20.12.16

Espíritos da época

As épocas que se impõem festivas são um bom exemplo do que como muito do que é feito em nome de um interesse comum acaba por provocar tanto adeptos como dissidentes, gerando loas ou críticas, aplausos ou vaias, empenho ou indiferença. Os consensos são, pois, virtudes que implicam sacrifícios (como, aliás, tantas outras virtudes que se conquistam com dores de crescimento) e o mais bonito é quando estes se distribuem por entre as partes. Além disso, em nome de determinados princípios, os inabaláveis, consensualizar pode e deve ser, em várias circunstâncias, impossível. Por vezes acontece tropeçarmos em quem mascara, com a alegação de uma finalidade comum, percursos completamente enviesados em comportamentos que são só por si reveladores de princípios bem diferentes. Há até um dito que joga com os sentidos destas palavras e vaticina que quem não tem bom(s) princípio(s) não tem bom fim…   
Do espírito de Natal confesso que só acredito nos que se declinam no plural, os de Dickens, os três espíritos que visitam o avarento Scrooge nessa noite mágica. O primeiro é o espírito do Passado que lhe devolve uma infância dourada e que é, no fundo, o que evocam tantos dos que se reúnem com aqueles com quem conviveram nesses tempos, sejam familiares ou amigos. O espírito do Presente alerta para a miséria e para a ignorância, para o que se faz no colectivo e se reflecte no percurso individual de quem o faz, chamando-nos à razão para uma vida social a não descurarmos, apesar de haver nalguns tendências misantrópicas. O do Futuro mostra a Scrooge a solidão, até como consequência de um Presente que se esquece do Passado, e revela a morte inevitável. É com a ajuda desses espíritos que ultrapassamos tantas vezes a pouca vontade de festejar entrando, precisamente, no espírito do Natal, o tal que será, então, quando um homem quiser.  
Além destes, que nos chegam mais exacerbados por esta época, há outros quatro espíritos que valorizo muito. O espírito crítico, atitude intelectual que não admite nenhuma asserção sem reconhecer a sua legitimidade. O espírito de equipa, sentimento de união partilhado pelos elementos de um grupo. O espírito de finura que Pascal, matemático e filósofo francês do século XVII, define como uma aptidão intuitiva, uma sagacidade e perspicácia que abençoam e ocupam alguns. E, finalmente, o espírito geométrico, que só admiro se for o papel de embrulho que contém os outros três, e que revela a aptidão discursiva e demonstrativa, num encadeamento lógico das ideias.

Se estes espíritos nos fossem concedidos talvez não atingíssemos a felicidade plena ao vivê-los em sociedades plurais e diversificadas, mas se nos rodeássemos de gente bafejada por eles era mais provável que conseguíssemos transformar alguma coisa nessa sociedade. Seriam bons presentes no sapatinho, alimentando uma semana depois a esperança de um novo começo ao passarmos de ano. Não sendo assim, fiquemo-nos por deixar passar, naturalmente como na vida, o Passado, o Presente e o Futuro, ou seja o Tempo, e juntemo-nos aos felizes comensais, ainda que às vezes para alguns um bocadinho contrariados. É só às vezes. E a desculpa não somos nós, mas um alguém que alguns acreditam andar a tratar de nós. Como a família e os amigos. Bom Natal, boas festas e até para o ano! 

