31.3.20

Uma crónica sobre tapetes (1)

A COVID19 veio tirar-nos o tapete debaixo dos pés. É sobre estes tapetes e efeitos do seu desaparecimento em vários pés que me demorarei nas próximas crónicas. Ao fim de duas semanas e meia de isolamento social físico, em que tento – e falta muito pouco para conseguir – trabalhar o dobro, o tempo para pensar nesta revolução das nossas vidas torna-se no melhor quebra-cabeças, no microscópio mais preciso, no telescópio mais poderoso. O tempo que podemos arranjar para recolher, sistematizar e estudar as ideias a partir dos factos que nos chegam, sobretudo, através do discorrer de palavras que nos recordam, ou alertam para, a realidade. E que de preferência nos venham a servir de tópicos para lições futuras.
Vou começar pela política local, normalmente dada a questiúnculas que parecem mais ridículas ainda quando comparadas com as questões planetárias prementes, mas que têm um impacto importante no bem-estar quotidiano e nas necessidades básicas dos cidadãos. Sobretudo dos que já estavam mais confinados ao local, sem possibilidade de escape. E se vou falar do local, que seja de Évora onde, mais uma vez, se reflecte agora o espírito treinado, entre 2001 e 2013, para se fixarem as atenções e reivindicações, bem como as formas de as concretizar em torno de três problemas que como outros agora, dir-me-ão, diz muito sobre o nível de importância dos mesmos na vida que nos espera.
Ora, então, o actual executivo da Câmara de Évora dizia que estavam mal: as finanças do próprio município, as actividades culturais oferecidas aos seus munícipes e a limpeza do espaço público. Imagine-se, agora, como vai ser a vida de quem, apostou em reequilibrar as finanças no tempo em que esse era um objectivo nacional – estávamos todos na mesma, a sair da crise – e em que o fez começando, nos primeiros quatro anos, a recolher os frutos do esforço anterior em tornar Évora atraente para empresas e negócios. A pandemia de crise económica que se seguirá depois de tratada a da saúde, tirará esse capacho dos pés do município que, com o risco de parar de servir quem deve, terá de desequilibrar a sua própria casa para continuar a servir as dos cidadãos. Ou então não serve para nada, de finanças arrumadinhas num capacho e o resto do chão por tapar.
E o tipo de actividade cultural em que se apostou tanto – na rua e dependente de uma cara logística de deslocações internacionais, porque assente em pouco auto-suficientes, mesmo que excelentes, agentes – tornar-se-á, quer-me parecer, no tapete cada vez mais mágico e difícil de encontrar, e com pouco espaço para que muitos se sentem nele e, com todo o direito que têm, viajem.
Resta varrer o quintal. O que já se fez com todo o afã usando o glifosato e que, e bem, uma vez denunciado levou a investimento em alternativas que, obviamente, podem até fazer parecer as ruas mais limpas, mas não evitam que a pandemia chegue a Évora.
Quando fazer política, metaforicamente se transforma num mero exercício doméstico de espalhar lixo para que outros tenham de o apanhar, para que depois se apareça armado em bate-escova-aspira, mas com os mesmos ou piores recursos e engenho para resolver o problema que era salvação; e se procure esconder o lixo debaixo do tapete, quando este é puxado por uma força cósmica, o que ficará à mostra não é bonito. E isso quase justifica que um presidente de Câmara faça um discurso de sete minutos aos cidadãos em que não diga absolutamente nada. Como foi, de facto, o caso.

24.3.20

Entre a pedra e o precipício

É em momentos graves como o que atravessamos que percebemos a fibra de quem tem o poder que lhe dá direito e dever de decidir. É também nestas alturas que se dão a conhecer os que podem demonstrar se coincide o que diziam fazer com o que fazem: o empenho, a vontade, a capacidade, o esforço com resultados. E não o que dá palpites com o “se fosse eu”, o que não pensa antes de acusar se naquelas circunstâncias faria melhor e, sobretudo, como o faria. Isto, naturalmente, não nos impede de concordarmos ou não com essas decisões, esgrimindo-se argumentos.

