30.12.14

Copyleft

E eis-nos de novo chegados a mais um fim, desta feita o do ano de 2014. Tempo de podermos fazer um balancete, para usar o “economês” da moda e do modo como tudo quanto administra bens parece merecer mais confiança por parte dos cidadãos. A pontos de que quase se exija a quem esteja à frente de um governo, local ou nacional, que tenha de ser economista ou gestor, independentemente do bom senso que aplique nas suas decisões políticas. Albarde-se o verbo à vontade da verba, podia ser a máxima dinâmica de quem não queira perder o “comboio do progresso” da governação política.
Mas o conceito que me traz hoje ao final de 2014, no costumeiro estrangeirismo, terá a ver com a quadra festiva com que se assinala um aniversário celestial e um fim de ano terreal. 365 dias são muitos dias para lembrar e a memória, para o bem e para o mal, tem a sua seleção especial que os edita de jeito personalizado, à vontade do freguês. É que na quadra festiva em apreço, entre os estados de alma, coração e a carteira – a de cada um e a do erário público – as manifestações exteriores de celebração são quase sempre assunto de conversa. À volta de luzinhas, bolinhas, enfeites e vozes angelicais em altifalantes, discutem-se os gostos como se discutem clubes ou fé, dificilmente chegando o debate a conclusão que sirva a quem tem de decidir-se por esta ou aquela solução, mais ou menos criativa, mais ou menos em modo de moda. Certo é que tudo está condicionado aos constrangimentos que envolvem “pão” e “palhaços”, para lançar mão à linguagem do maior espetáculo do mundo, pelo menos em cada Natal. Falo do circo, bem entendido, não, ainda, de videomapping que é o que se chama às projeções de imagens nos monumentos. Pão e circo podem ter de existir em alternância e sem pão não há palhaços, nem circo. Tudo linguagem afetuosa para o dinheiro, esse grande motor da sociedade em que vivemos, e os seus modos de uso nos quotidianos de lazer e fruições estéticas.
Em Évora já houve fausto nos enfeites natalícios, pois já. E nem eram com intenções eleitoralistas, não senhor, pois recordo-me muito bem do Natal de 2009, três meses depois de eleições autárquicas, e o último em que os eborenses arregalaram os olhos para as iluminações e patinaram no gelo na Praça como nas grandes capitais, esquecendo até a restante programação que, essa sim, se mantém há anos, com um esforço dos que ainda se associam, mesmo à mingua de pão e mais ou menos contrariados, mas que, enfim, em época de paz na terra lá exercem, sabe-se lá com que esforço, a sua genuína boa vontade. Mas vamos ao estrangeirismo final de 2014.

O conceito de copyleft, usado sobretudo na informática, pode traduzir-se por “permitida a cópia” e é resultado de um trocadilho da outra palavra mais conhecida e oposta, o copyright, que se refere aos direitos de autor. O copyleft defende a ideia de que uma obra não deve ter direitos exclusivos e pode, inclusive, receber o contributo de várias pessoas, que passariam a ser coautores, aperfeiçoando a criação original. Ora eu tenho para mim, que também tive responsabilidades no assunto do Natal nas ruas de Évora, que ficaram de herança duas ideias ao completo abrigo, porque também já eram ideia velha de outros lugares, do copyleft: uma, tomada por medidas de contenção, foi a grande árvore de Natal reutilizável, e reutilizada, feita integralmente pelos serviços municipais; outra, que apenas deu um arzinho da sua graça por estes dias (talvez para a foto!), e que tanta falta fazia neste ano particularmente gelado, e na minha modesta opinião está bom de ver, que era o madeiro a arder. À volta dele tínhamos sempre o “Beato Salú”, o “Rambo”, o “Quito Cigano”, figuras conhecidas de todos e que com a sua estranha forma de vida nos confrontam diariamente com as nossas derrotas num nunca acabado esforço de integração e coesão social, uma luta interminável da civilização. E a eles se juntavam todos quantos quisessem, partilhando um calor que para muitos seria mais do que simbólico. Aquela grande fogueira, tradição mais rural é certo, e que tem origem nos cultos pagãos de celebração do solstício de Inverno, lembraria a muitos habitantes da cidade a infância distante e permitiria que os mais novos percebessem a partilha como o mais importante motivo da quadra natalícia. Tudo copyleft! Um bom 2015 e até para a semana.

23.12.14

Wishful thinking

É a semana do Natal, quadra em que mais do que no resto do ano se fala de desejos. Não os sensoriais e sensuais, nada disso, que é quadra de história celeste e requer recato e pudor. É época de votos, que não são os de um sistema democrático, mas os de desejar aos outros o que desejamos para nós. Afinal, isso é que é a solidariedade, irmã da fraternidade e da reciprocidade, que se materializam em troca de coisas, reais, materiais ou incorpóreas.
Sobre isto dos desejos lembrei-me da expressão idiomática inglesa wishful thinking que, por ser de difícil tradução exata em português também usamos. Significa tomar os desejos por realidades e, onde normalmente se utiliza é quando nos referimos a decisões que se tomam seguindo raciocínios que se baseiam não em factos mas, precisamente, em desejos. É uma espécie de otimismo exagerado o que, enfim, pode acontecer ao mais incrédulo mas que, aterrando na realidade de outra forma causa alguns desgostos ou, pelo menos, algumas desilusões.
Isto dos desejos exacerbados dá muito nas crianças e nos seus sonhos que alguns insistem em que, um dia, se cumprirão, prolongando na infância um modo de sonhar muitas vezes saudável. O que é bom se, obviamente, ao crescerem não se tornarem vítimas do tal wishful thinking e, logo, de uma ilusão que nunca se concretize. Mas, ainda assim, era bom que estes sonhos se perpetuassem por todo o lado e por todas as crianças que aí vêm…
Vem isto a propósito de um panfleto, dito informativo e em formato de boletim, que amavelmente colocaram na minha caixa do correio. Lá se fazia um balanço do que se passou cá na freguesia durante este ano que finda. Foi então que confirmei, naquela prendinha que me ofereciam,  uma das grandes desilusões do meu ideário político. Ao percorrer cada linha e cada pixel do dito folheto, confirmei que durante quatro anos, em que tudo fiz para me certificar de que a gestão do que eram dinheiros públicos revertesse precisamente para o bem público, andei a acreditar, embora já sempre muito desconfiada, que estavam verdadeiramente preocupados, uns certos senhores, com a despesa que a autarquia pudesse fazer em informação e aconselhavam a que se emagrecesse essa rubrica orçamental. Cedência feita para se manterem outras que, enfim, nunca eram alvo de sugestão, o que até se pode considerar normal já que quem governa é que deve saber fazer as escolhas, mas adiante.
Afinal, mesmo com o esforço em priorizar investimento financeiro noutras áreas, como por exemplo suportar o preço de cada metro cúbico da água que serve os habitantes de Évora, ou comparticipar medicamentos para os mais idosos que provassem necessitar dessa comparticipação, o que felizmente até se vai mantendo com a nova governação, afinal, dizia eu, parece que vão sobrando uns dinheiros para a tal informação que surge agora já como uma prioridade.

São assim os mestres da propaganda: fazem-nos desejar o melhor dos mundos num mundo em que se esforçam por demonstrar que está tudo mal, para que quando são eles a decidir e a tomar conta dele valha também tudo o que até aí não prestava, pintado de outras cores. Criam em nós essa lógica de raciocínio que nos faz desejar estarmos a fazer o melhor possível, que é o que manda a boa política, para depois afinal nos apercebermos que são truques aplicáveis aos outros e inválidos para eles próprios. O que vale é que o que não nos mata, nos deixa mais fortes ou, como traduz o povo português: o que não mata engorda. Aviso aplicável à quadra que, à mesa, costuma para alguns proporcionar excessos. Um Bom Natal a todas e a todos!      

16.12.14

Quid pro quo

Portugal está, de alto a baixo, definitivamente com problemas de protagonismo que se revelam, escancaradamente, em frente às câmaras. De alto a baixo não em termos geográficos, mas em termos sociais, pese embora esta hierarquização seja, na minha gramática pessoal, instrumental, já que acima do ser humano não há socialmente mais ninguém. (Por vezes, é certo, a hierarquização serve também de desculpabilização e não, como devia ser, para discricionar responsabilidades que, cada um nas suas funções deve assumir.) Mas digo de alto a baixo para reconhecer que este problema atinge massas – como as que em vez de irem ver o Templo ou os Cromeleques preferem a selfie à porta da prisão – e elites - como as audições que decorreram na Assembleia da República a que assistimos na semana passada a propósito do caso BES.
Acendam-se as luzes das câmaras e grite-se “ação!” ou “a gravar!” para que se esqueça muitas vezes o decoro. E importa-me mais do que qualquer outro, com muitas cedências e apesar de tudo para não me sentir desajustada da época em que vivo, o decoro que há que ter no respeito pelas instituições, das quais a justiça e o sistema político democrático são aqui denominador comum, já que falamos de fraudes e de direito à defesa e presunção de inocência até à sentença final.
Quid pro quo é a expressão latina que escolhi, "quiprocó" a forma aportuguesada do termo. O bom e velho latim a servir para chamar as coisas pelos nomes mas suficientemente elitista para, precisa e conscientemente, espelhar a minha imensa preocupação em que os cidadãos o sejam na plenitude dos seus direitos para exercerem conscientemente os seus deveres. É que há pedagogos do espaço público, os “fazedores de opinião”, traduzindo a expressão originalmente anglófona, e deveriam ser cada vez mais aqueles que se empenhem em mediar o que se passa no espaço mediático e que é espetáculo mesmo com a seriedade dos assuntos em causa, e o cidadão comum. Quid pro quo pode significar e traduzir-se de forma mais ou menos coloquial por "isso por aquilo" ou "uma coisa por outra". Em português e noutras línguas latinas designa, sobretudo, uma confusão ou engano, mas o seu significado nos países anglo-saxónicos evoluiu num sentido diferente, que se espalhou neste mundo globalizado, e é uma expressão usada agora como significando uma troca de bens ou serviços, muitas vezes usada como designando uma troca de "favores". "Quid pro quo. I tell you things, you tell me things. Not about this case, though. About yourself. Quid pro quo. Yes or no? "dizia o arguto assassino Hannibal Lecter à frágil detetive Clarisse em O Silêncio dos Inocentes
Ora bem, na audição de longa-metragem a que assistimos na semana passada entre representantes democraticamente eleitos por nós cidadãos votantes e um indivíduo pertencente a uma elevada elite portuguesa, e que é tão “constituído arguido” como outros que “já lá estão” (eufemismo aqui de cárcere e não de outro-mundo) a propósito de uma matéria complicada de entender, sobretudo para quem está longe do mundo dos negócios do dinheiro, houve algo parecido com uma situação de quid pro quo. Isto porque, no meu entender, foi dada por alguém – os que devem zelar pela transparência do exercício dos poderes políticos, e não sei com que interesse, a outro alguém - que tem um processo por esclarecer na justiça, a oportunidade que, por não estar sob juramento, pôde aproveitar com uma argúcia evidente para se defender usando todos os meios ao seu alcance, dos quais não sabemos se a mentira não será um deles.
Eu sei que a situação deste tipo de inquérito parlamentar está legalmente prevista. Também me parece que o caso é politicamente relevante, pois em causa está o dinheiro de cidadãos portugueses e até relações entre países com acordos entre si. Mas esta mediatização com intervenientes em direto está a permitir que, quem só oiça estes intervenientes, faça um julgamento quase legitimado antes do julgamento nos tribunais. Como aliás se poderá dizer das próprias tentativas mais discretas de intervenção feitas por outros, a quem não é dada voz, com cartas dirigidas a órgãos de comunicação social. Mas convenhamos que não é bem a mesma coisa e que o pessoal dos negócios, mesmo que a pedido de políticos, parece estar a merecer muito mais do que o pessoal da política.