12.12.16

A manteiga da polémica cinéfila e outras histórias

Bertolucci, um dos monstros do cinema mundial, esteve debaixo de fogo recentemente, na opinião pública que fala agora mais alto do que nunca, por ter revelado com alguns equívocos como foi filmada a famosa cena de sexo entre Maria Schneider e Marlon Brando em «Último Tango em Paris». Um clássico da Sétima Arte que, já agora, aconselho. Maria Schneider teve, como tantas outras estrelas famosas e alguns cidadãos comuns, uma vida emocionalmente instável, já fora dos palcos ou do ecrã, e que em 2007 parece ter-se justificado com esta história de não consentimento prévio de todos os detalhes de rodagem de uma cena de sexo. E a polémica - que no relato de Bertolucci diz ter sido uma intenção de espontaneidade ao não dar previamente a conhecer a Schneider o uso, chamemos-lhe assim, criativo de uma barra de manteiga nessa dita cena de sexo - cresceu para uma cena de autêntica violação grupal em que esta Maria virou cordeiro sacrificial de figuras maiores da Sétima Arte. A mim, a história destas três pessoas e os seus factos, verdadeiros ou recriados, interessam-me tanto como a vida sexual do próximo, o que quer dizer zero. O que me aguçou a curiosidade foi a manteiga enquanto metáfora, e perceber que o que tanto parece ser altruísmo, neste caso em prol da Arte e dos seus praticantes, pode, por vezes, transformar-se em, chamemos-lhe isso mesmo, sacanice nos vários possíveis significados que tem o termo. Procurei então referências a este besunto, ainda que apressadamente, e encontrei uma historieta edificante que partilho convosco.
“Conta-se que certa vez duas moscas caíram num copo de leite. A primeira, forte e valente, nadou até à borda do copo, mas como a superfície era muito lisa e ela tinha as asas molhadas, não conseguiu sair. Acreditando que não havia saída, desanimou, parou de nadar e afundou. A outra, apesar de não ser tão forte, era tenaz. Continuou a debater-se por tanto tempo que, aos poucos, o leite ao seu redor, com toda aquela agitação, se transformou num pequeno nódulo de manteiga. A mosca conseguiu, com muito esforço, subir e dali levantar vôo para um lugar seguro.” Se a história parasse aqui, esta seria seguramente um elogio à persistência que leva ao sucesso. No entanto, assim não é. “Tempos depois a mosca tenaz, por descuido ou acidente, caiu novamente num copo. Com a experiência adquirida, começou a debater-se na esperança de que, no devido tempo, se salvaria. Outra mosca, ao passar por ali e vendo a aflição da companheira, pousou na beira do copo e gritou: "Há uma palhinha ali, nada até lá e sobe". A mosca tenaz não lhe deu ouvidos, continuou a debater-se até que, exausta, se afundou no copo cheio... de água.”
Ficaríamos muito mais dos que os aproximadamente três minutos de uma crónica a discutir as diferentes lições a retirar da historieta. Poderíamos ainda gastar muito mais tempo a substituir as moscas e os copos por pessoas e situações (auto)biografáveis. E podíamos, talvez, voltar a Maria Schneider, Marlon Brando e o “deus” Bertolucci, não sem algum picante-vintage completamente enevoado por uma atenta contemporaneidade à violência doméstica como crime público. Ou até, esticando mais a conversa, sobre a possível e discutível conflitualidade entre a estética e a ética, e o quanto para apreciadores das Artes é preciso conhecer bem as suas “gramáticas”.

O que eu vou lendo nesta historieta é que circunstâncias diferentes pedem reacções e atitudes diferentes, o que não contribui para uma suposta coerência primária, mas pode constituir-se um excelente quebra-cabeças de dois sentidos: para quem tem as atitudes e para quem, usando as celulazinhas cinzentas, as saiba interpretar. Dá trabalho, mas também dá muito mais gozo.

6.12.16

De Braços Abertos

Foi sem surpresa que li os resultados de mais um inquérito aos portugueses em que a maioria se diz disponível para receber refugiados mas não imigrantes. Os portugueses são, entre os europeus, aqueles que aceitam melhor a vinda de refugiados, com preferência para alguns credos em detrimento de outros, e são também dos que mais se opõem à entrada de imigrantes por razões económicas. Foi sem surpresa, mas com tristeza. Aquela que suplanta qualquer ponta de orgulho que não costumo alimentar, embora não lhe seja imune, por exemplo até quando toca o hino.
Sem surpresa porque costumo ouvir as opiniões e comentários das pessoas na rua, seja a rua da capital ou da província. E porque frequento as redes sociais. Com tristeza porque discordo profundamente desta postura. E, sobretudo, porque as oiço nas vozes da geração a seguir à minha, o que atinge o meu capital de esperança nas futuras gerações. Ou não me passassem pelas salas de aula às dezenas, todos os anos, o que me leva a várias situações em que me olham desconfiados com o meu discurso que lhes contraria esta e outras posturas que roçam a intolerância.
Julgava que haveria um certo pudor, neste país que tem um Cristo a receber de braços abertos quem chega à sua capital, em expor assim o seu medo. Porque é de medo que se trata. Medo que nos tirem os diversos lugares que julgamos cativos ou para os que “são de cá”, ou dos que os querem muito e temem a concorrência dos mais capazes. E são eles próprios incapazes de incluir, repartindo “deves e haveres”, nas suas equipas. Às tantas são os mesmos que andaram a indignar-se em público com os discursos de Trump mas levantam assim o seu próprio muro. Que tratam uma nação como um clube privado em que é reservado o direito de admissão pela casta e não pelo cumprimento das regras que todos, de dentro ou de fora, têm de cumprir. Ou que rejubilam quando algo de seu se transforma em património da humanidade.  
E depois há uma questão de memória colectiva. Parece-me que aqui somos, paradoxalmente ou talvez não, um conjunto de cidadãos que com a mesma inchada recordação de enaltecimento do que fomos no mundo em expansão há cinco séculos, esquecemos as vagas migratórias de um passado mais recente. E ao medo junta-se assim um novo-riquismo colectivo, o de quem esquece o período humilde da sua vida e rapidamente o substitui pela soberba de quem está bem na vida e mais ninguém a seguir poderá alcançar este bem.

