28.1.20

Nos bastidores de uma Capital da Cultura


Está a fazer um ano que a CME oficializou a candidatura a Capital Europeia da Cultura 2027. As reacções, quando há quase três anos se começou a falar nisso, foram várias, do “já ganhámos” ao “deixa-me rir”, passando pelo “olha que boa ideia, deixa lá apoiar não vá parecer que não sou pró Évora”. Faço esta crónica agora, porque não quero esperar por uma eventual derrota para bater no que já está morto, prática useira e vezeira na mesquinhez de muito cidadão.
A entrega das candidaturas é em 2021 e a decisão final será conhecida em 2022, pelo que este ano será o último completo em que cada Cidade dará tudo por tudo para mostrar o melhor de si, no que à Cultura diz respeito. Os critérios a avaliar são “a contribuição para a estratégia a longo prazo, a dimensão europeia do projecto, o conteúdo cultural e artístico, a capacidade de realização, o impacto e a gestão”, pelo que tenho lido na CS. Na avaliação do impacto que esta iniciativa tem na vida cultural dos seus habitantes deverá, pois, ser tão ou mais importante que o impacto económico de uma Cidade que acolherá muitos eventos e visitantes, o que mexe com os negócios: gente a dormir, a comer, a comprar. Não há como não desejar isso tudo para um lugar que queira mesmo... tudo isso. Será que os Eborenses querem? Devem querer, pois em todas as candidaturas às últimas eleições autárquicas o assunto foi abordado.
O que me leva, então, a duvidar da vitória desta candidatura é, de facto, ela - e sobretudo todo o executivo municipal eborense e orgulhosamente alentejano que tem, a vários níveis, uma visão monopolista do capital cultural português - não contar com a realidade. Está, a parte maioritária do Executivo, antes a usá-la como oportunidade para investir numa área evitando ser acusado de estar a “dar circo quando era preciso pão”.
O meu pessimismo relativamente a esta candidatura, para além da escala de que já falei noutra crónica lá muito para trás[i], prende-se com a pouca adesão dos cidadãos de Évora a iniciativas culturais, o que deixa pelo menos três critérios em risco. Os caros ouvintes avaliarão quais são, se pensarem um pouco sobre o que é a vida cultural em Évora.
Não falo da monumentalidade do Centro Histórico ou no pitoresco das ruas e recantos, nem na lindíssima paisagem alentejana, na magnífica gastronomia, doçaria e vinho, que são mesmo do melhor que há no Mundo. Não falo do espectáculo na Praça onde, obviamente, se confunde o espectador interessado com o cidadão que vai dar uma volta até à cidade. Não falo do cinema de centro comercial, mas de público que, havendo um cineclube, insistia em que em Évora não havia cinema. Não falo sequer das comemorações do 25 de Abril com o seu fogo-de-artifício que, felizmente, parecem aguentar, em tempo e modo, o advérbio “sempre”. Falo de um teatro municipal que não consegue ter um programa razoável de espectáculos que circulam pelo resto do país, por razões que já soube serem em tempos politico-partidárias e que, francamente, ao fim de seis anos, só entendo como uma incapacidade de atrair propostas. Falo na existência de apenas uma livraria que seja mesmo só uma livraria. Falo em eventos que têm pouco público, umas vezes porque sim, mas outras vezes porque só se divulga entre poucos e não faz falta quem prefere estar noutro evento ali ao lado, à mesma hora. Porque estamos habituados a estar sossegados em casa e se é para sair é para ir, já agora, ali a Lisboa ao festival X ou ao espectáculo Y. Podemos mesmo ter uma agenda diversificada, que não deixaremos de ouvir que “não se passa nada em Évora”. Uma dúzia de anos, com uma meia-dúzia de cabecilhas a enfiar este refrão na cabeça dos Eborenses fez mossa. Já passaram meia-dúzia de anos e a coisa não está fácil de reverter a favor do que é preciso para ter uma certa cultura numa cidade que a possa tornar Cultural, assim com maiúscula: conhecer e valorizar o seu capital humano acrescentando-o com o património dos que cá se instalam, por cá passam, recebendo todos sem rótulos sobranceiros de “denominação de origem controlada” ou cómico-insultuosos de “não ser de cá”. Era tão bom que Évora ganhasse e a Europa toda em peso viesse cá meter o bedelho em 2027! Isso é que eu gostava mesmo.
Até para a semana.