9.12.14

Comics e western spaghetti, por favor

O que nas últimas semanas tem passado na TV com Évora como cenário me parece tão triste de ridículo que, melhor do que chorar – era o que mais faltava! – me deixa um desejo de que tudo isto não passe de um episódio de má ficção. Uma reedição de refugo à imagem de um mau western spaghetti ou umas quantas “tiras” de uma qualquer história aos quadradinhos que, ao jeito dos brilhantes e atualíssimos portugueses Dog Mendonça e Pizzaboy, misturam a atualidade política com uma história de cenas do outro mundo, num efeito muito cómico. E foi tudo isto a coincidir com o último fim-de-semana, o da primeira convenção de comics por cá, a ComicCon Portugal, que me trouxe até à crónica de hoje.
Comics é uma expressão que designa as bandas desenhadas produzidas nos Estados Unidos. Convencionou-se chamar comics porque as primeiras manifestações do formato eram histórias cómicas, precisamente. Em Portugal, primeiro conheceram-se por histórias aos quadradinhos e, posteriormente, como banda desenhada ou simplesmente BD, uma tradução literal do francês. Já os western spaghetti são os filmes sobre o velho Oeste fora-da-lei, de baixo orçamento, realizados não na América, que retratam, mas na Europa. É a cultura popular de massas cujos apreciadores e consumidores proliferam sobretudo nos meios urbanos.
Bom, mas posta esta informação sumária, o que me interessava mesmo era, por instantes, fugir deste ambiente que nos entra dos noticiários pela casa adentro e passar para um mundo onde, aí sim, tudo bate certo. Onde a propósito do universo dos super-heróis que muitos visitámos um dia, alguns primeiro através da BD, outros pela sua evolução na cultura pop, transformado em jogos, séries de TV, filmes e até indumentárias saídas de um guarda-roupa muito próprio e reconhecido por peritos desse universo. É que nesse mundo joga-se, enquanto ele dura e de acordo com o convencionado, uma espécie de concretização de um sonho de infância: «I just want to be a superhero!». Um mundo possível, ordenado, coerente. Ao contrário do que se passa por aqui em Évora, e que passa nos ecrãs, em frente a câmaras, profissionais, amadoras, improvisadas, pespegadas elas, por sua vez, em frente a um estabelecimento prisional. 
Por mais que tente perceber o clima montado, quando me cruzo com estas cenas, só me apetece mesmo repetir, como uma ladainha, um excerto de um diálogo entre Tuco, o vilão, e Blondie, o bom, personagens de um famoso western spaghetti de Sergio Leone, O Bom, o Mau e o Vilão. Tuco tenta ler um bilhete com a dificuldade de um analfabeto «Até breve, id… id… id…» e Blondie, tirando-lho das mãos, termina, «”Idiotas”. Toma, é para ti.»

De facto, ninguém com dois dedos de testa merece ser o destinatário deste show. Dêem-me comics e coboiadas a sério, por favor!

2.12.14

Rankings ou listas

Os rankings parecem-me um instrumento de autoavaliação muito útil. E é sobretudo porque me são, no espírito de letra que também se lhes atribui, tão importantes como no desporto individual de competição o esforço que os atletas, mais do que ganhar a este ou aquele, põem no empenho e trabalho em bater as suas próprias marcas, ou marcas estabelecidas nacional ou internacionalmente. Uma luta consigo próprios no caminho do aperfeiçoamento. E é esse caminho, em princípio e como aludia o poeta, que importa fazermos com passo certo, seguro e dinâmico. Se o objetivo final é uma meta quase utópica que temos sempre diante dos olhos, o “finzinho mesmo” já todos nós sabemos qual é, humana e naturalmente inevitável, pelo que há que aproveitar o caminho até lá. Depois há, claro, a memória, a dos outros que recebem o testemunho e o passam ao estafeta seguinte…
Vem esta conversa a propósito de classificações, de listas, de galardões e de como pode ser ambígua a relação das pessoas que neles se veem envolvidas. Tudo relacionado com o ranking, substantivo masculino inglês, sinónimo de hierarquia, definido nos dicionários como uma lista ordenada segundo determinados parâmetros. São vários os contextos em que utilizamos a palavra ranking, o que facilita esta ambiguidade, e permite a desculpa ou, vá lá, a justificação do “isso não é a mesma coisa!”.
Conforme o contexto entende-se ranking, por exemplo: como uma simples classificação, e aproveito para dar os parabéns ao Cante que foi classificado e entrou numa lista de expressões imateriais que são património da Humanidade; como uma classificação ordenada, como é o caso do ranking das escolas que, como qualquer outro, tem de ser avaliado a partir da análise de todos os parâmetros que as classificam, mas que ainda assim permitem que escolas em condições semelhantes se possam comparar e fazer um esforço, até conjunto, para melhorarem no que lhes é possível, e não tanto desejável, como todos quereríamos, para se chegar ao “topo do ranking” mesmo sabendo que na competição entram concorrentes de escalões, pesos, idades diferentes na hora do tiro de partida; entende-se o ranking também como uma listagem, de pessoas ou instituições, que se posicionam, de acordo com determinados critérios que estabelecem assim uma classificação de quem se submete, queira ou não queira, a uma avaliação, e aqui aproveito para mostrar a minha satisfação não apenas em que a CMÉvora se tenha mantido como a melhor autarquia alentejana no ranking da transparência, como tenha até subido ao sexto lugar a nível nacional. Pena é que quando a autarquia eborense concorreu a outros rankings, de forma voluntária, transparente, com empenho dos seus quadros técnicos e operacionais, e ou foi aceite e reconhecida, ou ficou já em lugares cimeiros, ou ainda no topo do ranking das que o quiseram e foram convidadas a concorrer, houve quem manifestasse o seu desinteresse ou até mesmo, sem eufemismos, o seu repúdio por tal classificação.
Não me venham é querer meter não sei o quê pelos olhos dentro e contradizer que quando se opta não participar não é por uma opção política, sim política, de não se investir em determinadas áreas. E deixar transparecer que, afinal, é porque se desmerece não apenas quem, com uma seriedade que de forma comprovada não poderemos pôr em causa, estabelece critérios, mas sobretudo subestimando todas as congéneres que assim se submetem aos rankings num esforço de que o seu trabalho interno melhore, sempre. Nunca entendi que um galardão, fosse ele o das autarquias familiarmente responsáveis ou eco XXI fosse um truque de propaganda, e que fosse apenas ganho pelas chefias ou pelos eleitos de uma Câmara Municipal, mas sim por todos quantos no seu dia-a-dia profissional se empenham em contribuir para o bem-estar comum. Isso é dar valor ao trabalho, ao esforço de cada trabalhador num coletivo. Neste caso parece que se aplica o princípio de que cada um julga os outros à medida do que vê em si. 