Finalmente, e porque o exercício de me pôr na pele dos outros que costumo praticar me leva a tal, só será compreensível que se justifique esta inospitalidade se, ao medo que nos torna mesquinhos e pequeninos, se juntar a instabilidade crónica de um país economicamente débil. É que quem não tem para si, por muito bonzinho que se apregoe, por uma questão de sobrevivência deixa sair de si os instintos mais básicos e animalescos. Escusava era de andar-se a apregoar o impraticado. Mais vale cruzarem-se os braços e continuarem a queixar-se de que ninguém nos liga. Talvez um dia, como colectivo, neste dever de cidadania cresçamos. Porque, felizmente, vamos tendo indivíduos que se destacam, também neste aspecto, deste colectivo.

30.11.16

Manequim

E neste Outono a febre da silly season não desceu e surge agora uma nova actividade para quem participa empenhadamente nas redes sociais. É o chamado “desafio do manequim”, em tradução do original Mannequin Challenge. Consiste, este desafio, em fazer um vídeo onde um grupo de pessoas fica parado, em poses mais ou menos complexas, precisamente como manequins. A criatividade de muitos internautas levou a que o fenómeno ficasse famoso, replicado por famosos que alguns conhecem e, na busca ansiosa da originalidade no repetitivo que estes fenómenos têm, a dificuldade das posições encenadas foi aumentando. O efeito pode ser hilariante e quem o faz estará seguramente a divertir-se muito.
O que poucos saberão, mas eu informo de acordo com o pouco que investiguei por aí, é que o fenómeno deste mesmo Outono de 2016 já tem uma história e regras que, obviamente, dificilmente nestas (e noutras) coisas da vida se cumprem a rigor, e o vírus recria-se em mutações. E que também já tem versões paralelas em que, tal como nos mitos, pode passar-se do facto pessoal à verdade ritual. Pois fiquei então a saber, e partilho convosco, que a música de fundo destes vídeos deveria ser sempre a mesma, a de um duo chamado Rae Sremmurd, e se intitula “Black Beatles”, tendo até no videoclip que a divulga, ao minuto 1:02’, uma recriação da famosa travessia de passadeira dos Beatles, os originais, em Abbey Road. Parece que pode ter começado por um desafio a senhoras famosas, com o impulso da Lady Gaga em biquíni, mas que, entretanto, ultrapassou a obrigatoriedade da indumentária reduzida. Quem se interessa por cinema não pode evitar comparações com algumas cenas de Matrix entre outros filmes que utilizam esta figura de estilo, chamemos-lhe assim, para ajudar a contar uma história. Com tudo isto poderíamos pensar que a coisa já teria uns mesitos. Qual quê?! Começou em Outubro e, como qualquer epidemia, espalhou-se viralmente pela Internet chegando a muitos dos 50% da população mundial que lhe têm acesso. Pois, só 50% e nós que a usamos a acharmos já que somos o mundo todo…
O manequim, que é aquela espécie de boneco que representa uma figura humana, e que serve para estudos na área das artes plásticas ou para assentar trabalhos de costura, também pode ser o nome dado à pessoa que exibe modelos de costureiros, e tem dois sentidos figurados que, não sendo sinónimos, têm entre eles um ou outro lacinho de afinidade. Se se pode dizer de um vaidoso janota que é um manequim, também se aplica o termo a alguém que não tem vontade própria e pode ser, como uma marioneta, manipulado.

Ora este fenómeno em que todos se transformam em manequins para aparecer, numa pequena e inócua vaidade, nas redes de (quase) toda a gente, faz-me é pensar naqueles que, mudos e quedos que nem manequins, e pelo contrário já não tão inócuos, nem sendo na brincadeira, parecem esperar a melhor oportunidade para saltar para a ribalta e atravessar-se no caminho de alguém, e que, outro alguém manipula com vontade e interesses próprios, lhe aponta as luzes, faça ouvir-se a música e o que vier soará sempre a uma grandessíssima encenação disfarçada de improviso, acaso ou até causa-efeito natural. Esse improviso saudável que arranca o riso ou até só o sorriso e que o Mannequin Challenge tem, na rapidez com que se espalhou, e que provavelmente e à semelhança de outros poderá vir a servir alguma causa, essa sim, socialmente relevante, como o do menos artístico desafio do “banho gelado”. Parecem, estas brincadeiras, tão mais para levar a sério que as outras que se fazem para dar um ar sério… 

