30.5.23

É urgente

Quando se fala de Eugénio de Andrade, cujo centenário está a ser assinalado este ano, talvez se reconheçam melhor dois dos seus poemas: o que tem como verso inicial “Já gastámos as palavras, meu amor”, e se chama “Adeus”, e o “Urgentemente”. Este segundo poema, que repete as palavras “É urgente” no efeito estilístico que alguns se lembrarão designar-se, tecnicamente, anáfora, aparece-me sempre que as oiço em manifestações políticas, seguidas de reivindicações várias ou genéricas. Mesmo sabendo que o primeiro verso, “É urgente o amor”, é de uma banalização inquietante e requer ler-se o poema até ao fim, e mais além, para lhe reconhecer o que não é nele banal. O cânone escolar tem esta força, já que são, ou foram, estes os poemas que mais se citaram do Poeta nos manuais.

Toda esta conversa não é sobre o sistema nacional de Educação, veio antes inspirada pelas mudanças anunciadas noutro Sistema e visam retirar das urgências dos hospitais doentes que não são urgentes. Os hospitais que se confirmou tratarem-se, como todos reparámos na pandemia da Covid-19, lugares onde se deve praticar, com condições diferentes bem entendido, aquele princípio afixado em alguns sítios de diversão: “É reservado o direito de admissão.” E, neste caso em concreto, a admissão ao que é urgente.

As medidas requerem não apenas mudanças de recursos que, normalmente, são sinónimo de investimento financeiro, como de práticas e procedimentos. Sobre todas estas nada direi, por falta de tempo e, sobretudo, de informação concreta. Apenas assinalo aqui que à mudança corresponde quase sempre a reacção de resistência, mesmo por parte de quem também quer mudança. Para já assim, sem artigo definido ou indefinido. As reacções das corporações envolvidas nas mudanças parecem-me, muitas vezes, as reacções genéricas do “Que chatice, lá vou ter que mudar a minha vidinha” ou “Que boa oportunidade para me livrar de chatices desta vidinha”. Esta última, provavelmente muito mais rara, sendo o ser humano um animal de hábitos.

Os artigos definidos - “a” mudança ou “uma” mudança - são tão difíceis de analisar, desmontar ou, como agora é moda dizer, desconstruir, como dá trabalho, e requer perspectivas que considerem vários pontos de vista, fazer uma escolha entre várias opções que se nos apresentam. Há que hierarquizar, prever e/ou inferir a partir de várias hipóteses de que apenas saberemos concretização benéfica quando já estiver em andamento ou, até, quando se chegar a alguma meta.

A hierarquização também é o mais difícil de fazer quando nos deparamos com a abundância, ou, vá lá, com a vantagem de termos por onde escolher. Na hierarquização das possibilidades, na mudança, cria-se a oportunidade de criar conflito e perpetuar a reivindicação. Não tendo a função de criar as opções, mas tendo a possibilidade de ciclicamente escolher quem o faça, é importante que os eleitores relembrem aos eleitos de que há quem esteja e continue atento. É por isso que eu gosto de acreditar (sim é uma questão de fé) que as marchas - não as dos populares Santos - são lugares repletos de eleitores. Mesmo quando as marchas que têm acontecido pelo nosso país, e em todas as democracias de resto, sejam inevitavelmente apropriadas pelos Partidos.

É quase norma, destas organizações, estarem atentas a oportunidades e imitar o molusco Paguro, também conhecido por Casa Alugada (aqueles que, quando encontram uma concha maior vazia, vão, direitinho, ocupá-la). De assinalar que na Marcha por mais SNS, no passado dia 20, organizada pelos sindicatos, ficou bem evidente quais são as conchas e quem é o Paguro. E parece que também chegámos àquela fase da Democracia em que as organizações começam a perceber que a sociedade civil é maior que a soma das corporações que se constituem em lobbies e que as Manifs passem a chamar-se Marchas. E é bom que as associações cívicas, as que de facto organizam e convocam Marchas e Paradas, e ambas só podem crescer na terra democrática e fértil, persistam o seu trabalho de encontrar, no calendário cíclico, a pluralidade para continuarem a não deixar cair as suas causas e procurarem interlocutores com quem vão ter a oportunidade de hierarquizar as suas críticas ou reivindicações e escolher o melhor caminho a propor para o colectivo que é soma das partes. Mesmo sabendo que, para umas partes, será uma chatice e, para outras, uma boa oportunidade.

O que me parece ser urgente é mesmo dar tempo ao Tempo a quem sabemos qual a meta para que corre, urgentemente. Como no poema, o último verso conclui em aparente paradoxo que se, e cito-o, “É urgente o amor, é urgente permanecer.”