20.12.18

Natal, um must pessoal e intransmissível


Gosto da oportunidade de desejar a todos um Bom Natal. Não que me sinta nesta quadra, como por decreto, mais próxima de quem ou com quem estou quase sempre, ou com quem nunca estou por razões várias. Descobri que são razões muito minhas, as que me fazem gostar do Natal, das compras, da bagunça das combinações, dos excessos ou da impossibilidade de os cometer quando ficam para ali tão tentadores.

Gosto do Natal egoisticamente por causa de mim. E aprendi, não há muito tempo, a não tentar converter, e a condicionar ao mínimo, aqueles que me rodeiam a sentirem-se assim. Numa imagem que sei ridícula mas comum, não me importo de sozinha lançar os foguetes e apanhar as canas. Tento sempre, claro está, aproximar-me de quem me atura ou, vá lá, tolera e “deslargar” (adoro esta corruptela enfatizante do real aborrecimento de quem a usa no imperativo!) quem não entra neste espírito.

É como se esta quadra fosse a “minha quadra” de festejar o que quer que seja. Nem que seja só o facto de estar viva, o que não acontece a tantos que marcaram, de uma maneira ou de outra, a minha vida. E mesmo que a vida seja uma coisa difícil de usar. Festejo as boas memórias da infância que, no Natal, permanecem quase indeléveis nos sentidos: o frio na rua e o calor em casa, o cheiro que sai das panelas e do forno; os jingles da época repetidos até à náusea, as luzinhas e enfeites que quanto mais exuberantes mais risíveis e quanto mais equilibrados chegam a roçar o belo e o cuidado estético. O que, pelo menos no Natal e nem que seja só por obrigação ou interesse outro, alguns se empenham em ter.

Gosto do Natal com todo o meu espírito egoísta e a coberto de quase tudo o que se apregoa no calendário e que diz que deve ser em sentido contrário. Quase cobardemente, portanto, mas autorizada por leis várias. É porque posso! E vou aproveitando...

Um voto de feliz Natal a quem o queira! E até para o ano.

11.12.18

As duas faces da arte de nos tornarmos prescindíveis


Como uma moeda a sério e que pode circular por aí - porque não está colada junto a outra que mostra a cara ou a coroa oculta numa colecção - há também dois lados não confundíveis de exercer, ainda que com resultado aparentemente semelhante, a arte de nos tornarmos prescindíveis. Só um deles resulta mesmo da arte como saber-fazer. É que ou nos tornamos prescindíveis pela vontade que criamos nos outros de nos verem pelas costas; ou nos tornamos prescindíveis porque cumprimos cabalmente com o que o provérbio africano dita quando diz que o que importa não é dar o peixe mas ensinar a pescar. E se quisermos acrescentar uma pitada de cor local lusa ao caminho certo desta arte, poderemos talvez dizer que a obra-prima é aquele, ou aquela, que mesmo já se tendo tornado prescindível porque já fez tudo o que podia fazer e poder sair de cena, ainda deixa saudades.

Enquanto por terras mexicanas circulava toda a movida da festa da Cultura portuguesa, central ou periférica, mas invejavelmente constituída por privilegiados convidados, a representante do Governo, com a pasta da Cultura mas que também tutela os assuntos da Comunicação Social, usava os microfones desta para cometer contra a mesma uma realíssima e indesculpável gaffe (e estou a ser simpática ao chamar-lhe isso); enquanto isso acontecia, há um mesmo par de semanas, dentro de portas, entregavam-se os Prémios Gazeta da Comunicação Social pela mão do PR e com avisos para a profunda crise que se escava neste sector imprescindível ao bom funcionamento da Democracia e da vida em Liberdade.