22.11.16

Dedo-duro

Saiu na semana passada um estudo que revela a corrupção como o terceiro maior problema de Portugal para os portugueses, apenas superada pelos problemas no emprego e na economia. Confesso que estranhei só um pouco, sobretudo por aparecer acima das sempre estridentes notícias em torno das falhas na saúde, na educação, nos salários e pensões. Desconhecendo as ferramentas e metodologias usadas no estudo e presumindo que, tendo sido dados do barómetro da associação cívica «Transparência e Integridade», o termo corrupção e as suas diferentes percepções tivessem sido uma constante em todos os tipos de questões colocadas, a minha opinião arrisca a ser apenas e só isso mesmo. Uma opinião a partir dos dados que, na transparência com que foram divulgados na comunicação social, terão na opinião pública um efeito que, muito sinceramente, me parece ser zero para ajudar a resolver o problema. Sem menosprezar o facto de, bem entendido, se falar no assunto para além dos sketches humorísticos, que existem um pouco por todo o mundo sobre o assunto, ser importante.   
Diz que mais de 80% dos portugueses crê que no Estado e os que detêm cargos políticos são corrompidos por poderes económicos, uma corrupção por isso sistémica em que os mecanismos das instituições, que deviam estar ao serviço do chamado interesse público, estão distorcidos para favorecer interesses privados. Pensa-se sobretudo nos milhões de euros que, todos os anos, os governos investem em criação e melhoramento de estruturas públicas, das estradas às escolas, dos hospitais à distribuição de energia, criando a ocasião para…a corrupção.
Esta associação cívica, que integra uma rede internacional, propõe algumas ferramentas para corrigir ou prevenir esta corrupção que aflige os portugueses. Essas ferramentas são então os chamados “pactos de integridade”. Estes constituem-se como acordos entre uma agência governamental que abre concursos para um contrato e as empresas licitantes, em que se comprometem a abster-se da prática de, por exemplo, suborno e conluio, para que o contrato vá para a frente. Os “pactos de integridade”, visando garantir a prestação de contas, também incluem um sistema de monitorização normalmente liderado por grupos da sociedade civil.
A mim parece-me tudo muito bem, inclusivamente até a preocupação da secção portuguesa em proteger quem denuncie estas práticas sem ter de correr riscos de vida, ou até só passar por “bufo” ou traidor. Mas nos pequeninos momentos em que, na vida de todos nós, vamos podendo assistir à incubação destas práticas em atitudes que, a vários níveis, simulam comportamentos regulares não o sendo, ou que fecham os olhos a irregularidades sem justificação legalmente aceite, parece-me que quem os denuncie recebe em ricochete o “elogio” de dedo-duro e não é considerado como o cidadão activo no combate à corrupção e em defesa da integridade com a qual, neste estudo, todos parecem tão preocupados. É que, ao fim e ao cabo, fechar os olhos dá muito menos trabalho do que levantar um dedo. Parece.

15.11.16

The Day After

Desde a eleição de Trump para presidente dos EUA já muita tinta correu e muitas vozes se ouviram. Das que têm uma noção selectiva da questão do que são as regras estabelecidas por cada Estado democrático nas eleições, e nas quais não me revejo, até àquelas que do outro lado do Atlântico viverão com a que é, simbolicamente, a figura que representa o seu país e que expressam o seu desconforto e legitimamente se sentem zangados com quem, também legitimamente, o escolheu.
No day after, expressão que passámos a usar para falar do que vem a seguir às grandes hecatombes, naturalmente e porque na Natureza também humana se passa assim, tudo se irá acalmando e adaptando às novas circunstâncias com a ajuda do Tempo e da intervenção da razão humana unida com propósitos comuns. E isto não é pessimismo derrotista nem optimismo alienante, é realismo que dá muito mais trabalho e não se compadece com leis do menor esforço. Importante é que se apurem as diversas causas para explicar o fenómeno, compará-lo com os que o antecederam na linha do Tempo e os que poderão estar a incubar em linhas que se cruzam a definir o Mapa-mundi.
Para além daqueles muitos norte-americanos que não aceitam, nem simbolicamente, que Trump os represente espero, sinceramente, que os que convictamente o escolheram como o melhor para o fazer, também saiam decepcionados. Na melhor das hipóteses, reafirmo eu. Vai cumprir às instituições, e às organizações partidárias que as alimentam, defender a democracia sem esquecer, acima de tudo, o estado que alcançámos de progresso a vários níveis no bem-estar da Humanidade. E se o fizerem, aquilo que Trump utilizou para vender às massas mais sugestionáveis porque mais indolentes a usar a faculdade da razão que têm para prever o futuro e fazer uso da empatia no que esta significa na capacidade de nos pormos no lugar dos outros, ou seja aquilo que foram sobretudo enormes disparates, Trump acabará, espero eu, por esquecê-los. Julgo que os Republicanos não quererão confundir-se com Trump e, a concretizá-lo, restar-lhe-á cumprir uma outra agenda mais subtil e eficaz, e não menos perigosa no meu entender, com os resultados no passado para os cidadãos dos regimes, de todos os lados, totalitaristas. A atenção dos partidos com a realidade da polis onde actuam, lá como cá, bem como a relação da comunicação social com os cidadãos, terão de ser repensadas. É que já não há lugar, como o sentiu Hillary, para só mais uma vez voltar a usar encenações e guiões e adereços para representar uma actuação e preocupação com o bem-comum que, afinal, apenas serve a promoção ou corporativa ou, pior ainda, pessoal.