25.11.14

Lobby

Entende-se, tradicionalmente, por lobby o esforço desenvolvido por uma entidade, não apenas privada mas sempre com interesses particulares dos que a constituem, no sentido de influenciar quem governa ou quem legisla. Um lobby é, por isso, um grupo organizado de pressão para atingir determinados objetivos ou para defender certos interesses.
Os lobbies podem ser desde os das indústrias tabagista e farmacêutica aos sindicalistas, passando pelos dos reformados e dos jornalistas, o das causas de igualdades de género (como o movimento LGBT), ou até dos defensores das baleias, entre tantos e tantos outros que revelam a imensa diversidade humana que, felizmente e quando em liberdade de expressão, constitui a Humanidade. E muitos têm sido os que têm “feito lobby”, que é a expressão verbal que corresponde à sua ação, para obter vantagens ou conseguirem o apoio necessário às suas causas, com maior ou menor sucesso.
À partida e numa sociedade evoluída, sendo este adjetivo aqui sinónimo de uma democracia na plenitude do seu conceito, o lobby deve ser considerado normal e feito “às claras” até para não se confundir com “favorzinhos” ou “jeitinhos”. Mas é-o sobretudo porque revela que os indivíduos que compõem essa sociedade se interessam por causas que podem tornar-se públicas e agem num esforço conjunto de contribuir para um bem comum.
Os grupos organizados, empresas, organismos ou movimentos sociais, têm o direito e até o dever de se empenhar na defesa dos interesses que defendem ou das ideias que professam. Infelizmente, a classe política está fragilizada. A sua conduta sempre sob escrutínio, felizmente. E o jogo de vários governos a diferentes níveis, que se rendem por vezes a grupos para obter vantagens, faz do lobby não assumido, e não às claras como deveria ser, algo pernicioso e logo identificado com o abuso de poder, sobretudo o económico, com a corrupção e tudo o que há de mais deplorável no relacionamento humano em diferentes escalas.
É que o lobby em si não merece este retrato pejorativo com que é distinguido. A sociedade deve estar mobilizada para influenciar o poder público. Afinal de contas, o poder representa-a e foi por ela eleito. A aceitação do lobby enquanto prática está por isso limitada, julgo, ao uso democrático, transparente e ético dos instrumentos utilizados para esta influência. A corrupção, as “gratificaçõezinhas” e outros procedimentos não éticos devem ser vistos sob uma perspetiva legal e devidamente penalizados, e nada têm a ver com lobby ou até com o que muitas vezes “fazer lobby” implica, a comunicação, coisa diferente de propaganda.

18.11.14

Networking

Suponho que é quando tudo se torna mais difícil que nos procuramos uns aos outros. As redes são, por isso, formas de organização que congregam esforços evitando desperdícios, quer de energia humana quer de recursos materiais. As redes podem ser de pessoas, instituições, lugares ou atividades congéneres. Acontecem entre elementos que, com determinadas afinidades, é através de uma estrutura em que se cruzam interesses comuns que criam laços de cooperação. Por vezes com laços mais fortes entre uns do que entre outros, outras vezes com certos laços segurando como vigas e pilares todos os outros mais frágeis. E quando uma rede chega ao fim isso acontece normalmente porque morre pelo menos uma parte de cada um, da maioria ou até da totalidade dos nós que a compõem.
Networking é a palavra em inglês que se aplica à capacidade de estabelecer uma rede de contactos ou uma ligação com alguma instituição ou com alguém. É uma palavra também relacionada, mais uma vez, com o contexto empresarial e indica uma atitude de procura de contactos e parceiros para fazer progredir as pessoas e as instituições ou as empresas. Apesar de poder ser confundida por muitos com o vulgar e rasteirinho carreirismo, a networking não é uma atividade egoísta, em que alguém se quer aproveitar de outrem para o seu próprio bem. Deve existir, como dizia, um sentido de reciprocidade e o benefício deve ser mútuo, já que todos aprendemos sempre alguma coisa uns com os outros.
Muitas vezes também a confusão entre ambição e carreirismo aparece ligada à networking porque quanto melhor for a capacidade de alguém ou alguma instituição criar essas redes e mantê-las, dando de si e sabendo receber dos outros, maior é a sua probabilidade de se ser escolhido, e até indicado, para um cargo quando surge a oportunidade. É assim que algumas cidades, universidades ou associações de vária índole conseguem, por exemplo, liderar redes de, respetivamente, cidades, universidades ou associações que se juntam por terem determinadas características, objetivos ou missões em comum.
Praticar e promover a networking, ou rede de contactos e conhecimentos ou trabalho em comum, também não é usar o expediente da cunha, pouco recomendável em qualquer sociedade justa, porque a competência de quem participa numa determinada rede não está em causa. O que se procura é antes o conhecimento e reconhecimento de características e capacidades que essas instituições ou indivíduos têm e que, quando consultadas, podem avaliar, dar uma referência ou fazer uma indicação.
Afinal, o networking é o que começamos a ensinar às nossas crianças quando cuidamos da sua socialização e lhes mostramos o lado bom do relacionamento quer entre pares, quer com os outros que, estando há mais tempo ou conhecendo melhor este ou aquele assunto ou mundo, lhes possibilitam a escolha de crescer seguindo por caminhos que ou serão afins se houver afinidades, ou serão diferentes se houver incompatibilidades. 

11.11.14

Déjà-vu

Quando crianças absorvemos com muita atenção e curiosidade os relatos de episódios de vida dos mais velhos. Dou por mim a lembrar-me em particular de um relato das muitas viagens que a minha mãe começou a fazer, após os 25, o de abril e o de novembro. Tendo vivido intensamente a Revolução e o PREC, a senhora apressou-se a visitar a União Soviética acompanhada de fervorosos adeptos do regime em vigor aí então. Era uma excursão organizada pela Associação Portugal-URSS que agora se chama Associação Portuguesa de Amizade e Cooperação Iúri Gagárin. Talvez julgasse vir de lá tão maravilhada como Jorge Amado ou, no limite, apenas com um olhar mais crítico como Graciliano Ramos, autores brasileiros comunistas que a propósito de visitas semelhantes escreveram interessantes relatos: Jorge Amado escreveu O mundo da paz, em 1951, mantendo sempre a postura do militante obediente, já Graciliano Ramos viu a publicação das suas críticas serem altamente combatidas pelo aparelho partidário que, ainda assim, não conseguiu impedir a publicação de Memórias do Cárcere em 1953 e Viagem em 1954. Certo é que a senhora minha mãe chegou um bocado “debotada” nas suas convicções mais avermelhadas, não só pelo que efetivamente viu e testemunhou, como pelo convívio com companheiros de viagem que vieram de lá a dizer coisas do género: “as picadas dos mosquitos soviéticos não causam tantas comichões como os daqui” ou “o frio é mais suportável lá do que cá”, e outras que tais, parecendo ter regressado de uma nova Atlântida ou da Ilha da Utopia. Como se tudo o que lá existisse fosse apenas e só o estado final e mais avançado a que Humanidade poderia chegar.
Ora existe um termo, déjà-vu, importado do francês, que traduzido à letra dá em “já visto”, e que se aplica ao conceito que descreve uma experiência que muitas pessoas têm de sentir que já se tinha presenciado anteriormente uma situação que está a decorrer no presente. O déjà-vu é muitas vezes referido na cultura popular. No cinema, por exemplo, a trilogia Matrix mostra o déjà-vu como uma alteração percetível num sistema a meio caminho entre o real e o virtual e Déjà Vu é também o título de um filme protagonizado por Denzel Washington, em que o fenómeno é explicado sob a forma de avisos enviados do passado e de pistas para o futuro. Esta palavra parece até condensar uma outra expressão que ouvimos muito em português: o “eu já vi este filme”.

Pois o que me parece é que esta Évora comunista relatada pelo executivo e seu aparelho - que a maioria dos eborenses, que quiseram votar, democraticamente elegeram - é um episódio de déjà-vu que só pode ter explicação quando revisito as memórias e o relato daquela viagem à União Soviética de 77. O lixo que transborda dos caixotes desta Évora comunista é agora inodoro; o branco dos muros é muito mais branco quando a trincha é comunista; os voluntários têm muito mais vontade porque Évora é comunista; as ervas nos passeios agora comunistas são até bem decorativas; os espetáculos que apoiam a atividade cultural da Câmara comunista são agora todos dignos de transmissões diretas em canal aberto; o Salão Nobre comunista é agora muito mais nobre e o Teatro Garcia de Resende voltou a ser municipal e aberto sem dificuldades nenhumas pelos comunistas; as palmas comunistas são sempre arrancadas do fundo dos corações dos eborenses com muito mais sinceridade e emoção. Isto só para mencionar alguns dos muitos exemplos que poderíamos encontrar. Um arrepiante déjà-vu.

4.11.14

Budget season

Budget é um termo da língua inglesa que significa orçamento e que é frequentemente utilizado no meio empresarial em inglês para referir o orçamento periódico feito por uma empresa, normalmente para um ano, onde são inseridas variáveis de custos, as chamadas receitas e despesas, definindo um plano de contas. Sendo assim, o budget é normalmente o plano base para início da atividade num novo ano e, apesar de ser um documento técnico, acaba por tornar-se um plano estratégico, não só para durante um período determinado, como para um planeamento futuro.
Assim sendo, o orçamento de um governo objetiva na prática o planeamento das ações de quem governa, os seus objetivos, as suas metas e prioridades, respondendo àquelas que são as necessidades e, talvez até expetativas, da comunidade de eleitores, fazendo um equilíbrio entre o que está programado obter como receita e quais as despesas que deverão ser autorizadas. Podemos perguntar-nos, então: não deveriam os cidadãos ser cabalmente esclarecidos de todo este planeamento que se faz com o dinheiro de todos nós? É que basta olhar para os “calhamaços” de folhas de um qualquer orçamento municipal, para falar num nível que conheço, que nos interessa e que ainda assim, não sendo o orçamento de um Estado, tem um volume razoável de documentação, para se perceber como será precisa quase uma licenciatura na área para entender este exercício do poder governativo. E mais ainda quando sabemos que, contas feitas, as receitas e as despesas têm de ser iguais, pois este instrumento técnico prevê um cenário ideal: nem uma autarquia pode ter lucro que não seja aplicado revertendo para o investimento no bem-estar dos seus munícipes, nem pode ter prejuízo sob pena de, ao se endividar, o que legalmente parece ser proibido, ter de cortar em várias áreas. São essas áreas onde se investe quando há dinheiro e onde se corta quando não há que dão margem de manobra à ação política.
Um orçamento público municipal é um instrumento que pode e deve ser um elo entre quem tem o poder executivo e os munícipes, e não apenas entre o executivo e os que trabalham diretamente para esse executivo e que não têm só por isso o poder de representar as escolhas desses munícipes, já que estes elegeram o executivo mas não estão presentes no quotidiano do trabalho numa Câmara ou na própria organização dos seus serviços. Isto não significa desconsiderar esses serviços, antes pelo contrário, já que ao envolvê-los privilegiadamente no processo poderá significar torná-los quase cúmplices de um qualquer possível incumprimento do previsto num orçamento. Haverá seguramente, numa gestão, momentos mais virados para as questões internas que, aí sim, é importante de facto envolver os diretamente interessados.
É que importa, acima de tudo, tornar bem claro que uma Câmara Municipal, mesmo quando respeita, como inquestionavelmente acontece num estado de direito, os seus próprios funcionários, não trabalha para si própria mas para todos os munícipes. E que é sobretudo importante fazer sentir aos munícipes que o que é investido na própria máquina da Câmara deve reverter, e em muitos casos reverte, a favor de todos os outros munícipes.
Um orçamento é a oportunidade de ser um instrumento de transparência, de intervenção e de articulação, tornando-se transparente, eficiente e eficaz muito pelo facto de expressar ações de governo que traduzem as necessidades da sociedade em forma de ações efetivas e que respondam aos principais problemas da comunidade. E é por isso que, a nível local, e no fim de avaliadas que estão várias experiências quer a nível nacional, quer noutras democracias internacionais, já vai sendo tempo de envolvermos de facto as pessoas na política a partir da construção do orçamento. Estão já bem estudados e disponibilizados a quem se interessar os possíveis modelos a adotar em função de cada realidade. Falta só vontade política para o fazer. 

