29.10.13

Aceitação

A páginas tantas, Shakespeare n’ As Alegres Comadres de Windsor, uma peça que Verdi adaptou para a sua última ópera Falstaff, escreve a seguinte máxima: "Devemos aceitar o que é impossível deixar de acontecer." A aceitação parece, aqui e assim, uma espécie de inevitabilidade. Ora não é que eu não acredite em inevitabilidades, por muito que todos os dias me esforce por que sejam as menos possíveis, mas recuso-me a que toda a aceitação o seja. Depois de muito analisadas as razões e os motivos e as histórias e os feitios, se calhar, as aceitações acabam mesmo por ser, no fundo, no fundo, a atitude possível, provável, expetável até, mas não a única saída. Há também o aceitar-se porque se quer.
Toda esta conversa não tem a ver com o slogan “Não há becos sem saída!” do movimento «Que se lixe a troika», ou com o OE para 2014, ou com as manifestações, ou com as greves que se anunciam. Na verdade, tem a ver com o facto local de me ter tornado, de novo mas ao contrário, vereadora da Câmara Municipal de Évora. Para os ouvintes mais distraídos, cá vai um esclarecimento rápido: estando em terceiro lugar na lista que apenas elegeu dois vereadores, na oposição, com a renúncia do primeiro da lista, havia que assumir a função de vereadora da oposição. A crónica tem, então, a ver com a aceitação, mas para mostrar o outro lado mais solar, e menos de todo-conformado, que o conceito possa ter e que o torna sinónimo de resignação.
O que é engraçado é que na língua portuguesa (e não só), a resignação é também a não-aceitação de um determinado cargo, ou seja a renúncia, o que não deixa de ser curioso para o caso em concreto: quem resignou levou a que outra aceitasse. O contexto muda o sentido da palavra, como as circunstâncias influenciam as atuações. No que resignação é o contrário de aceitação, há quem veja fuga, no que é sinónimo acaba por ser um deixar-se estar numa determinada situação, que não se desejou, que não se prevê mudar e para a qual nem sequer se foi candidato.
Com uma maioria absoluta, quem governa pode vir a ter na oposição um elemento de legitimação da sua governação, e daí um dos interesses possíveis para que as medidas sejam as mais consensuais. Mas parece ser absolutamente indiferente, para os destinos dos governados, que a oposição seja a favor ou contra determinadas propostas que um governo em maioria absoluta faça. O que não quer, no entanto, dizer que o que uma maioria absoluta aprove e uma oposição minoria condene, acabe por ser do agrado de uma grande parte, pelo menos a mais ruidosa, da maioria dos cidadãos. E afinal parece que sempre falo do OE e das manifs…
Quando a participação dos cidadãos em dia de eleições, por ação ou omissão, produz uma maioria absoluta, permite a quem se submeteu ao escrutínio aplicar todo o seu programa de governo. Acho até que o princípio revela maturidade por parte dos eleitores que o fazem conscientemente, como a revelam os eleitos com acordos pré ou pós eleitorais, que tenham programas de governo com muitas afinidades. O que é já estranho é que apresentando um programa que tem como principal objetivo romper com o passado, se insista que se quer governar com gente que vem desse tempo.

Com muito entusiasmo, até pelas muitas descobertas a fazer, nada tendo por isso a ver com a passividade da tal outra aceitação, à oposição cumpre acompanhar e fiscalizar o governo, se este cumpre ou não o prometido e programado, bem como, e não menos importante, os caminhos que se tomarão para lá chegar. Cumpre, ainda assim, tentar implementar, no possível, o seu programa sendo certo que o que está mal é para mudar, mas para melhor. Esse trabalho é, sim, inevitável! É que se assim não for, na ilusão de um “todos” uniforme que não existe, e quando constantemente se afirmou essa diferença, se acaba por dar razão à indiferença daqueles que exclamam “nem lá vou, são todos iguais” ou “para quê se lá ficam todos?”.

