4.4.23

E há um dia em que…

Pode-se ter uma família, amigos, educação, formação mas pode haver um dia em que a adversidade bate à porta e parece que tudo o que é amor de e por pessoas e conhecimento não chega para se continuar a levar a vida com equilíbrio. O equilíbrio é até mais difícil de encontrar do que a paixão, que é o que nos arrebata e move e nos leva a conquistas e a aventuras. E das quais se fazem ilustrados balancetes públicos, e pelas quais até muitos se avaliam como tendo uma vida muito cheia, ou não.

Talvez equilíbrio seja a palavra que significa o que se treslê na palavra amor. Fez-se do amor a âncora da vida humana, mas confundiu-se com paixão e essa confusão fez o seu caminho. Tanto assim é que até se deixou a paixão dentro de nós, na relação com pessoas e coisas, e se entregou o monopólio da representação e distribuição do amor a um ser invisível e omnipotente. Tanto assim é que alguns, nos piores momentos das suas vidas de crentes, se sentem abandonados por essa força superior e inigualável. Até dizem sobre o tema coisas bonitas como poemas ou canções pop: “Não é sobre se eu acredito no amor, mas se o amor acredita em mim.” cantam os U2 num momento de rendição.

É por tudo isto que, sendo uma tragédia, o que aconteceu ao homem que matou duas pessoas no centro Ismaili em Lisboa, é tão humano. Mas ele passou a ser um criminoso apesar da família, dos amigos, da educação, da formação. Esqueceu tudo e num plano em que o desequilíbrio que até àquela manhã foi, heroicamente, conseguindo ultrapassar, se instalou. Nada parecia, apesar de uma vida cheia de drama que alguns foram ajudando a reequilibrar, conduzir àqueles crimes. Não houve lógica, não houve racionalidade, mas naquele dia aconteceu.

E também é por isso que a criatura do ser humano a que chamamos Inteligência Artificial (IA) parece tão ameaçadora a uma certa Humanidade. A frieza do algoritmo depende do equilíbrio de quem torna a máquina replicante uma parceira para a vida: a criatura repete a equação com os estados de alma do criador. A menos que descenda do Hal de Kubrick, o seu comportamento constante, lógico, confortável, recíproco, emula o que parece amor: confortável, calmo, sem discussão nem conflito. Em paz, como o amor quer que estejamos. A IA ameaça-nos ultrapassando-nos em virtudes que achamos inimitáveis, que nos dizem que só dependem do que nos habituaram a chamar amor. Um descanso, parece. E talvez a oportunidade para a percepção do peso das palavras e do seu uso ganhar alguma escala, como se costuma dizer.