitas vezes permitindo-se comportamentos infantis nos adultos, é caracterizado pela inversão das normas aceites pela sociedade, sendo que alguns comportamentos são tolerados só mesmo porque se assumem nesta época festiva. É desta forma que um fungagá é muito aceitável no Carnaval, pois aquilo a que se chamam a si próprios os elementos que fazem parte de uma orquestra – ou, esticando o campo de aplicação do léxico, qualquer tipo de organização que mereça este nome –, poderá com o beneplácito de quem delas ou nelas viva permitir alguma bagunça durantes cinco dias. Um bom Carnaval, no fundo, deveria permitir que a seriedade se mantivesse e fosse a característica predominante no resto do ano.

É por isso sempre com uma grande expetativa que vejo os que festejam como festa rija o Carnaval, com gosto e não como obrigação. E fico assim à espera que, no resto do ano, sejam precisamente o inverso do que são nestes tempos de folia, desregramento e, porque não, alguma catarse. De que é que falo? Por exemplo, que as máscaras que usam no Carnaval sirvam para se disfarçarem de outra coisa que não são e que, depois, se usarem outras máscaras de dia-a-dia, que as há e é como quem diz se assumirem um determinado papel, não estranhem que provoquem nos outros as reações que supostamente devem provocar e não outras. É que, se no Carnaval, o Capuchinho Vermelho pode andar disfarçado de Lobo Mau, no resto do ano o que espera que funcione é mesmo a máxima de que «quem não quer ser lobo não lhe vista a pele». Se a tradição de que gosto, e que é aquela cheia de dinâmica civilizacional a marcar o ritmo e a adaptar-se aos tempos, ainda fosse o que era, seria assim que, tranquilamente, tudo funcionaria, em princípio e melhor.

10.2.15

Readers’digest

Vou falar-vos de leitura. Lembrei-me para tal de uma publicação mundialmente famosa, e lembrei-a mais até pelo título e pelo jogo de palavras que me permitia depois de ter assistido a uma seleta sessão de leitura. Falo da Readers’Digest, mais conhecida pela versão brasileira de Seleções.
A revistinha começou a ser publicada em 1922, quando o seu fundador, DeWitt Wallace, se recuperou dos ferimentos da Guerra. Durante a convalescença, este americano teve a ideia de editar uma publicação que fosse uma seleção dos melhores e mais úteis artigos dispersos já editados. A intenção era educar e estimular a leitura, com assuntos leves e informativos. Um dos objetivos na América do Sul e alguns países europeus como Portugal e Espanha, pois acabou por ser traduzida para 35 línguas e distribuída em 120 países, foi difundir a literatura norte-americana. Inclui até hoje, e apesar das enormes dificuldades pela provável concorrência da Internet, temas de saúde, anedotas, curiosidades, biografias diversas. Uma das secções da revista é o Livro do Mês que traz de forma condensada um livro atual, um estímulo à leitura de diversos géneros da literatura contemporânea.
Entre as elites intelectuais, ou que assim se batizam, ler as Seleções sempre foi sinónimo de superficialidade e pouco investimento no Conhecimento a sério, esquecendo muitas vezes nesta questão pelo menos dois pontos importantes: o primeiro é de que quem lia as Seleções adquiria o hábito de leitura semelhante à dos que a praticam com periódicos; segundo, que nem todo o cidadão almeja ser especialista numa determinada área do Conhecimento, mas que mostrar interesse pelo que se vai passando nesse controverso e sempre mutável mundo da Ciência, em qualquer dos seus ramos, pode querer ser acompanhado por leigos no assunto. Quem lia, e talvez ainda leia, as Seleções, ainda que o faça em modo de leitor fervoroso e incondicional, não será à partida um especialista em coisa nenhuma se por ali se ficar. Mas ficará seguramente muito mais desperto para o Conhecimento do que quem não o faça, nem ficará distante de quem leve os dias a ouvir e a ver alguns programas que nos chegam através da televisão. Resumindo: as Seleções são, de uma forma intelectualmente honesta, uma revista de divulgação generalista, tal como alguns canais da TV por cabo. Não confere grau de nada, mas apouca-la também não engrandece quem o faz, muito embora muitas vezes o que se apouque é quem acha que, por ter lido as Seleções, é especialista em generalidades. Mas disso há muito em todo o lado, e em todos os níveis, e sem nunca terem pegado na Readers Digest.
Ora, neste sábado que passou, assisti na Fundação Calouste Gulbenkian a um extraordinário espetáculo de leitura de literatura em voz alta. Não era uma peça de teatro e, no entanto, havia uma encenação cuidada. Não foi um espetáculo de amadores, no sentido de que aquilo que se faz seja uma atividade secundária aos restantes afazeres, porque os intérpretes tinham a leitura e os textos como uma prática e elementos obrigatórios na sua vida. As leitoras e leitores que ali estiveram, durante 45 minutos, tinham entre 13 e 17 anos e eram os 10 finalistas de um concurso promovido por aquela Fundação intitulado «Dá Voz à Letra». Foi de facto uma distinta “seleção de leitores” que ali tivemos, com uma seleção de textos que também nós, os espectadores, podíamos seguir, lendo. Tudo muito bem feito, do princípio ao fim. E aqueles miúdos deram uma lição sobre como a leitura é a primeira interpretação que fazemos de um texto, e de como quando essa leitura é em voz alta se revela logo, a quem ouve, qual a interpretação feita desse texto lido. E como isto é de uma importância muito maior do que se imagina. Pensem nisso!