Se é certo que há pessoas que fazem a diferença, isso é diferente de qualquer um, fazendo-se passar por um ser excepcional, ser essa diferença. Se também me parece continuar muito razoável a expressão de que “são as pessoas que fazem os lugares e não os lugares que fazem as pessoas”, resta-me desejar aos norte-americanos com responsabilidade que façam com que esse lugar da maior e mais antiga democracia do Mundo, que é o do Presidente, saiba moldar a pessoa que o ocupará.

8.11.16

Orçamentos

Orçamentos são documentos que servem para gerir o dinheiro que se tem na aplicação daquilo que se faz ou quer fazer. Quando se quer fazer mais do que o dinheiro que se tem ou se pensa vir a ter, há que ir buscar fora, pedindo emprestado e contraindo dívida que, de uma maneira ou de outra, tem de se prever como pagar. Nesta gestão, é importante saber quanto dinheiro se tem e se quer ter para fazer uso dele e, acima de tudo quando se gere o dinheiro de todos os que contribuem pagando taxas e impostos, onde é que se vai usar o dinheiro revertendo em benefício desses todos. Tirando isto, um orçamento de um organismo público e sem fins lucrativos, é um instrumento de alta precisão na área dos números e das contas, que implica que no final, entre os ganhos e as despesas, tenha que dar zero. Se não der para cima, há quem opte por redistribuir à última hora em actividades ou materiais que, não tendo sido necessários naquele período, possam talvez vir a sê-lo no período seguinte. Se não der para baixo, ou seja se afinal nem com dinheiro próprio nem com emprestado consigo fazer face a todas as despesas, haverá quem fique sem ser pago ou projectos que não chegam a avançar ou concluir-se nesse ano. Há depois toda uma série de formas para resolver estas questões, tirando de um lado e pondo do outro, imaginando mais ganhos sabe-se lá onde, e as contas lá se fazem para dar, imagine-se, o tal zero.
Um orçamento torna-se, no sector dos assuntos da política, a metáfora das boas contas. Aprovar um orçamento é poder governar aplicando, então, os dinheiros da maneira como se propôs. Chumbar um orçamento significa ter de ir gerindo mês a mês a mesma quantidade de dinheiro do período antecedente, sem perspectivar para além do mês seguinte. Chumbar um orçamento torna-se, em termos práticos, no retirar sem ser pela eleição democrática a possibilidade de quem está no governo governar. E, por tudo isto, discute-se o orçamento que se quer aprovado para se dizer que se está a ser rigoroso, cumpridor, transparente, certinho. Ora isto é o máximo que se pode dizer de um governante ou candidato a tal!
Mostrar as contas certinhas ou acusar de que as mesmas nunca passarão a “prova dos nove” - numa linguagem que o cidadão comum (aquele mesmo a quem vão servir os resultados de aplicação dessas continhas) dificilmente entenderá e sobre a qual parece que se podem fazer tantas leituras como as de uma obra-prima literária - é o mesmo que dizer que se discute o orçamento para se discutir a capacidade de quem o apresenta. Como se as contas e as verbas, em linguagem de números arrumados em rubricas, fossem a tradução de auscultações ao que está bem ou mal na vida daqueles para quem se gere. E quando a auscultação também se faz nas urnas, para além de um trabalho diário que deve ser o de qualquer político a tempo inteiro, na governação ou na oposição, sobretudo o eleito mas também o nomeado para cumprir o que os escrutinados pelo voto se comprometeram a fazer, então percebemos que a discussão pública de um orçamento, que pode ter momentos de discussão interna nada fáceis, é o momento de palco, arena ou ringue, do combate aceso entre adversários ou, como também acontece, entre todos, mesmo adversários entre si, contra um outro que é o alvo a abater.
Em toda a minha vida já votei vários orçamentos, mas os oito orçamentos municipais que já levo em cima, e que até no meu mundo académico corresponderiam a uma licenciatura com mestrado integrado mais parte do curso de doutoramento, retiraram-me qualquer veleidade em sentir-me uma licenciada em tal. Frequentei mas não obtive um grau que deixo para ser exercido a quem tenha a pasta e a equipa das finanças. E foi também por isso que aprendi nos sete anos que levo de vereadora que, no último dia deste mês de Outubro, votei o orçamento municipal de Évora afirmando, e cito-me: «Avaliar um orçamento acaba por ser avaliar uma proposta que, obviamente, nunca se pautará por intenções que não sejam benévolas, até mesmo quando não se concretizam.» Para terminar dizendo que iríamos «mais uma vez, dar o benefício da dúvida ao orçamento deste ano abstendo-nos. Contrariar por contrariar um orçamento seria só protestar por protestar, o que não faz parte da nossa postura, e não deve obstaculizar, por só mais um ano, e um ano de eleições, a que a CDU cumpra todas as melhorias a que se propôs e que prometeu aos Eborenses.».