22.10.13

Blasfémia

O escritor americano Mark Twain é dos mais presentes em compilações de citações, e também daqueles que mais humor põe nas suas sentenças, muitas delas retiradas de romances e novelas. Terá escrito um dia que "se estiver zangado, conte até cem; se estiver mesmo muito zangado, blasfeme."
A blasfémia é também coisa do sagrado, ou por outra, é coisa contra o sagrado. Mas nos tempos de ciberespaço que atravessamos, a blasfémia é, ou podia ser, apenas o grau mais elevado de quem se ofende porque se sente alvo de crítica, contestação, insulto ou difamação. Assim, em diferentes graus que arrumo em crescendo, numa escala muito minha. Crítica, contestação, insulto, difamação.
Se a crítica e a contestação me parecem naturais, e por isso quando somos alvo delas podemos ficar apenas um-bocado-chateados-mas-adiante, já o insulto e a difamação são uma blasfémia para quem deles é vítima. Só uma raiva ou um descontrolo muito grandes fazem com que uma crítica ou uma contestação se transformem em insulto ou em difamação. Mas começa a acontecer de forma cada vez mais frequente e a vários níveis.
A escalada da violência verbal, em espaço público, começou no momento em que dizer a alguém que está a mentir e não ser punido por uma acusação que se prove não ser verdade passou a dar muito trabalho e, por isso, chegar o encolher de ombros, ou a explicação que não querem ouvir ou, lamentavelmente, dar uma resposta a descer ao nível. Aqui chegados, até se deu azo a que não se distinga quem mentiu mesmo, de quem apenas tomou uma decisão com consequências que se prevêem de desfechos diferentes por quem ofende e por quem é ofendido. E o insulto passa a servir não apenas para desmascarar, deixando de ser insulto e passando a acusação, mas simplesmente como forma baixa de contestação. 
A blasfémia dessacralizou-se na mesma medida em que o insulto se popularizou. E acho que foi um direito que se conquistou, considerar-se blasfémia o que é dirigido a pessoas e não a deuses. O insulto popularizou-se tanto que se massificou e tem os seus momentos de explosão em manifestações que também seguem essa “lei”, chamemos-lhe assim, de proporções. Quanto mais o grupo ou a multidão se compõe de gente que individualmente se sente atacada, maior é a agressão verbal. Por isso também as manifestações têm sido não as da ordem, a dos sempre zangados com tudo e todos, e que deviam contar até cem, para passaram a ser momentos de catarse em que o desespero se alivia na blasfémia.
E aqui acode-me um outro inglês, o poeta Ralph Hodgson, que terá afirmado que "as blasfémias proferidas em estado de angústia valem o mesmo que as orações." É o perdão em tempos de angústia.

Até para a semana.

15.10.13

Estado de graça

Costuma dizer-se que no início das suas funções os governantes entram num período a que se tornou vulgar chamar “estado de graça”. É uma expressão curiosa, envolta em misticismo e numa aura quase religiosa, que parece transformar o eleito, ou a eleita, numa espécie de desejado, de salvador, de messias até. Isto, naturalmente, acontece num raio que atinge os que fizeram e ajudaram a fazer a escolha, e ultrapassa quer em duração, quer em intensidade, a euforia, também natural, do momento da vitória. O dia seguinte é longo e lânguido. E quando o ambiente é verdadeiramente democrático, para o qual os adversários também muito contribuem, o dia seguinte prolonga-se e goza-se como um dia de domingo, por mais do que o tempo de uma rotação da terra sobre si mesma.
A escritora brasileira Clarice Lispector escreveu, em 1968, a propósito deste estado o seguinte: «Quem já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte. O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe.  Nesse estado, além da tranquila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão, tão leve.»
Por acaso, acho que, apesar do que disse, no caso dos governantes a coisa dá-se mais como com os carros novinhos em folha e que acabados de sair do stand já estão a desvalorizar. Não é uma visão tão poética e espiritual, bem sei. Mas, desde que passei pela situação, que também sei que a poesia e a espiritualidade têm muito pouco espaço na vida de um ou uma governante. E vejamos também que durante algum tempo, mesmo desvalorizada, a viatura nova continua a brilhar e a comportar-se como se esperaria.
E por isso, este estado de graça de que falam comentadores mais ou menos encartados, é mais um estado de torpor, que rapidamente se altera com a primeira medida importante que se toma. O estado de graça é uma espécie de período de licença especial em que quem a ele assiste, sem paixão ou comprometimento, aguarda pela confirmação, ou não, do verdadeiro estado em que tudo vai ficar ou mudar. Julgo até que é todo o discurso propagandístico que projeta futuros num exercício puramente de estilo que, em muitos casos, faz prolongar o estado de graça.

No último ato eleitoral, e refiro-me obviamente à realidade de Évora que é a que conheço melhor, quem tenha tido a vontade e correspondente persistência para ler os diferentes programas eleitorais, que para o vencedor será ou deverá ser um programa de governo, terá reparado que os futuros foram, se calhar pela primeira vez em quase 40 anos, pouco prometedores. A maior parte, para não dizer todos, não deixa ver ao cidadão comum o que vai ser diferente. Talvez por isso, mais de metade tenha ficado em casa, porque afinal uma promessazita mais audaz em campanha eleitoral fica sempre bem! Quererá isto dizer que o estado de graça será mais curto do que habitualmente? Ou, pelo contrário, se prolongará à sombra de passados que, afinal, não se conseguem resolver? Aguardemos de forma leve e tranquila, que é o que o estado de graça dos outros nos permite e não nos deixa senão senti-lo também.