O PR decidiu decretar estado de emergência. Disse ele, e cito: “Sabia e sei que os Portugueses estão divididos. Há quem o reclame para anteontem. Há quem considere dispensável, prematuro ou perigoso. Sabia e sei que, em plena crise, as pessoas se sentem tão ansiosas, tão angustiadas, que aquilo que pedem um dia ou uma semana, uma vez dado, é logo seguido de mais exigências ou mais reclamações, à medida que as preocupações ou os temores se avolumam.
Sabia e sei que muitos esperam do estado de emergência um milagre que tudo resolva num minuto, num dia, numa semana, num mês. Ainda assim, entendi ser do interesse nacional dar este passo. “

Pois é, Sr. Presidente, é isso mesmo! Daqui para a frente, com este discurso de muita fé, os mesmos inconscientes que o Sr. satisfez com esta medida (não falo dos cumpridores!), vão continuar a achar que é preciso mais e mais para controlar “os outros”. Que discurso desastroso! Atenção, que não discordo nem deste estado de emergência e muito menos das medidas que apertam a malha aos inconscientes. Que aliás foi o que aprovou a AR. Foi mesmo a patetice do discurso, elogiado por tantos, que me irritou. Nada de novo de um homem que em tempos defendia uma lei em que “é proibido...mas pode-se fazer”. Não é assim que vai combater o populismo. Nem o pagode que, uma vez a salvo, se borrifa nos outros porque tem um PR que gosta muito deles e rebéubéu!... A versão verbal da beijoca e da marcelfie.

Enfim, entre uma série de empedernidos que, nomeadamente nas regiões menos atingidas, ficam à espera que nada de mal lhes aconteça, de preferência erguendo muros vários contra os que vêm de fora; e os que se precipitam para ganhar a eternidade da fama, mas como se não houvesse amanhã; entre a pedra e o precipício, ainda há os que, como vários de ideologias diferentes na AR, legislam seguindo o discurso que toma como princípio as meditações de John Donne, poeta que viveu entre séculos, o XVI e o XVII, com sentido do colectivo: “Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.” É assim que fala quem, percebe o valor e a importância da palavra. É que já percebemos que os problemas de comunicação podem matar e não podem ser desculpas de políticos sérios e a sério.

17.3.20

É preciso é que todos fiquem bem...


Habituámo-nos a ouvir a quem já viveu muito (advérbio e quantificador algo incerto e de preferência o mais elástico possível, pronunciado com prolongado “u” na primeira sílaba) expressões de fé mesmo sem Deus lá dentro.
“É preciso é que todos fiquem bem” podia ser uma delas. Mas é, de certezinha, uma espécie de refrão pronunciado por uma personagem, o Capitão Andrade, de um conto de Mário de Carvalho de que terei de falar numa das aulas à distância a dar nestas semanas do resguardo, preventivo da quarentena ou, na pior das hipóteses, da baixa.

Estamos a viver o segundo momento verdadeiramente transformador da história da Humanidade deste século. O segundo em vinte anos. A coisa anda a ritmo de bytes, esperando que à velocidade se junte a capacidade de memória. Dos dois - 9/11 e COVID19 - ficará, de certezinha, o mesmo que ficaram de todos os outros, uma moeda cunhada nas duas faces por representações diferentes do mesmo tema: o medo. O vencido e o instalado, o ultrapassado pelos integrados e o instrumentalizado pelos apocalípticos (para usar a referência a uma obra de autor que revisito e cito constantemente, Umberto Eco).

O medo do desconhecido e o medo do Outro, também eles duas versões do mesmo adversário, que unem e separam, que nos fazem avançar e recuar no caminho do progresso. Caminho sem fim à vista nem limites de velocidade.

Só quando tudo estiver resolvido, poderemos procurar culpados e heróis. Para já remetemo-nos à nossa condição de personagens de enredo que parece saído de um exercício de escrita criativa e colectiva, cujos autores escolhidos estão à prova e só no fim se saberá se temos arte ou outra coisa. Mas sempre com o risco, que ouvimos tantas vezes aos bons escritores, de as personagens deixarem de obedecer ao seu criador e ganharem vida própria. E no fim só “é preciso é que todos fiquem bem”. Vamos ficando nós por aqui, a trocar umas impressões sobre o assunto. Cuidem-se, porque se isto corre mal a alguns pode e vai correr mal a muitos.