28.10.14

Hashtag

Hashtag é uma expressão bastante comum entre os que usam as redes sociais, na Internet. Consiste no uso de uma palavra-chave antecedida pelo símbolo do cardinal, aquele que parece a grelha de jogarmos ao velhinho jogo-do-galo. Tags são as palavras-chave, ou seja as mais relevantes, ou as que associamos a uma informação, tópico ou discussão que se deseja realçar de forma explícita. Os hashtags são utilizados para categorizar os conteúdos publicados nas redes sociais, ou seja, criam uma interação dinâmica do conteúdo com os que interagem na rede social, alertando-os para o que poderá interessá-los no respetivo assunto publicado. Surgiram e tornaram-se populares no Twitter, que categorizava os assuntos mais populares do momento criando-se uma espécie de top a que se chamou trending topics.
Os utentes desta rede utilizam os hashtags para justamente classificar o que publicam, e que deve ter menos de 140 caracteres, em assuntos específicos. É uma espécie de "arquivo" ou "pasta" para organizar os conteúdos no que é o imenso mundo da comunicação pela Internet e são já, não apenas uma ferramenta para organizar os conteúdos publicados, como se transformaram em "armas publicitárias" entre as empresas e instituições que utilizam as redes sociais como meio de comunicação e marketing. Devido ao seu uso difundido, o conceito foi adicionado ao dicionário da língua inglesa Oxford, só em junho deste ano e também passou a designar o próprio símbolo do cardinal, quando utilizado desta maneira.
Trazer o hashtag a esta crónica veio a propósito da etiquetagem que é comum fazer-se das pessoas e que tem, depois, reações no sentido contrário igualmente extremistas. Eu explico. Costumamos enfiar as pessoas em sacos e etiquetá-los assim: os funcionários públicos, os desempregados, os banqueiros, os políticos, os jovens, os idosos, os médicos, os gordos, os baixos, os de direita e os de esquerda, etc., etc. quando nos dá jeito. Sobretudo, para dizer mal dos próprios ou contestar alguma coisa em seu favor. Já no extremo oposto, surge muitas vezes a expressão “cada caso é um caso” que, a bem dizer também me causa algum desconforto, já que percebendo muito bem o que se entende por dar a cada caso uma atenção especial, o que não é a mesma coisa, se cada caso fosse realmente um caso não havia, por exemplo, ciência. E também, por isso, nas ciências humanas e sociais, convencionalmente menos exatas, as generalizações devem acontecer na sequência de estudos suficientemente abrangentes, com amostras bastante alargadas, para que as exceções à regra sejam isso mesmo e se entenda que quando se age em função de um grupo, há particularidades que podem ficar para outro plano. Aliás, se como também é comum dizerem os que sentem alguma afinidade entre si, apesar das diferenças, que “é muito mais o que nos une do que o que nos separa”, então é porque reconhecemos que as fronteiras são lugares fluidos e que, por vezes, há que dizer de forma clara e esclarecedora, o que nos distingue e o que nos aproxima. Ou por outra, às vezes não é preciso dizer nada, pois ao fim de algum tempo de contacto e convivência tudo fica esclarecido. Preciso é dar tempo ao tempo, coisa que parece mais do poema de um fado do que da vida de nós todos comuns mortais. É deixá-los andar. 

21.10.14

Auctoritas

Hoje apeteceu-me o latim. Eu sei, eu sei que isto é coisa lida e escrita por uma infinitesimal  parcela da população mundial, nas universidades e nos seminários, de que ainda ouvimos por vezes ecos nas barras dos tribunais. Mas isto também não quer dizer que a cronista, uma quase leiga nesta matéria, possa pensar que as e os ouvintes ou leitores da Diana FM se assustem com este ressuscitar do latim. (Se chegaram até aqui…) Uma língua de que os latinistas não aceitam, lá com as fortes razões que lhes assistem, a morte. E descambar assim a pena, que é como quem diz a tecla, para o latim não deixa de ser uma homenagem a estes estudiosos de uma língua tão imperial. A palavra escolhida, e o conceito que se lhe aplica, foi auctoritas.
Este termo não é traduzível e a portuguesa "autoridade" é apenas uma parte do significado da palavra latina. Da auctoritas também se trata, por exemplo, na literatura para se falar de textos muito antigos em que procurar-lhes a autoria não é questão de encontrar o indivíduo que teria feito o texto, mas os modelos que imitava, digamos assim, e que assumiam desta forma, enquanto auctoritas, a paternidade textual, sendo por isso aceites como seguindo uma regra validada.
A palavra auctoritas deriva, aliás, de auctor, que não o que é construtor mas antes o que inspirou a obra. Na base está um verbo que significa aumentar, desenvolver, fazer crescer, tornar mais forte alguém ou alguma coisa, pelo que a auctoritas, no seu sentido etimológico, tem a ver com exemplaridade, modelo, prestígio ou conselho. Auctor é assim o que promove com o seu exemplo e conselho o bem de uma coisa. Tão diferente da sua banalização traduzida em autoridade e que se mistura obviamente com poder. E que, além do mais, é treslida quer por tantos que a exercem abusivamente, quer por outros tantos que a julgam preconceituosamente quando bem exercida!
E é, por isso, que uma semana passada sobre o aniversário de Hannah Arendt, uma filósofa política que muito fez avançar sobre os conceitos de totalitarismo, relembro hoje definições de autoridade que aparecem em qualquer enciclopédia e que recolocam o termo no seu lugar, para que a ação corresponda à palavra: a autoridade é uma capacidade de influenciar os outros graças a uma certa superioridade por estes reconhecida;  é o direito de dar uma ordem, de tal maneira que o comando seja obedecido sem que seja questionado tal direito; é o poder que é aceite, respeitado, reconhecido e legitimado.

No direito romano, e para regressar ao latim, é definida por auctoritas uma certa legitimação socialmente reconhecida, que procede de um saber e que se outorga a alguns cidadãos. Exerce a auctoritas uma personalidade, ou instituição, que tem capacidade moral para emitir uma opinião qualificada sobre uma decisão. E se bem que tal decisão não seja vinculativa legalmente, nem possa ser imposta, tem um valor de índole moral muito forte. Parece mais difícil do que apenas dizer «quem manda aqui sou eu!».

14.10.14

Task-forces

Task-force é uma palavra que teve origem na Marinha dos Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial e era o que se chamava a uma unidade militar temporária, criada especificamente para fazer uma missão especial e urgente. O termo também está muito ligado à procura por vários tipos de organizações de metas ou objetivos para um fim específico, onde é necessário que todos os envolvidos se unam e façam um esforço máximo para alcançar o que desejam ou o que precisam.
Atrever-me-ia a dizer que qualquer tarefa de equipa a que as pessoas se proponham ou sejam obrigadas a fazer, seja ela por força da lei ou por reação a uma situação que se considere caótica, deverá à partida ser presidida por este espírito da task-force. Cada “soldado”, na sua especialidade e disciplina, arregaçar as mangas, meter as mãos na massa que cada um conhece e trabalhá-la em conjunto até ao produto final. É este um espírito completamente oposto ao outro espírito que corresponde à manutenção de uma situação que apenas necessita de um acompanhamento, de uma correção aqui e ali, de um ajustamento por força de circunstâncias que se alterem e não por defeito do andamento que se tem dado ao que está em causa.
Quando alguém decide criar uma task-force é porque, de facto, reconhece que pode modificar o que encontrou. Para melhor, espera-se. Ou esperam aqueles que deram crédito a essa task-force pondo nessas mãos uma vontade sua. É assim que devem pensar aqueles que escolhem uma equipa para liderar, seja uma instituição, uma associação, um partido, uma autarquia ou um governo. Dar a ideia que se cria uma task-force, dando mesmo de barato que esta tenha o nome de gabinete ou comissão, e depois não fazer rigorosamente nenhuma mudança, para melhor volto a repetir, e que seja alguma coisa a que se possa chamar uma mudança, é uma fraude.

O que acontece amiúde é que há certas task-forces que aparecem assim, com esta aura a que só apetece incentivar com um «Go, go, go!» e que, depois, de mudarem tudo, fica tudo na mesma. Aí se revela das duas, uma: ou uma vontade expressa que assim seja, e a consequente indução em erro dos que acreditaram nessa mudança, ou a avaliação errada que fizeram da situação que queriam mudar, o que é uma pena, mas enfim, vale pelo menos pelo esforço.