A arte de nos tornarmos prescindíveis, ao que estou em crer, exprime-se e dá-se a ver, em dois campos diferentes e mesmo opostos: o da vida pessoal onde as relações se revestem preferencialmente de emoções; e a da coisa pública em que parecendo tão humano exprimir-se um lado afectuoso, que até não é desprezível, importa sobretudo que se imprimam nas acções e nas palavras que as acompanham uma frieza que evite sobretudo quer o disparate, quer o desperdício. E estes episódios coincidentes, mas talvez não por coincidência, vieram também fazer-nos pensar que nem só ao indivíduo parece abrir-se o risco de se tornar prescindível pelo pior dos caminhos, ou seja, sem arte nenhuma. É que não basta encostarmo-nos a um determinado estatuto, ou ao prestígio de um cargo ou de uma corporação, que respectivamente assumimos ou integramos, e com isso julgarmo-nos imprescindíveis, para passarmos a ser bons na outra difícil arte. Esta, como a Arte (com maiúscula), não se contenta apenas com vontades nem depende de efeitos por osmose. Antes requer uns imprescindíveis trabalho, empenho e bom-senso. 

O que nos pode ter relembrado a coincidência de há duas semanas é que termos consciência desta arte de nos tornarmos prescindíveis parte de um bom princípio, ditado por adágio popular, e que não é o hábito que faz o monge. Será até preciso, digo eu, uma certa vocação e, mesmo que muitos sejam competentes, nem todos se conseguem livrar da tentação de tentarem ser imprescindíveis, ao quase ponto da beatificação em vida, e atingir o que acredito ser uma difícil meta coerente da condição humana, sem falsas modéstias: tornarmo-nos prescindíveis.

4.12.18

Uma feira onde morre gente na estrada


Tenho uma amiga que, em tempos, quando rematava as conversas sobre as múltiplas disfuncionalidades de Portugal, assim um todo para designar partes, exclamava: Portugal é uma feira onde morre gente na estrada! E tinha razão.

Recuperados os corpos do desastre na estrada entre as pedreiras de Borba, que agora descansem em paz e que as famílias se despeçam nas cerimónias que ajudam nas despedidas definitivas, só agora me parece o momento de passar às conversas a sério sobre o apurar de responsabilidades e de quem terá de ressarcir os danos, aqueles que apenas cobrem uma ínfima parte do que deve valer uma vida, equação impossível de dar conta certa. Só agora, porque até agora, tudo - à excepção da informação sobre o andamento das operações de resgate - tudo o que pudesse ser dito, para além do lamento pela perda de vidas e o que apressasse as ditas operações, me pareceu um já demasiado vulgarizado macabro espectáculo de abutres em pleno banquete.

Mais uma vez, e desta quase propositada e simbolicamente numa estrada de uma povoação famosa na região pela sua Feira anual, as imagens e reportagens informativas atraíram a montagem do espectáculo: uma feira onde morre gente na estrada... Rapidamente tantos se precipitaram para participar que, inevitavelmente, se desumanizou aquilo que era tudo, ao que parece, em defesa de seres humanos, os cidadãos eleitores portugueses. Desumanizou-se para se transformar num trampolim de oportunismos vários, com figuras disfarçadas (ou nem isso, assumindo mesmo a função) de carpideiras. Falo dos que são, e exercem o poder de serem, contrapoder. Numa altura em que apenas, em meu entender, o que importava era exigir que se terminassem as operações que estão só agora terminadas. E em segurança, sobretudo, já agora.

E agora, finda essa parte, agora sim, quando a carne e os ossos já se enterraram, que não se despeguem todos os sentidos do rumo que leva o apurar das causas, das responsabilidades de quem poderia e deveria ter evitado um desastre naquela dolorosamente bela paisagem. Ali, onde a marca, que fere, da pegada humana não pode ser apagada com um sacrifício. Nem com o esquecimento de quem, ainda que por acidente e não por vontade própria ou alheia, entregou a vida à terra esventrada. Não é assim que se tratam os vivos, e muito menos os mortos que já não estão cá para serem vistos e ouvidos. Apurem-se as responsabilidades deste, como de outros casos, e peça-se então que todos cumpram as suas: as instituições nas pessoas que por elas dão e se propõem a dar a cara, e o cidadão que espera que cumprir as suas responsabilidades lhe não ponha, pelo menos, a vida em risco.