10.3.20

Ajuizados

Não queria estar na pele de um juiz, embora a função de ajuizar faça também parte da minha profissão. O mais frequente é ajuizar-se em função de regras estabelecidas, dar-se exemplos de respostas acertadas ou cumprirem-se critérios o melhor definidos possível, para que não se mudem, à traição, as regras a meio do jogo. E a opinião, a ser critério, tem de ter argumento sólido. Ainda assim, é difícil: o mínimo deslize pode dar cabo de uma vida.
Parece que, ao contrário do que acontece noutros países, o sistema judicial em Portugal é pouco escrutinado. Tudo parece resolvido não apenas no sigilo que a delicadeza do juízo do crime e castigo exigem, mas num recato contextual que favorece a opacidade. Os casos dos juízes que vieram a público começaram a levantar uma pontinha desse véu e, já agora, podiam fazer-nos estar mais atentos daqui para a frente. É que não há corporações imaculadas e muito menos ungidas contra as fraquezas humanas. Se não forem os princípios que sustentam as instituições, onde está afinal o verbo em forma de “palavra de honra”, a definir os comportamentos ajuizados dos que os queiram integrar, se não forem os princípios a enformar o critério, nada poderá funcionar com credibilidade. E como sabemos tudo isto tem de ser constantemente monitorizado, no que se chama também escrutínio.
Já tivemos o caso Tancos a expor escandalosamente o funcionamento claudicante da instituição militar; agora este escândalo na instituição que aplica a justiça aos cidadãos. Estamos, de facto, na altura de exigir respostas e sobretudo mudanças, porque nada pode continuar na mesma. Sob pena de falsos profetas ganharem adeptos em quem usa apenas os dois dedos de testa que tem para achar que problemas complexos têm respostas simples, normalmente rematadas com pontos de exclamação. E isso seria o pior que nos podia acontecer.
Temos mesmo de aproveitar o facto de o microfone estar apontado para esse tipo de discurso - o populista que chega de todas as direcções - e combatê-lo com a retórica certa. E essa é a que reside indubitavelmente no acto que a palavra designa. Sem os rodriguinhos que as estreitezas - partidárias e corporativas - ainda promovem.

3.3.20

Global para o bem e para o mal


A História ensina-nos que as epidemias são uma realidade. A Ciência ensina-nos que os avanços que se fazem no combate às epidemias são benefícios para a Humanidade. A Arte, na qual incluo o lado da ficção também da Literatura, proporciona-nos um ambiente laboratorial onde ensaiamos em cenários apocalípticos, apenas imaginados, reacções que nos podem fazer pensar no que faríamos se fosse verdade. E a Política existe, também, para que a História, a Ciência e a Arte revertam a favor de todos. Falo da Política em Democracia, não de quem, disfarçado de Político, usa a Democracia para fazer precisamente o contrário, como foi e é o caso das figuras que transformam a Democracia numa palhaçada ou, pior ainda, em regimes ditatoriais.
Para já é “só” mais um vírus da gripe que vem demonstrar como todos estão a lidar mal com a globalização quando a doença ameaça chegar, e sofrimento e morte espreitam logo ali. Imagine-se que era algo como o Ébola! Seria um autêntico filme de terror, porque poucos ou nenhuns infectados sobreviveriam. E estaríamos, como se calhar até estamos, todos impreparados para vencer essa guerra. Só se se suspendessem todos os meios que nos permitem estarmos fisicamente próximos uns dos outros. E que todos os nossos luxos, ou só mesmo confortos, mas sobretudo as necessidades básicas que dependessem dessa proximidade, fossem suspensos. Para não falar já das questões económico-financeiras que não nos matariam rapidamente, mas nos obrigariam a uma mudança enorme de comportamentos e modos de vida.
Se nos parece bom, a mim parece, o mundo ter encolhido e ter-se tornado numa aldeia global, o que permite todos termos melhor acesso ao que produzem a História, a Ciência e a Arte, a aldeia global para lá da janela que é o ecrã da TV e do computador, há que estar preparado para que, volta e meia, seja preciso regressarmos à aldeia do passado. Será como regressar “à terra” ou passar as férias com os avós. E talvez percebamos, en passant, quando o pânico se instalar, o que é não ter para onde ir porque nos fecham a porta. Sim, estou a falar dos refugiados.
A História, a Ciência e a Arte continuarão a ser preciosos domínios para ajudar a Política. Que os seus actores, os Políticos no governo ou na oposição, os escutem, os incluam nas suas equipas e exerçam, assim, a sua função de organizar a sociedade de forma a evitarem-se estes pânicos. E se até muitos poderão já estar a fazê-lo, aos ecrãs da TV e do computador ainda falta muito para perceberem e agirem nesse caminho benevolente anti-pânico. Nos “media”, como no “meio” do provérbio, é que continua a ter de se tratar da virtude social. E há muito para tratar.