14.3.23

Da esperança triste na fé

Não tinha ainda falado no assunto do processo aberto sobre os abusos sexuais de menores, cometidos por membros com responsabilidades efectivas oficializados pela instituição que é a Igreja Católica, a chamada hierarquia, porque fiquei à espera de este ter chegado à fase em que a comissão independente o devolveu à instituição. Embora não tivéssemos dúvidas sobre os resultados, a novidade está na forma como o que era assunto resolvido casuisticamente, com ou sem direito à reparação possível dos danos, estar a sair do “sempre foi assim” para o “vai ter de ser diferente”. Isto visto de fora, em massa, porque de dentro há muitos, não todos, que mantêm a expressão: “se sempre foi assim porque é que agora é que há-de ser diferente?”. 

A Igreja Católica adaptou-se relativamente bem à mudança de paradigma da caridade da esmola, para ser um importante parceiro da imensa máquina do Estado social que se quer a funcionar bem, sistematicamente. Terá chegado a altura de se adaptar à não imunidade dos seus membros perante a suspeição de crime, reconhecendo inclusivamente que o sacerdócio não retira a humanidade das pessoas que o tomam como forma de vida. E quando provado o crime, como foi pela comissão independente e nós já sabíamos e a Igreja também, a impunidade não se aceita e o crime já não se resolve pelo encobrimento caso a caso, como uma esmolinha.

Esta grave situação, que agora chegou ao sangue das tintas e dos pixéis da comunicação social para ir mais além, deveria servir para as igrejas em geral mudarem muito. Falo no plural, porque sabemos que a Igreja Católica não tem o monopólio do exercício do poder através de práticas sexuais não consensuais, nem o de se achar a coberto dessa tal imunidade em qualquer pensamento, palavra, acto ou omissão desumanos. Há uns bons anos, algumas igrejas, numa espécie de boçalidade de bancada de campeonato de bola, rejubilavam com os crimes da IURD. Nos dias que correm, o que é feito em nome de um Deus a que chamam Alá, envergonha milhões de saudáveis crentes que também continuam a ser social e injustamente enxovalhados. Está visto que o progresso civilizacional acabará por tocar a todos, mesmo se o avanço se faz com vários tropeços e desvios. A grande lição, depois de justiça ser feita, será semelhante à de substituir a caridade pelo serviço social: a sensação de impunidade terá de ser substituída pela vivência plena da apregoado humildade dos e nos fundamentos das instituições que vivem em função da religião. Seja ela qual for. 

Segue uma palavra de solidariedade para os católicos tão tristes e desiludidos de hoje, os que esperavam que as vozes destes oprimidos chegassem finalmente à Terra. Como a envio, esta palavra, aos muçulmanos tão acusados de terroristas, aos judeus gozados pelo zelo do que é propriedade herdada das suas tribos, aos protestantes diabolizados por ousarem desafiar o Vaticano, aos evangélicos olhados de lado pela proliferação de templos e estratégias de catequização populares, e a outras religiões que não conheço bem mas que padecerão das mesmas desconfianças de certa gente de fé de todas as outras. Sim, para todos os que activamente fazem da sua fé um modo de vida segue o meu abraço solidário de descrente, mas com muito respeito por instituições que congregam muitas gerações de boa-vontade, longe das suas cúpulas que as mal representam. Se fossem a votos como nas democracias…