3.2.15

Alô! Alô!

A propósito da que classifico eufemisticamente como incauta afirmação da Sra. Ministra da Justiça, «Falo ao telefone como se fosse para um gravador», lembrei-me da palavra “Alô”. É uma expressão, ou melhor uma interjeição, que alguns usam mais por contaminação do intermediário português do Brasil do que por apropriação do idioma que lhe deu origem. Sendo um aportuguesamento do «Hello!» inglês, se o usamos é para substituir o «Está sim!» ou «Está lá!» ou o só «Estou!», quando respondemos a um telefonema. Mas “alô” no português do Brasil também muda frequentemente de interjeição para substantivo e utiliza-se como sinónimo de aviso ou chamada de atenção para determinado assunto. Como na frase, por exemplo: «Dê um alô à turma sobre a mudança do horário.»
Será que a conversa que a Sra. Ministra fez foi um aviso aos portugueses que ainda acreditam que vivem num Estado de Direito? Será que, com os avanços tecnológicos, esta vigilância sobre o cidadão comum é uma realidade mais próxima e não apenas um discurso de afirmação de poder déspota, ou até só ficção científica? Será que a Sra. Ministra sabe que quem tem a autoridade para andar a escutar o que dizemos ao telefone a está a exercer sobre qualquer cidadão insuspeito como o devia ser, já agora, uma Ministra da Justiça?
Por outro lado, Alô! é bem mais teatral do que o «Estou!», convenhamos. Mais apropriado então para quem suspeite que está a ser ouvido por um público mais vasto do que o interlocutor do outro lado da linha. Terá sido a afirmação da Sra. Ministra uma cena intencionalmente cómica? Assim a evocar, sei lá, o «Alô! Alô!», essa magnífica comédia britânica de televisão transmitida na BBC durante 10 anos, a partir de 1982. Contava a história do René, dono de um café francês, durante a Segunda Guerra Mundial, numa vila ocupada por alemães que tinham roubado todas as obras de arte da vila. De entre o roubo incluía-se uma pintura - a The Fallen Madonna (with the big boobies) de van Klomp. O comandante alemão destacado na vila decide guardar as pinturas para si próprio, de forma a garantir a sua reformazinha após a guerra, e consegue que René os esconda no café. A Gestapo também quer encontrar o paradeiro das pinturas e envia o inesquecível Herr Flick, para as procurar. Ao mesmo tempo, René está a esconder no café corajosos pilotos britânicos, pois é forçado a trabalhar com a Resistência, ou seria assassinado por servir os alemães. Os planos da Resistência para enviar os pilotos de volta para a Inglaterra, que falham sempre, são o centro de atenções de todos os episódios. O objetivo da série não era fazer piadas sobre a guerra, mas sim sobre os filmes baseados na guerra, tendo acabado por fazer piadas sobre muitas mais situações. Desta série ficou-me uma expressão usada muitas vezes, contrariando-se ao próprio conteúdo da frase que dizia que só iria dizer o que seria dito uma única vez: «Listen very carefully, I shall say this only once!». A Sra. Ministra poderia estar a usar a mesma técnica de comédia. Sabe-se lá…

Talvez mais do que incauta a Sra. Ministra tenha sido histriónica. Essa característica que até apreciamos, eu cá aprecio, nos artistas, mas dispenso nos políticos que nos governam os destinos e têm obrigação de ser sérios quando falam. Era bom que a Sra. Ministra percebesse que cada vez que fala para o microfone de um ou uma jornalista está mesmo a falar para um gravador e todos podemos ouvir.