2.11.16

Santinhos

Uma vez que a crónica vai para o ar no dia de Todos-os-Santos, ocorreu-me que aqui estaria uma palavra também já caída em certos usos no domínio da metáfora. Os preceitos canónicos dizem que, de morto a santo, têm de decorrer alguns anos, se bem que o prazo tenha vindo a encolher com a velocidade furiosa pela qual os tempos contemporâneos se pautam e, em menos de um ai, vi gente que foi da televisão ao panteão.
Fora ou dentro da religião, o santo é e será sempre sinónimo de puro, perfeito, incorruptível, verdadeiro, autêntico, sincero, imaculado, impecável, perfeito, e por aí fora. E quer-me também parecer que, ou se acumulam os adjectivos ou, tenham paciência (de santo até!) e é-se apenas uma meia-dose de santo. Bem ou mal servida, vai depender do tempo que convivamos com tal personagem e percebamos se essa parte não é compensada por outra, a que cai no domínio oposto, e que talvez seja a dos endemoninhados.
Quando o termo se transforma em metáfora vai por aí fora a dessacralizar-se até à banalidade e, por vezes, ganha até o carinhoso diminutivo. E não se iludam porque quem chama outro ou outra de santo ou santinha é porque o milagre – com muitas aspas – foi em seu benefício próprio e não para bem da humanidade. Mais do que virtudes heroicas em geral, o santinho fez-me foi um grande favor.
Claro que também aplicamos o termo às crianças, sem modos interesseiros em princípio. Mas até aí quem de facto sai a lucrar parece ser quem tem de conviver com esse tipo de cachopos. E aliás, quando usado com ironia, chamar a um adulto santinho ou santinha é um tudo nada insultuoso. Sendo que, no feminino, sobe, em certas circunstâncias, uns escalões na régua do escárnio e maldizer. 

Beatificação natural, diria, é a que no entanto sucede quando os que nos são próximos e de quem gostamos mesmo muito partem para sempre. Que, enfim, é muito tempo mas onde todos acabaremos por chegar. É a beatificação da memória selectiva, a que é filtrada pelo coração que é a parte do corpo onde guardamos todas as emoções e onde também guardamos os corações que pararam. Para sempre. Sem ironias e com a dor que nos faz às vezes esquecer que afinal é tudo só uma metáfora, isso do lugar que é o coração. 

25.10.16

Reality show(s)?