21.1.20

125 anos de Biblioteca Pública

Os 125 anos que passaram democraticamente sobre várias bibliotecas envelhecem-nas de forma diferente. A biblioteca a que dedico esta crónica, e que festeja 125 anos, é fora do Alentejo, até de Portugal: é a Biblioteca Pública de Nova York. Não toda pública uma vez que é gerida por entidade privada sem fins lucrativos. Para começar o ano desta comemoração, provavelmente fruto do trabalho de alguns dos seus três mil e muitos funcionários especializados nestas contabilidades de rankings, publicou uma lista dos 10 mais requisitados livros de sempre, com uma adenda de honra. O que me mereceu motivo para vos falar deste assunto, a partir de Évora, foram as conclusões curtas e claras que puderam ser retiradas deste aparentemente leve exercício de comunicação e publicidade de rankings, que tanta gente desmerece; mas também foi a divertida e entusiasmante história da menção honrosa desta lista, para a qual um colega com quem interajo na minha rede de amigos no Facebook me alertou[1]. (É que cada um tem a rede social que merece e eu aprendo muito com a minha, mesmo não tendo lido o único livro de autoajuda deste ranking que, veja-se, data de 1936 e anuncia o título que trata de como fazer amigos e influenciar pessoas. Talvez os utilizadores das Redes Sociais não se dêem conta de que frequentá-las é qualquer coisa como poder dizer que se os amigos são a família que escolhemos, então os membros da nossa rede social são aqueles com quem escolhemos conviver socialmente, quando há distância e sossego para esse convívio.) 
Das conclusões publicitadas, destaco estas: os livros mais curtos circulam mais e os mais longos ficam nas casas dos leitores durante mais tempo, com mais renovações de empréstimos; como não têm livros só em inglês mas traduzidos ou originais de outras línguas, quanto mais idiomas mais empréstimos; quanto mais tempo os livros se mantêm em listas de aconselhamento para leitura nas escolas, mais leitores têm; assim como os que recebem mais prémios, os que tratam assuntos mais globais e menos locais, mais universais mas também os que tratam assuntos de que se fala mais fora do mundo dos livros, todos estes saem mais das estantes. Parecem, pois, lançadas as dicas para fazer clássicos desempoeirados e dar a perceber a quem ainda não o conseguiu, o que também é a Literatura.
A outra curiosidade é a escolha para menção honrosa de uma obra que parece ter adulterado este Top 10. Trata-se de uma obra também para público infanto-juvenil, como seis das que figuram no ranking selecto de leituras, que tendo sido publicada em 1947 só em 1972 foi adquirida pela Biblioteca e passou a morar em Manhattan, e nos polos por onde a PLNY se espalha, para ser lido à borla pelos seus cidadãos. Goodnight Moon de Margaret Wise Brown não entrou nos catálogos desta importante biblioteca porque uma, sim uma, bibliotecária, a que era responsável pelo sector infanto-juvenil, embirrou com o livro, escrito num estilo mais progressista de uma corrente que nascia noutro bairro da Grande Maçã. Anne Carroll Moore de seu nome, exerceu entre 1906 e 1952 e conhecer a sua história parece valer muito a pena. A importância que teve quer na promoção da leitura, quer na influência da vida comercial deste e de outros livros e gerações dos leitores que frequentaram aquela biblioteca, contribui para tornar mais verosímil a ideia de que a vida ou morte de uma andorinha pode trazer ou levar a Primavera. Parece um enredo de ficção, com traços de ironia poética, mas não é. Foram vidas, de pessoas e instituições. E umas fazem outras, em muitas áreas.

14.1.20

Aquilo que é impactante é aquilo que é o top



Ora bem: esta é a expressão que parece vir a substituir o pobre autoritário, e por isso ridículo em tantas ocasiões, “É assim” na expressão de argumentos em conversas mais ou menos formais. Começar a crónica que intitulo “Aquilo que é impactante é aquilo que é o top” pode parecer que quero fugir ao tema político do orçamento, ao cíclico terror sempre anunciado de um dos sempiternos geo-conflitos mundiais, ao horror dos incêndios na Austrália sem SIRESP para culpar mas com alterações climáticas a que se continuam a fazer orelhas moucas nos lugares cimeiros dos destinos políticos do Planeta. Pode parecer que quero fugir a isto tudo e mais algumas coisas, mas não. É apenas pegar nestes e noutros assuntos por um outro lado. E é voltar aos media como instrumento, instituição e fim em si mesmos na sociedade contemporânea.