7.10.14

O suspense, esse inquietante catalisador de interesse

O suspense é um artifício engraçado. Normalmente associamo-lo ao cinema, mas de uma maneira geral acontece com a ficção e depende de um enredo, pelo que também o há nos livros. É uma palavra de origem inglesa que, curiosamente, ouvimos muitos mais portugueses a pronunciar “à francesa”, o que me acontece a mim também. É uma situação que, no momento em que está prestes a desaparecer, acompanhamos com uma espécie de banda sonora - “tcham, tcham, tcham, tcham!” – que nos filmes tem também uma música muito própria e que, se desligarmos o som, lhe aligeira bastante o impacto.
É vulgar que o suspense sirva para fazer demorar um desfecho imprevisível. E é por isso que muitas vezes ouvimos dizer, fora das páginas ou dos ecrãs, que se fez suspense sobre um determinado assunto com o significado de criar uma expetativa interessada. O suspense é assim uma espécie de técnica propagandística em que a omissão de detalhes e o atraso do desfecho vão inchando de importância o facto sobre o qual se faz, ou mais frequentemente, sobre quem o cria. E o que é engraçado é que nem sempre é o próprio a dar a cara pelo suspense criado sobre si, havendo por vezes uma espécie de “guarda avançada” que se encarrega de o fazer. Tudo boas encenações, claro! Fico até convencida que há por aí muitos comentadores que têm esse posto fixo na tal guarda avançada… Ah! e há também aquela outra prática que não sendo suspense é da mesma família deste tipo de comportamento, e que é o “fazer caixinha”.
Por outro lado, o suspense que circula por aí dá azo ao “diz que disse”, diferente do boato que é uma mentira e não uma dúvida que circula, mas que fazem uma dupla que serve bem a desinformação e, como tal, alguns interesses. Também me parece que as diferentes reações de quem é visado e se mantém com as atenções voltadas para si por suspenses e boatos dizem bem sobre si próprios. Boatos ou não-ditos catalisadores de interesses sobre assuntos que são meramente pessoais, do domínio da privacidade de quem exerce cargos ou tem visibilidade pública, pouco merecem como resposta, em meu entender, senão o silêncio. Já quando as incertezas se criam e circulam sobre aspetos do exercício dessas funções públicas, e se se mantêm em circulação sem explicações pelos visados, então é porque o assunto não é claro, nem se pretende criar no espaço público uma relação de confiança na transparência das atitudes e das posições assumidas.
Enfim, tudo situações que acontecem um pouco por todo o lado e em todo o Mundo, nacional ou localmente, e que contribuem para uma desconfiança generalizada e, algumas vezes, injusta, nos políticos e nos que dirigem, por delegação do voto democrático, os destinos de governação. Era preciso que este hábito ou tendência se fosse erradicando em novas gerações… isto penso eu, em voz alta.  


30.9.14

Outsiders inside

Há momentos e situações nas nossas vidas em que nos sentimos outsiders. E há aqueles que fazem disso o seu modo de se dizerem que estão no mundo e como vivem em sociedade. É-se outsider ou porque nos fazem, ou porque procuramos sentir isso mesmo. O outsider pode ser um marginalizado, e aqui com uma carga negativa que a palavra traduz, mas se assim é, é-o sempre da perspetiva dos que estão dentro do grupo a que não o deixam pertencer. O outsider pode também ser um desalinhado, desta feita mais definido pelo lado do próprio, até com uma espécie de orgulho em ser diferente, de querer remar contra a maré, e não achar piada a multidões, mais ou menos viradas para o mesmo lado.
Os dois extremos parecem-me muito desagradáveis, ora porque é claramente discriminatório, ora porque é impeditivo de passarmos o tempo que nos cabe nesta vida ao lado de muitas mais coisas do que as que certas inevitabilidades nos obrigam a passar. Não precisamos de ser marginalizados nem de gritarmos o nosso desalinhamento para querermos estar de fora de certas situações. Por outro lado, reconhecer que se está in ou out de algum grupo é reconhecer-lhe os limites e saber cumpri-los. E é por isso que nas áreas das ciências humanas e sociais é, por exemplo, tão difícil estudar algumas religiões e sociedades ou associações de pessoas, algumas tão fechadas que se dizem secretas. Por outro lado, é inegável que só os membros de certos grupos possuem, nesse território e assunto, acesso privilegiado ao conhecimento, aos recursos e à própria autoridade. E que os que estão outside, isto é, os de fora, pelo mesmo motivo, têm menos ou nenhum acesso.
Neste domingo que passou, em Portugal, muitos tiveram a oportunidade de exercer um direito que não é dado por todas as associações de pessoas em torno de ideologias e princípios, e que são neste caso os partidos. Muitos que não querem, porque não estão interessados em ter esse acesso privilegiado ao que se passa dentro de um partido, tendo por isso sobre ele, em princípio e quando se levam as coisas a sério, conhecimento, recursos e, de certa forma dependendo de circunstâncias várias, autoridade estatutária (já que a moral não depende deste tipo de limites), muitos puderam fazer-se ouvir dentro desse partido, aquele com o qual se identificam politicamente, dando-lhe o voto e até mesmo a cara por ele.
O Partido Socialista fez História no dia 28 de setembro de 2014 no Portugal democrático. E porque é nos princípios deste Partido que me revejo, fiquei contente com o facto. Senti-me uma outsider inside que, tendo uma opinião pessoal, não a quis assumir publicamente, porque quando se votam pessoas e não programas ou propostas, aprendi ao longo da vida, o voto não é de braço no ar. Lamentavelmente, percebemos com esta primeira experiência o quanto o debate resvalou para questões de caráter, avaliáveis em medidas e conhecimento dos envolvidos de forma muito mais difícil, para não dizer impossível. E até porque, independentemente do resultado, o que me interessava era que, finda a contenda interna que fica, espero, já no passado, não se desvirtue no futuro este espírito inovadoramente democrático que caracteriza o Partido pelo qual, aliás, já por duas vezes fui eleita pelos cidadãos eborenses.  
Como fiquei contente quando alguém de dentro de um órgão do Partido, que eu não sei, nem precisava de saber, de que lado das duas propostas que me faziam no boletim de voto estava, me pediu para colaborar se necessário no processo desse ato histórico, no próprio dia. Os teóricos da abertura dos Partidos à sociedade, que afinal servem, tiveram a sua primeira aula prática.   

23.9.14

Spoilers q.b.

Queria hoje falar-vos da mina da Boa Fé. O assunto anda quente aqui do lado leste da fronteira com o vizinho concelho, a quem a prospeção e exploração de um ouro de que há muito se fala, e a concretizar-se, também afetará. Desse concelho vizinho veio o presidente que do lado de lá terá proposto a votação favorável do interesse municipal dessa exploração. Digo “terá” porque, de facto, nunca vi nem li tal parecer, já que o filtro para a opacidade do que se passa nas reuniões públicas do concelho de Montemor-o-Novo é bem eficaz na impossibilidade, ou pelo menos enorme dificuldade, para o público em geral de consultar as atas deste órgão democraticamente eleito. E por estes dias previsivelmente se fará, neste concelho de Évora onde foi eleita a equipa que o “ex.” de lá e atual de cá dirige com maioria absoluta, uma proposta com o mesmo assunto que, à data em que componho esta crónica, ainda desconhecemos.
E vou usar o estrangeirismo spoiler para tratar o assunto. A palavra spoiler tem origem no verbo to spoil, que significa “estragar” em inglês. E não, não vou discorrer sobre os estragos que uma mega intervenção daquele calibre, a realizar-se, vai causar. Isso já muitos têm feito, bem feito, apesar de não pertencerem, ao que conste, àquela espécie de partido registado como “os Verdes” que se junta ao Partido Comunista, sabe-se lá porquê (eu até tenho uma ideia sobre isto, mas agora não tenho tempo para a expor, talvez noutro dia), para formar a coligação em que a maioria dos eborenses que votaram nas últimas autárquicas se reveem.
O spoiler de que vos falo é aquele que  revela a outros informações sobre o conteúdo de algum livro ou filme, antes que esses o tenham visto ou lido e ainda o queiram fazer. O spoiler é uma espécie de desmancha-prazeres, o indivíduo ou fonte de informação que conta o final da história e estraga a surpresa aos outros. Alguns artigos e programas de divulgação ou informação até destacam um "spoiler alert", uma espécie de aviso usado quando algum conteúdo sobre um filme, série ou livro pode revelar elementos importantes sobre o seu enredo.
Ora, os mais atentos saberão bem que este filme da exploração de ouro tem episódios e desenlaces muito conhecidos, nenhum deles capaz de reviravoltas felizes e surpreendentes como tentam, os seus realizadores, ao dourar-lhe o final: centenas de empregos por cinco anos e uma estupenda paisagem reordenada por cima das crateras deixadas, de fazer inveja a qualquer lugar natural classificado pela Unesco. Acreditem que neste caso não é preciso ver para crer, basta procurar q.b. os spoilers e vão ver que lhes agradecem todos os pormenores revelados, concordando que “se tire a Boa-fé deste filme”.
O que também me quer parecer, pelo que tenho ouvido dos debates promovidos desde 2013, é que os únicos ainda realmente interessados no projeto são a empresa exploradora canadiana e talvez alguns satélites seus que permanecem na sombra, como pareceu ser o Álvaro, o ex-ministro que mandou avançar as primeiras prospeções com despacho de quem quer, pode, manda, e “mais nada!”. Ou seja, não vi ainda ninguém, de Évora ou Montemor, manifestar-se em nenhuma posição pública a favor da mina de ouro. O que também me deixa ainda mais curiosa com o novo parecer municipal, desta feita do lado leste da Boa-fé. Ora aqui está um filme sem spoilers… Aguardemos com atenção.
Até para a semana.

16.9.14

Silly season forever!