Na semana que passou marcou-me a perseguição policial “à filme” no mundo rural português. Mas também certas intervenções de quem por obrigação profere opinião em público através da apreciação de um dos documentos mais labiríntico que deve haver na administração pública, inflamando o que, se se concretizassem boatos, podia ter sido um descalabro mas afinal não foi. Às palavras da ministra Francisca Van Dunem fui buscar o mote para esta crónica que fala de realidade e de show e do que acontece quando as duas palavras se juntam.
O reality-show é um género televisivo que vai buscar partes à informação e ao entretenimento, ao drama e ao documentário, à ficção e à realidade. O termo, aplicou-o a senhora ministra ao que não devia ser a forma como está a ser tratado o caso da “fuga de Pedro Dias”, já que o conceito se estendeu e, actualmente, parece tornar-se metáfora de tudo o que tendo a ver com a realidade não deixa de ser apresentado como um espectáculo de entretenimento. No fundo, na metaforização do conceito passa-se um pouco o inverso do que acontece efectivamente num reality-show, onde se cria a ilusão de o espectador participar mesmo e não ficar apenas de fora passivamente. No uso metafórico, é quando o que é mostrado do domínio do privado ou do restrito é como se fosse público e servisse para assistirmos de camarote, testemunhas não participantes.
O sucesso de audiências dos reality-show será também consequência do facto de o cidadão anónimo se ver retratado no ecrã da televisão onde, até há um par de décadas pelo menos, só apareciam especialistas, políticos ou celebridades. É que o que atrai neste tipo de programa de televisão é a imagem de uma autenticidade e genuinidade, em que os que ocupam o ecrã sejam eles próprios e ganhem a simpatia dos que do outro lado com eles se identifiquem e até possam, em alguns casos, interferir no próprio programa. Este é um modelo em que outros, como os de opinião pública, vão buscar por vezes inspiração, com a participação em antena chamada aberta. No fundo, os reality-show são um elogio da banalidade.
Se devidamente classificados e confinados a determinados horários ou canais de televisão, não nos sentimos apanhados por este tipo de programa se com ele nos cruzarmos. Triste é quando os assuntos que merecem discussão séria – e um orçamento é-o para os partidos e para as instituições e indivíduos, tal como a justiça na morte de homem tem de ser para uma sociedade civilizada – são tratados por gente que o devia entender assim mesmo, como assunto sério, se de um reality-show se tratasse.
Não falo dos comentários em redes sociais, que ainda valem o que valem. Falo de declarações de gente eleita ou escolhida para esclarecer cidadãos, com conhecimento privilegiado que deveria ter, em assuntos sérios e que afinal entra na mesma onda de uma popular genuinidade que não o é realmente. Este estilo reality-show, a estender-se a outros campos que não o da TV entretenimento, vem afinal confirmar que as estatísticas, os comentários, as análises e as entrevistas não chegam para se explicar o mundo em que vivemos e usa-se esta espécie de proximidade por cabo ou TDT para apregoar a vida e as emoções das pessoas, as desilusões e as ambições, partilhando sentimentos sobre assuntos sérios como se de raciocínios em rascunho se tratassem e tentando entrar, de forma popularucha, nessas “comunidades de compaixão” que são os telespectadores de reality-shows. Não sei o que será pior: se um reality-show se o show da realidade de alguns responsáveis por esclarecer a opinião pública? Não fosse o interesse nacional ridiculamente colado numa outra metáfora, e estava quase a pedir que viesse o diabo escolher…

18.10.16

Uma questão de calçado

Esta crónica é sobre a questão táxis vs Uber e companhia, um assunto que aquece aqui agora, que já pôs outras capitais de pernas para o ar e que revela vários problemas da contemporaneidade, por um lado, e da fragilidade intergeracional de algumas mentalidades, inclusivamente colectivas. Formar opinião sobre este assunto, como de resto com outros que nos dizem tangencialmente respeito, implica “calçarmos os sapatos do outro”, uma metáfora comum, por vezes até poética, sem deixar de ser política.
O que assistimos numa suposta marcha-lenta de taxistas da passada semana foi a uma dupla sabotagem. Uma sabotagem ao trabalho de uma empresa exclusivamente privada, com fins lucrativos e sem benefícios próprios das que prestam serviço público, e que ao contrário dos táxis segue as regras do mercado, tão desregrado. Foi uma sabotagem com agressões reais a funcionários das empresas Uber ou Cabify no aeroporto Humberto Delgado. A outra sabotagem foi uma auto-sabotagem. Uma marcha que tinha um determinado percurso preparado dentro das regras, viu-se sabotada pelos marchantes que revelaram, no mínimo e para não repetir o que não devia ter nunca saído da boca de gente que lida com público, uma profunda ignorância sobre as regras básicas da cidadania, quer estas se refiram a comportamentos em sociedade quer da forma como actuam as corporações, os seus representantes e defensores nos órgãos próprios, em regimes não ditatoriais nem monopolistas.
Pareceu-me que mais do que a marcha-lenta, simbólica em várias formas de contestação que pretendam reunir simpatizantes com as causas, ficará para o futuro o efeito desta auto-sabotagem. Talvez até leve a alterações no relacionamento dos que, por várias razões e com interesses diferentes, se puseram à partida e de forma irredutível do lado dos que, afinal, só conseguiram passar a ideia de quererem continuar a ser um monopólio. E sim falo de um partido político que oscila entre princípios que umas vezes, sobretudo quando está no poder, flexibiliza e, noutros, quando representa uma espécie de acionista de quem interessa manter a quota, se mostra tão firme. Uma bota que vou querer ver como vai descalçar.
De volta ao calçado, então, importa recordar que a palavra sabotagem vem precisamente de um movimento de contestação que, para lá de todo o direito que num estado livre e democrático é até saudável que se possa manifestar, revela uma desadequação ao que, no fundo, é mesmo o interesse geral de acompanhar o progresso da humanidade, em nome de uma instalada posição conquistada. Sabotagem vem da palavra francesa sabot que designa precisamente um tipo de calçado, as socas de madeira. Os episódios que lhe deram origem têm uma interessante semelhança, com a relativa distância do tempo, com os desta marcha-lenta. É que na Europa Central da revolução industrial os trabalhadores oriundos das zonas rurais que foram trabalhar para as fábricas e se aperceberam de que a máquina iria substituir o trabalho braçal para que estavam preparados e onde ganhavam em competência usavam as suas socas de madeira para encravar as máquinas e parar a produção. Assuntos assim tratados com os pés normalmente não têm grande efeito para os que os praticam. A não ser no futebol, claro, mas até aí é preciso usar bem a cabeça. 