A Diferença

Para os mais atentos às questões da educação, é visível o inconformismo de pais e mães de crianças com necessidades educativas especiais neste início de ano letivo. Ao que parece, a grande maioria destes alunos começaram o ano sem professores de apoio ou técnicos especializados para as terapias, criando-se um claro sentimento, nos encarregados de educação, de uma ainda maior exclusão.

Évora pode orgulhar-se q.b. de entre 2010 e 2013 ter permitido que estes alunos, que frequentavam o agrupamento vocacionado para estes casos, pudessem como enriquecimento curricular frequentar atividades proporcionadas por uma parceria entre a entidade promotora das chamadas AEC’s, a Câmara Municipal, e as associações locais com esta área de intervenção. Mas também as alterações introduzidas neste ano letivo, inviabilizaram esta oferta formativa que tornava a escola pública como um real local de inclusão a vários níveis.

Uma escola pública inclusiva não trata todos por igual, mas oferece a cada aluno a possibilidade de, de facto, atingir o objetivo primordial de quem vai à escola: aprender. Cada profissional do ensino reconhece em cada aluno que lhe vai passando pelas salas de aula qual o melhor caminho para o levar à concretização desse objetivo. E o que é certo é que, para alguns, os caminhos a percorrer são especiais e por isso necessitam de técnicas e acompanhamento também especiais. A diferença é isso mesmo. E a diferença é um conceito perigoso.

Também é sabido que há ministros e ministras, e governantes em geral, que no exercício da sua governação querem deixar a sua marca e fazer ou ser diferente. Às vezes levam isso tão adiante que acabam por deixar pior o que tanto criticavam. É verdade que não me lembro de nenhuma proposta eleitoral do atual governo para esta questão em particular do ensino especial. Mas lá que a diferença que este ministério está a fazer está a ser bem conseguida, lá isso está.


Vou citar Vergílio Ferreira, escritor e professor que passou e marcou Évora, e que falava assim da diferença: «Não és um homem normal. Isso te é uma inferioridade (ou uma superioridade?). Como em tudo o que é diferente. Cultiva a tua diferença. Mas uma diferença pode ser negativa. Esse é o teu drama. Porque a tua diferença vai além e fica aquém dos outros. Tu querias ser os outros no que lhes és inferior e ser diferente no que lhes és superior. Mas toda a superioridade se paga. Paga e não bufes.»

Rentrée

Eis-nos de volta às crónicas, num momento em que as rentrées estão todas feitas. Na realidade são só duas: a dos partidos políticos e a verdadeira que é a escolar, bem mais abrangente e influente na vida do dia-a-dia dos cidadãos, mesmo os que não são diretamente nela envolvidos. Um lugar muda quando mudam os ritmos das pessoas que nele vivem.

Fiquei contente com o renovar do convite da Diana. Acho que é uma honra esta oportunidade que me tem dado de ocupar um espaço público de opinião, numa rádio que tem na pluralidade um princípio basilar à vista, ou melhor ao ouvido, de quem a sintonize. Numa época em que, felizmente, toda a gente pode dizer o que pensa, em circuitos mais ou menos fechados, e muito também graças a esses outros espaços de comunicação sem intermediários que são as redes sociais, nunca uma opinião pôde ser tão lida ou ouvida como nos tempos que correm.

Também é verdade que muito do que fica dito e escrito nestas crónicas de opinião não ficará para a história dos aforismos e citações, como aquelas que também vemos circular por aí, por vezes até com duvidosa certificação da origem. Também por isso as crónicas se adaptam ao tempo médio da capacidade humana em prestar atenção ao que é dito, e o ritmo dos dias é, mesmo no interior do país, condicionante dessa capacidade.

Se já fiz uma série de crónicas com provérbios como mote, e outra com verbos como inspiração, esta nova série vai ter precisamente as citações de gente que sobrevive nelas a dar o tom. É uma espécie de “como diz o outro” a propósito de um tema com que nos cruzamos ao longo das semanas. Mas é também uma maneira de poder opinar sobre pensamentos que, assim descontextualizados do seu momento e contexto primordiais, podem ganhar novos sentidos. Shakespeare terá afirmado mesmo que «o êxito de um bom dito depende mais do ouvido que o escuta do que da boca que o diz.»

Fazer reviver assim as palavras que já foram ditas é, no fundo, devolver ao seu autor a responsabilidade da sua autoria. Tudo isto com o devido desconto de, ao valorizarmos as palavras de quem conquistou através delas uma espécie de eternidade, cobrar o troco de não se apagar o diálogo que a mortalidade interrompe.


As minhas crónicas serão, pois, sobre citações de gente que, não estando no mundo dos vivos, se mantém por cá. Mas não será de admirar que, uma outra vez, cite gente que anda aí no ativo e que pensa que, pelas palavras lhes serem leves, haverá quem não as escute e, mais uma vez, eu lhes cobre pelo valor que têm ou acho que deviam ter. 
(crónica de dia 1 de outubro)