Eis-nos de volta para mais uma temporada da série de crónicas da Diana que agradeço desde já: à Diana FM, pela renovação do convite, e aos ouvintes pela gentileza de me continuarem a ouvir. Esta nova temporada trará normalmente para dar o tom, como fiz anteriormente com verbos, provérbios e citações, um estrangeirismo na e da nossa língua portuguesa. É verdade que muitos deles já foram domesticados, isto é, aportuguesados. E os mas recentes ainda não constam, maioritariamente, nos dicionários oficiais. Mas como sou de uma geração que se habituou a ver o resto do mundo tão perto de casa, parece-me que estas “contaminações” longe de serem um ataque à língua portuguesa são, precisamente, sinal e ao mesmo tempo instrumento para que as palavras, as realidades e as ações se aproximem mais umas das outras, que a linguagem se familiarize com as novas e por vezes estranhas realidades. E para começar cá vai o primeiro nesta crónica que intitulei “silly season forever!”.

Por mais apatetada que a época de veraneio tenha fama de ser em termos de comunicação e interação social, parece-me que ela faz mais falta assim mesmo do que poderia julgar-se. É que se não é silly no momento próprio arrisca-se a, pelo menos, parecer igual ao resto do ano e que esse resto-do-ano se torne tão silly como a season que devia ter sido. E a verdade é que esta deste ano o foi muito pouco… Um balde de água fria… que, afinal e literalmente, até teve e tem por trás assuntos muito sérios. Nada temos contra os temas sérios permanecerem assim durante o período balnear, de preferência aqueles que não implicam decisões que nos apanham a banhos e nos tramem a vida. Mas este foi um Verão de guerras sangrentas, um tempo de mortes prematuras, uma época de novos descréditos no sistema económico-financeiro, mas também partidário (se é que ainda era possível mais!). Um quase convite à revolta ou à desistência, sendo qualquer um dos caminhos, extremos, perigosos por várias e demoradas razões. Quase desejámos que a rotina dos dias de escola e trabalho regressassem rapidamente e em força, a ver se as coisas acalmavam!
E em Évora? Em Évora a água correu mais um ano nos canos, o que nem sempre acontecia nas silly seasons de há uma década atrás. E as festas, os palcos e as artes continuaram a percorrer, à sua maneira, as aldeias e as praças da cidade, colhendo-se nesta época um trabalho que se plantou, regou e fez crescer em anos anteriores. É que estas coisas de valor demoram o seu tempo a crescer, por mais que se tente querer fazer parecer que são “cenas” instantâneas. Não é do pé para a mão que se fazem, pese embora por vezes não seja preciso muito para que aparentemente se desfaçam ou fiquem lá perto. Apenas alguma gente, não muita, com algum interesse nisso.

Até para a semana.  

15.7.14

Fazer nada e votos de boas férias

«Não fazer absolutamente nada é a coisa mais difícil do mundo, a mais difícil e a mais intelectual.» Quem o disse foi Oscar Wilde e pareceu-me uma boa citação, em absoluto, e bem propositada para encerrarmos este ano de crónicas e irmos de férias.
Se as férias para a maioria são, pelo menos durante alguns momentos do dia, tempo de ócio, certo é que não fazer nada, acordado, é todo um desafio para nós mortais. Claro que a ironia da frase de Wilde está bem explícita no facto de se equiparar o pensar ao não-fazer, equívoco que é mais epidémico do que seria desejável à espécie humana que se distingue precisamente das outras espécies animais por pensar.
Também me parece verdade que pensar e fazer apenas uma outra coisa ao mesmo tempo é a habilitação mínima de um ser humano com todas as capacidades básicas ativas, muito embora um eurodeputado comunista tenha desconfiado dessa capacidade no novo presidente da comissão europeia, num episódio, vá fait-divers, de uma arrogância constrangedora. Mas adiante.
Às mulheres, diz-se, cabe o dom de fazerem mais destes malabarismos do que aos homens. Tendo a acreditar no que considero um elogio ao meu género, mas faço-o porque me parece mais provável na latitude e longitude onde vivo e não porque ache que seja um facto assim tão universal. Fazerem, mulheres e homens, várias coisas ao mesmo tempo em que uma delas é pensar, deixa-me equacionar duas hipóteses: ou se fazem coisas que exigem pouca reflexão e continuamos, por isso, a fazer o que é do pensar com toda a intensidade; ou aplicamos o pensar ao que estamos a fazer. Se na primeira hipótese separamos os dois mundos mas desconcentramo-nos forçosamente de um deles, na segunda aplicamos o pensamento ao que estamos a fazer e, como tal, o resultado será sempre se não pelo menos melhor mais justificado e assente numa determinada lógica seguida. Mas a sociedade encara muito mal quem não faz nada. Se calhar, e com toda a pertinência, porque os que fazem são taxados por isso. E por isso, com a evolução civilizacional, se terá equiparado o pensamento à ação numa coisa legal que se chama “propriedade intelectual”…
É que a atividade em si de pensar e não usar o que resulta do pensamento é muito parecida, a olho nu, do pensar e contribuir com esse pensamento para um bem maior do que nós e comum aos que nos rodeiam. E quando isso acontece, mesmo continuando a incompreensão por parte de muitos, é um trabalho muitíssimo importante.
E é por isso que a frase de Oscar Wilde é uma espécie de exercício que proponho que experimentem, sem com isto desejar que durante as férias não deixem de fazer, como todos merecem e alguns às vezes conseguem, o que chamamos “descansar a cabeça”. E às vezes isto, só se consegue se cansarmos o corpo.

Desejo-vos, quando for caso disso, uma boas e ativas férias, em que o fazer nada possa ser um desafio ao pensar muito, ou pelo contrário, o fazer muito signifique pensar pouco. Até setembro.  

9.7.14

Cultura do engodo

Imbuída do espírito da cultura popular com as festas da cidade e da época, meti-me a falar de outras culturas, considerando várias aceções sobre crenças, costumes e hábitos humanos. Há uma tão enraizada com que nos cruzamos tanto e a toda a hora que, até como que hipnotizados, nos esquecemos da sua gravidade. E aqueles que por um determinado modo de vida que levam se conseguem manter afastados desta pressão impercetível, não estarão menos sujeitos a ver-se enredados nos assuntos que acham impermeáveis a este tipo de procedimento, que vive sobretudo na linguagem e no discurso e que se está a tornar numa prática cultural cada vez mais universal.
Refiro-me à cultura da mentira, nos seus diferentes graus de intensidade e com consequências várias ainda que todas inevitavelmente lamentáveis, muitas altamente nefastas nem que seja pontualmente algures na cadeia que vai desde o momento em que é arquitetada e depois lançada, ou quando produz os seus efeitos por vezes ao lado ou mais além do seu projeto inicial. É que a mentira, esta mentira que não é erro ou engano, que não deriva de uma ingenuidade infantil desejosa de um mundo mágico, ou que é mesmo sintoma de patologia, esta mentira é uma mentira que engana de propósito, atraindo os mais distraídos para um determinado alvo com um certo isco, levando-nos a “morder o anzol”. Porque “morder o anzol” é uma das opções que temos, numa vida felizmente cada vez mais cheia delas, mas onde por vezes as alternativas não estão menos engodadas.
Desenganem-se os que já estão a pensar que estou a falar dos políticos, um alargado grupo de pessoas responsáveis por gerirem os destinos de um coletivo ou de fiscalizarem essa governação, e sim estou a referir-me a políticos em democracia, e que tantos ofendem classificando-os liminarmente como “todos iguais”. Desenganem-se porque este não é um texto confessional, e muito menos um pedido de indulgência de quem gosta da política e a pratica com convicção. É tão só e apenas uma reflexão de alguém que, como tantos outros, está sujeita a constantes doses de notícias e apelos lançados às massas e que um dia resolve dar-se ao trabalho de ouvir com atenção esses discursos em vários tons, suportes e propósitos, e perceber como tudo isto parece estar a tomar proporções inquietantes.

O grego antigo Heródoto terá dito que “é mais fácil enganar uma multidão do que um só homem” o que na nossa era continua a ser tão ou mais inquietante, e até porque as multidões são somas de indivíduos que são chamados como cidadãos a participar cada vez mais na vida pública. Certo é que as técnicas usadas para arrastar multidões são as mesmas para impingir o bom e o mau, e que muitas vezes só nos damos conta do mau, ou este se revela, depois de o termos escolhido como bom. Mas pior mesmo é irmos percebendo que toda esta prática propagandística, disfarçada de informação disponibilizada ao cidadão e às massas para que possam escolher isto ou aquilo, ou este ou aquela (porque as pessoas também estão disponíveis para ser escolhidas), tudo isto parece estar a viciar-nos ao ponto de deixarmos de acreditar em quem não a utilize. Uma cultura que tende a extremar as pessoas entre fervorosamente crédulos e constantemente desconfiados e que urge combater não só com a denúncia, mas muito fazendo por se assumirem as culpas quando assim for o caso.

Cultura da simplicidade, essa desconhecida

Confesso que tenho muitas dificuldades em entender e encontrar definições para o conceito de simplicidade aplicado a pessoas. E sobretudo não me revejo em utilizar “simples” como um adjetivo elogioso, quando aplicado sem ser num contexto muito preciso e muito pouco possível de estender a toda uma vida. Também é verdade que “simples” se tornou o antónimo de vaidoso, mas então se a simplicidade é uma tão grande virtude como não se ficar vaidoso quando alguém lhe aponta esta característica? É que até as situações que se dizem simples, de resolução se são um problema, me parecem sempre mais subestimadas do que integralmente resolvidas.
Ocupo-me do assunto porque tenho estado em situações que se dizem ora solenes, ora simples e não tenho conseguido entender a diferença. Uma cerimónia pode ser solene e simples, pode ser solene e complicada, mas é sempre uma cerimónia. Se não é uma cerimónia, há vários tipos de situações que também podem ser elaboradas. Elaborado é-me mais fácil de definir e classificar, sem juízos negativos ou positivos a priori. Elaborado é uma espécie de sinónimo de algo longo, que requer atenção e concentração, e em que os papéis dos diferentes intervenientes estão bem definidos e sem grande margem para improvisos.
Regressando às pessoas, não me parece que uma pessoa elaborada seja pior que uma pessoa simples. Até porque há pessoas, dizem-me nas descrições e comentários que delas se fazem, que quase poderíamos classificar de elaboradamente simples e outras de simplesmente elaboradas. As pessoas do primeiro tipo que agem de forma tão simples, ou tão aparentemente simples já que é preciso muita elaboração, que parece que estão, como diz o povo, a tentar “meter-nos Lisboa pelos olhos dentro”. Já as do outro tipo, com algum tempo e convivência, lida-se muito facilmente com algumas delas, nem que seja numa atitude de “amigo não empata amigo”.  