Oiço muito a Comunicação Social para me manter a par das notícias e conhecer opiniões e contraditório sobre as mesmas, optando por ignorar a maioria das vezes as imagens. Percebo que os meios audiovisuais sofram muito mais agora com a necessidade de usar o que se chama no jargão “encher chouriços”. O truque de manter o microfone com som quando a imagem não mexe para evitar que o público “saia da sala” leva a conversas pouco interessantes, por vezes a roçar o “lá-lá-lá” das cantigas com falta letra e sem que esse refrão reduzido seja portador de sentido e, como tal, não redundante.

Verifico é que a redundante e irritante expressão “aquilo que é”, nas suas variações de pessoa, género e número, tomou de assalto o discurso captado pelos microfones. E proferido por gente com níveis de habilitações e, alguns com posições relevantes, que me levam a pensar que quem a usa julga tratar-se de um factor distintivo no requinte do uso da língua. Não é. Pode não significar ignorância ou pobreza de vocabulário, claro, como o repetir de certos adjetivos, mas sim um tique de pouco à-vontade ou nervosismo, o que para alguns pode ser compreensível e será para muitos, corrigível. Já o que tem correcção mais difícil é quem pense que é mais do que os outros por enrolar com as palavras quem quer ouvi-lo ou ouvi-la. Isso acontece também com o uso para tudo e mais alguma coisa dos tais adjectivos, normalmente na moda e a parecer modernos ou eruditos como ,respectivamente, “top” e “impactante”.

O que é que isto tem a ver com o OE2020, o conflito no Irão ou as alterações climáticas? Alguma coisa tem, certamente. O facto, pelo menos, de ser através dos mass media e da Comunicação Social que tomamos conhecimento e formamos opinião sobre o que vai pelo Mundo. E que se não usarmos algum tempo a pensar até sobre a forma como isso que vai pelo Mundo chega até nós, exercitando o nosso espírito crítico, talvez acabemos a usar sem nos darmos conta a opinião de outros que acham que têm mais jeito para a dar. Acham e parece que têm, quando ouvimos estas virais formas de expressão na boca de toda a gente, desculpem-me a generalização provavelmente injusta. Às vezes, os sintomas de casos graves chegam com estranhos e aparentemente insignificantes sinais.


7.1.20

Do Ai! ao Ai!Ai!Ai!


Antes de mais, os meus votos de um bom 2020. O ano que entrou com o anterior a despedir-se com mais uma cena decorrida no hospital de Setúbal, desta feita uma agressão de uma doente a uma médica. E com os professores a reclamarem-se, pelas redes sociais, ainda no topo do ranking das corporações agredidas. O ano que entrou com o PR, ele mesmo, a não acatar os conselhos das autoridades, semelhantes àqueles que devemos seguir quando as intempéries acontecem, e a viajar são e salvo para a Ilha do Corvo. Das duas uma: ou provou que quem não arrisca não petisca, ou quer provar que é um ser ungido e inquebrável como um super-herói. Até porque, a juntar a isto, ainda se o ouviu a assumir o facto de andar a levar uma vida que os seus médicos desaconselham. Enfim, não sei se chore, se ria...
De facto, às vezes dou por mim completamente derrotada nos argumentos que uso com quem converso sobre a importância do Conhecimento e da Cultura no desenvolvimento do indivíduo... É que chega um microfone e uma câmara e zás!, parece ficar tudo reduzido ou à parvalheira ou, feito o recorte e a edição, à descontextualização criadora de não mais que uma comédia rasca.
A juntar a isto, ainda tivemos o Papa a dar um valente sopapo na mão de uma fan em histeria que, diga-se, parecia estar a “pedi-las”, para usarmos o jargão de muitos dos agressores em casos de crime provado de violência doméstica. Bem sei que logo a seguir veio pedir desculpas e perorar sobre o horror da violência sobre as mulheres, mas eu oiço para aí muita gente a educar outra dizendo qualquer coisa como “que as desculpas não se pedem, evitam-se”. É uma expressão algo irritante, porque quando se faz asneira e se prejudica alguém, o mínimo é pedir desculpa. Mas nem isso apaga o mal feito, nem é garantia que a lição tenha sido aprendida.
Concluindo, parece que entrámos nos loucos anos 20 deste século um bocado endoidecidos. Entre os “ais” de dor e os “ai,ai,ais” dos ralhetes, feita a média dá um “ai, ai”, suspiroso, ou um “ai, ai” queixinha, ou um “ai, ai” lamuriento. Qual deles o pior! Depois admiremo-nos que seja o mafarrico a escolher...