Mas isto devo ser eu que alinho com o Paul Valéry que dizia: «O que é simples é sempre falso. O que o não é, não serve para nada.» Não sei se o Valéry aplicava a simplicidade às pessoas e o culto que se faz desta característica, para mim pseudo, nas loas que se lhes entoa. Mas é que com este aforismo de Valéry, começo a acreditar que a simplicidade, das coisas como das pessoas, tem um caráter utilitário, o que faz com que os humanos sejam recursos, para outros humanos, claro, e talvez esta taxonomia não seja mais do que uma tática de gerir o pessoal com quem vamos tendo de lidar no dia-a-dia. Tê-los como simples é sempre meio caminho andado para, das duas, pelo menos uma: ou a simplicidade dos outros nos dar menos trabalho e nos facilitar a vida; ou, talvez mais honestamente, ao etiquetar alguém de simples permitir-se que dela não se espere muito, o que a acumular com a honestidade tem muito de indecente. Enfim, Valéry faz-me acreditar que por trás de uma simplicidade está sempre muita elaboração e, como tal, há que antes de louvar ou criticar com o termo em causa, perceber o caminho percorrido para se adquirir esse estatuto tão socialmente relevante de pessoa simples.  

24.6.14

Cultura do panfletário com cheiro a sardinha assada

Pois lá vou ter de citar Vergílio Ferreira outra vez. Os nossos Autores são assim, muito presentes. Desta feita é para falar da festa popular maior do nosso concelho que o escritor bem conheceu, a Feira de São João que está por agora a decorrer com a pontualidade costumeira. Mas vou fazê-lo motivada pelo discurso oficial que em torno da edição deste ano se construiu e que ficará seguramente para a história (ficará?) como um panfleto simbólico deste novo (?) ciclo em que os eborenses confiaram para gerir a sua terra.
Mas vamos lá citar o Autor, num pensamento que encontrei quando procurava algo que incluísse: a fé, afinal a feira tem nome de santo; a política, o tema da feira é incontornavelmente político e toca ainda diretamente todos e cada um dos portugueses de, pelo menos, duas gerações (a dos que conheceram o antes e o depois do 25 de Abril, e os da primeira geração nascida em democracia); e uma espécie de cultura do susto, versão light do terrorismo, e escala que me parece mais adequada ao nível do assunto e dos protagonistas.
 A frase de Vergílio Ferreira é densa, afinal o homem é um Autor, ao contrário do que se espera, e que afinal apesar de tudo se acaba por ter, pese embora toda uma gramática ideológica completamente desajustada, de um texto de apresentação de uma feira onde ócio e negócio se fazem, sobretudo, em ambiente de festa. Um discurso, ou narrativa como é mais moderno dizer-se, este do panfleto, que assenta obviamente numa dificuldade auto infligida. É que justifica o que não precisa de ser justificado, pois ou há novidades ou não há novidades e justificar umas e outras, o que há e o que não há, com base num mesmo argumento é arte para poucos. E é-se por isso obrigado, para contornar o fatalismo do discurso que só parece sobreviver se se acentuar o caos para dar brilho a uma nova luz, a usar uma tática velha e previsível entre adversários já que quanto mais forte é o outro maior é a minha vitória sobre ele. Isto quando, ao mesmo tempo, se quer deslumbrar à corrida os que, às vezes eterna e dificilmente, estão descontentes com a falta de novidade, mesmo que novidade a mais possa ser algo um pouco violento. O equilíbrio torna-se ainda mais penoso de assistir quando para se brilhar se apregoa com todas as letras a atitude do “isto tem de bater fundo para ser a nossa vez”. É o que se pode ler no excerto do texto oficial da Feira de São João 2014: «Em tempos de crise, de empobrecimento e regressão social, que atingem mais e mais eborenses e portugueses, os valores humanistas da Revolução de Abril apontam novos rumos para um futuro melhor em Évora e no país.» E é uma pena, enfim, quando só a partir de um caos, real ou construído (e os eborenses e portugueses sabem bem qual é o real e aperceber-se-ão um dia do que é o construído), só assim se consegue justificar o que se faz. Feitios…

Mas vamos lá à citação publicada em 1987 onde sem meter, metendo, o bedelho em dogmas religiosos ou políticos, o Vergílio Ferreira utiliza os conceitos de fé e esperança para falar do uso que delas se faz para criar sentimentos nas massas acríticas. E é, por isso, que em poucas palavras, Vergílio Ferreira nos fala das ilusões de uma e das cautelas de outra. E que acreditar coagido pelo sentimento de medo (susto ou terror) não é ter esperança, porque esta se vai ganhando com as respostas às questões que vão surgindo, resolvidas por outros mas também por nós, porque quer os outros quer nós também criamos os problemas a resolver, ou pelo menos tentar. E diz assim o grande Autor: «A fé é uma esperança terrorista como a esperança é uma fé democrática. A fé é um acto solitário. A esperança tem de ter em conta o que a excede. Mas na primeira está a certeza e na outra a dúvida.» Vão pensando no assunto e divirtam-se na Feira.

17.6.14

Cultura da simpatia

A simpatia devia ser obrigatória quando não é inata. Não sendo, arranjamos-lhe equivalência a civismo, talvez e para arranjar terminologia académica em época de exames. Não é a mesma coisa mas já dá para passar no trato quotidiano em que pessoas têm de interagir umas com as outras. Também lhe pode valer a cordialidade, cuja etimologia até está próxima do coração, ou a atenção, mais cerimoniosa. Mas são tudo áreas afins, também com a sua dificuldade em se adquirir ou, em algumas circunstâncias, estando lá, de demonstrar. Já a simpatia tende a ser mais natural e por isso cultivá-la podia bem ser uma forma de tornar a vida em sociedade mais fácil.
O Vergílio Ferreira, que não ficará seguramente para a história com a imagem de um homem simpático, mas para quem o lê e pela forma como se afirmou no panorama cultural português isso já não interessa nada, escrevia que "Não se tem simpatia se não houver seja o que for de admiração: tem-se apenas tolerância ou piedade." Esta simpatia é a dos sorrisos e restantes gestos que não são de fachada, mas que vêm de dentro independentemente de se sentir a tal admiração para com quem se é simpático ou porque, no sentido inverso, não se sendo espontaneamente simpático o outro com quem lidamos nos “obriga” a uma atitude simpática. Essa de que fala Vergílio Ferreira será aquela para a qual muita gente de difícil trato se deve então reservar, poupando-se no dia-a-dia, em tolerar ou apiedar-se dos outros com quem se cruza ou, mais sinceramente, sendo antipático, com todos os riscos daí decorrentes.
Quem está pouco habituado a lidar com a simpatia dos outros dificilmente se torna simpático se não o for já intrinsecamente, e isto por razões várias e tantas vezes compreensíveis pois das amarguras de cada um só o próprio sabe. Lá se disfarça às vezes, e ainda bem, com o civismo, o que faz com que muitas vezes esse esforço seja meritório. Já a tolerância e a piedade de que fala o autor, e que facilmente se confundem com simpatia, são em meu entender equivalências diretas para querer lidar o menos possível com quem as sente ou pratica.

Falo também de cultura da simpatia porque tantas vezes essa característica é tomada numa forma coletiva e atribuída a determinados povos ou comunidades, e até usada no marketing turístico. E este é um assunto recorrente, nesta época do ano quando folheamos brochuras de destinos turísticos. Confesso que acho essa distinção coletiva altamente promotora de comportamentos algo xenófobos e a roçar o incentivo ao comércio da banha da cobra. É uma espécie de contrafação do que é a simpatia enquanto característica humana e, porque não até dizê-lo e esticar o universo de convivência, do reino animal. Quando assim é, a simpatia afinal não é sequer por admiração, nem mesmo por tolerância ou piedade. Não é um traço de sentimento mas uma técnica de manual. Por isso também, quando as coisas me correm mal com quem tem no seu CV essa característica de simpatia por decreto, lá consigo pensar “ao menos foi simpático”.  Sim, porque há quem ache que a simpatia é incompatível com a sinceridade, a honestidade ou a transparência e, de facto, pouco tem a ver com estas características. E se uma não disfarça a falta das outras, as outras podem, e devem digo eu, coexistir com ela sem a desvalorizar. Cultivar a simpatia é, afinal, todo um complexo programa de crescimento que não só beneficia os outros como nos faz bem a nós. Cultivemo-la, então.

10.6.14

Cultura da solidariedade

Prosseguindo às voltas e em volta do conceito de cultura, neste dia de Portugal, falarei sobre a cultura da solidariedade, algo que podendo ser inerente à bondade quase inata das pessoas, também se pode ensinar e tornar-se uma prática civilizacional na organização de uma sociedade evoluída. De certa forma, este cultivar da solidariedade, surgiu-me a propósito de alguns assuntos recentes, sendo um deles o facto de se terem passado e assinalado os 70 anos do desembarque na Normandia, Dia D que marca a solidariedade dos povos aliados e que queria aqui simplesmente evocar.
A solidariedade às vezes parece-se com os almoços, que nunca são de graça. E tal como a caridade está para o estado social, também o antepassado mais comum da solidariedade se pode confundir com o conceito, por exemplo, de favor. Relações que hierarquizam forças entre quem pode mais e menos, mas de forma não absoluta, isto é para sempre, mas circunstancial, ou seja, em diferentes momentos da vida. É esta declinação do conceito de solidariedade que o autor francês das fábulas La Fontaine evoca quando escreve "Há que, na medida do possível, prestar favores a toda a gente: quantas vezes não precisamos de quem é menos do que nós."
Este princípio da solidariedade que existe também entre os Estados, por exemplo da União Europeia, mesmo quando em alguns desses Estados se implementem políticas neoliberais que põem em causa o próprio papel do Estado, faz com que todos contribuam para uma espécie de conta, com quantias dependentes das diferentes situações económico-financeiras de cada um, de forma a que, quando um deles atravessa um período de crise, todos os outros contribuam para essa situação de emergência. Foi o que até Portugal fez, em relação à Grécia ou, numa escala maior que a europeia, aquando da tragédia do tsunami na Tailândia também várias nações contribuíram para ajudar aquele país. Claro está que estas doações são feitas partindo do princípio que aqueles a quem é doado se empenharão em recompor-se, até porque aquilo que damos agora pode fazer-nos falta mais tarde e devemos esperar para além da solidariedade a reciprocidade. É aqui que entra a história dos almoços que nunca são grátis…
Tudo isto parece-me simples de entender, quando o caminho é evitar que haja os cada vez mais pobres e os cada vez mais ricos. As pinturas murais do tempo do PREC eram muito claras em relação a esta espécie de justiça social, ainda que só se referissem ao primeiro movimento de dar e não ao outro de retribuir. E refiro-me em particular às frases como «os ricos que paguem a crise» da extinta UDP que têm agora um outro discurso mais elaborado, mas que todos continuamos a perceber, que é o de taxar as grandes fortunas.
Está bom de ver que quando se dá alguma coisa a alguém se investe nesse alguém ou no relacionamento que se tem com esse alguém, esperando-se a dita reciprocidade. Por isso nos indignamos quando vemos a Alemanha a indispor-se quando tem de ajudar a Grécia ou Portugal, como se nós com esse dinheiro não fossemos até comprar produtos exportados pela Alemanha. O que é estranho é ouvir da boca de certos governantes que entendem que os governos que estão mais folgados não estão naturalmente dispostos a ajudar aqueles que, por razões várias e nem sempre de responsabilidade própria, têm menos capacidade de governar para que os seus cidadãos tenham o mesmo bem-estar social que os outros. Mas aconteceu.
A Câmara de Évora esteve presente na discussão de uma proposta do Governo sobre a criação do Fundo de Apoio Municipal, um fundo que servirá para os municípios recorrerem em caso de dificuldade e para o qual contribuirão os municípios e o estado central. Na discussão, que ainda decorre, as partes ou dotações que cabiam a uns e a outro eram visivelmente desequilibradas, sobretudo quando pensamos em autarquias que se substituem ao estado central em inúmeras áreas, dada a relação de proximidade e conhecimento do território. Mas eis senão quando o que também suscitou dúvidas, imagine-se, foi o facto de as autarquias que estão em boas condições financeiras terem de dar mais do que as outras. Desta vez e neste caso, os ricos não estão para pagar a crise! Onde está então a cultura da solidariedade? 

6.6.14

Assuntos de Câmara - sobre o encerramento das escolas nas aldeias e a sua (não) negociação

No dia 4 de junho foi aprovada por unanimidade a moção apresentada pelos vereadores eleitos pelo PS:

Tendo o Ministério da Educação manifestado a intenção de encerrar várias escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico, com menos de 21 alunos, em freguesias rurais do concelho de Évora, a saber: Azaruja, Vendinha, Boa Fé, Nossa Senhora de Machede, São Manços, São Sebastião da Giesteira, Torre de Coelheiros, Graça do Divor e São Miguel de Machede; a Câmara Municipal de Évora (CME), reunida em Reunião Pública de Câmara dia 4 de junho de 2014, vem reafirmar a sua oposição a esta decisão, ou qualquer outra que não siga o que consta do parecer expresso a 7 de maio deste ano, que se anexa, e enviado à Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares do Alentejo (DGEst). Uma oposição que, por isso, decorre também da discordância com o procedimento de negociação, ou falta dela, entre a DGEst e a CME, e que parece resultar numa tomada de decisão unilateral na maioria dos casos de encerramento anunciados.

Ainda que este assunto esteja em cima da mesa desde 2010, o município, ouvindo as partes interessadas, tem impedido o encerramento de escolas numa posição consentânea com essas partes, posição assente em pareceres que, emanados do Conselho Municipal de Educação, justificaram e asseguraram a manutenção desses estabelecimentos de ensino nas aldeias do nosso Concelho, mesmo quando o número de alunos era inferior aos estipulados 21.

O encerramento de escolas, além do significado no que se vai prenunciando como a desertificação destas aldeias e a pouca atratividade para que os jovens nela permaneçam ou se fixem, tem também graves consequências na sustentabilidade do próprio sistema de transporte escolar, um problema para as crianças que vivam longe da sua escola e que se agravará com estes encerramentos, uma questão que esteve também sempre em cima da mesa desde 2010. Estas medidas afetarão igualmente a gestão das escolas para onde serão deslocadas as crianças das aldeias, o que não é um problema menor a ter em conta.
  
Urge, como tal, que a DGest e o Ministério da Educação se predisponham a ouvir efetivamente, e não como mero cumprimento de calendário, o município, ouvindo, com a posição que este tem tomado, as comunidades escolares em causa, bem como o órgão municipal competente, e a que sejam encontradas as soluções que, sobretudo em termos de segurança e bem-estar das crianças, melhor sirvam o interesse de todos.

Esta moção deve ser enviada às Juntas de Freguesia e divulgada junto da Comunicação Social e pelos meios próprios habitualmente utilizados pela CME.


Os vereadores eleitos pelo Partido Socialista

Silvino Costa

Cláudia Sousa Pereira



3.6.14

Junho religioso, popular, cultural

Junho é o mês dos Santos populares, os da casa, que saem para a rua com o chegar do calor. Diferentes e os mesmos nas diversas zonas do nosso país, da aldeia mais interior à capital e arredores, do bairro à avenida, onde há um deles sempre com festa mais rija, às vezes por razões que se perderam no tempo. Cá para mim, tem a ver com este jeitinho humano de que sempre que haja uma boa desculpa, com a bênção do santo, se possa arejar do “ram-ram” dos dias, de preferência aqui ao pé de nós mas também com o argumento de dar uma espreitadela na festa da vizinhança. O assunto prolonga-se Verão adentro, com a desculpa do santo, da padroeira ou da tradição que alarga o altar até ao adro e o transforma em recinto de festas com bailarico, febras e sardinhas.
Mais recentemente também os festivais de música começam logo em pré-Verão, tão em catadupa vão sendo que reclamam este espaço extra no calendário. Nestes mandam as tábuas onde se inscrevem as leis do negócio, porque se o entendimento do mundo se pode explicar com o divino, mantê-lo a rodar com as leis da natureza, mantermo-nos nele implica esforço humano.
Todas elas são festas que são trabalho para muitos e inegável ócio para muitos mais. Uma indústria de lazer, de espetáculo, mas também de tradição que ou é mesmo, ou se vai fabricando rezando aos santinhos todos para que pegue a moda e fique o gosto, e os euros possam continuar a chover como fogo-de-artifício no céu, velinhas que se acendem para haver motivo de voltar-se para o ano, promessa cumprida e a repetir.
O assunto, a par de uma leitura apaixonante que tenho estado a fazer de um jovem autor, Afonso Cruz, fez-me refletir sobre o conceito de cultura. Um conceito de definição tão extensa, abrangente e vária que, quem a quer hierarquizar, com critérios de geometria variável apesar da intenção científica e precisa, distingue a cultura, num lugar cimeiro de um escala difusa e ligada ainda assim a vários saberes específicos, de um outro substantivo plural, mais coletivo, culturas, saco grande para arrumar tudo o resto em aparente igualdade de oportunidades. Há ainda uma expressão “de cariz cultural”, ou equivalente, que deixa ao gosto do utilizador desse bem assim classificado meter no saco ou elevar ao nível singular. Para mim, a noção de cultura que melhor serve a fluidez do conceito, disse-o Pessoa, como outros o disseram de outras formas: «Cultura não é ler muito, nem saber muito; é conhecer muito.» Ou seja, para mim, as pessoas cultas não se medem todas pela mesma escala. Ao que diz Pessoa acrescentaria a partilha, mas isso sou eu que não sou poeta.
Ao Afonso Cruz enquanto escritor (como ilustrador já o conhecia), tive o privilégio de o ler em “manuscrito” na sua primeira obra premiada, já que fiz, com o António Torrado, parte do júri em que atribuímos o primeiro lugar unanimemente e com muita satisfação, em 2009, ao Os livros que devoraram o meu pai. Cumpriu-se o que já ali prometia e temos hoje um escritor, para além de um ilustrador e de um músico, porque o Afonso Cruz é também membro da banda Soaked Lamb que Évora já teve a oportunidade de ouvir na Feira do Livro de 2010.

Mas o que importou para esta crónica é que o último livro por ele publicado e premiado, Para onde vão os guarda-chuvas, uma metáfora da morte, nos fala dela e da vida, e das diferentes culturas de as ligar à existência humana, isto é, a religião. Um ecumenismo que é também literário, quase me atrevia a dizer, até porque o próprio livro enquanto objeto é todo ele um lugar de confluência e convocação de várias artes que ali caibam. Desconheço, e não é uma condicionante, a fé do autor, mas parece-me que o que ali temos, para além do prazer da leitura, ajuda qualquer leitor a crescer na sua própria cultura religiosa, para além da literária, claro. Mais do que as diferenças nas devoções, uma cultura religiosa nunca o é se não se confrontar, com a devida tolerância civilizacional que se espera de quem é culto, com outras, conhecendo-as. Aconselho vivamente.