11.10.16

Os ninhos de vespas

A proposta e incentivo de nomeação directa de António Guterres para o mais alto cargo da ONU foi uma boa notícia para Portugal e para o Mundo. Foi um caminho longo bem trilhado, avaliando as próprias competências e disposição para exercer os cargos a que se propôs, mesmo no passado. Jogando o jogo pelas regras certas e claras de servir na política até onde lhe fosse possível, sem atingir a incompetência com dano para aqueles a quem sempre teve como princípio isso mesmo, servir. Está de parabéns e, na minha opinião pessoal, terá condições para desempenhar muito bem um papel que, podendo trazer diferenças, poucas mudanças poderá fazer ao rumo da Humanidade. Se sendo poucas forem importantes, já a Humanidade terá também ganho com a sua eleição, ou melhor nomeação.
Ao longo do processo incomodou-me, mas ainda assim não ao ponto de me encanitar, a conversa à volta de “ser a vez de uma mulher”. Primeiro, porque até podia ser verdade, se as qualidades daquelas mulheres equivalessem às dos seus concorrentes homens. Não que eu seja contra as quotas de género, que poderão até dar para um e outro lado, em lugares de gestão. Até por uma questão de representação da comunidade que se gere. Mas depois, e sobretudo, porque isso deu logo oportunidade a uma tentativa de golpada, estava bom de ver, por quem achava que uma questão de género se resolve assim, só porque sim. Foi bem reveladora de uma forma atabalhoada de lidar com coisas sérias da política maior, e ainda mais de uma manipulação, ou tentativa de, em nome de uma espécie de populismo que embarca, lá está, nisto de “ser a vez de uma mulher”. E ter havido uma mulher a prestar-se a isso foi, em meu entender, degradante e sinal de um retrocesso num caminho progressista em que a igualdade de género integrasse as rotinas dos povos.
Não sendo eu, por exemplo, particularmente apreciadora da personalidade de Hillary Clinton, teria preferido Bernie Sanders do lado dos Democratas, não se pode dizer que, com mais ou menos rasteiras que possam ter sido cometidas pelo seu aparelho, não esteja a levar o seu trilho com todas as etapas normais de um candidato, sendo uma candidata. Há referências ao género, claro, como aos seus assuntos privados que se tornaram públicos. Como houve à cor da pele e origens muçulmanas de Obama. Como há a de mulherengo-misógino e espalhafatoso novo-riquismo de Trump. Para alguns, estes detalhes serão condicionantes para não merecerem o cargo e, apesar dos epítetos que atribuí a Donald, usá-los é tão mau como dizer que só por ser mulher terá de ser Clinton a suceder a Obama.

Passes como este de Kristalina Georgieva, a que Merkel também não é alheia, põem-me logo a imaginar um ambiente em que uma espécie de vespa-rainha se predispõe, põe e dispõe, a usar todos os seus recursos, inclusive os intelectuais e que parecem passar a ser definidores de género, ao serviço de um enxame, até misto, da mesma espécie e com uma empolada e inegável ambição. A ambição que é, também, uma característica óbvia e não forçosamente condenável de alguém que pretenda exercer um cargo que, mais do que direitos, traz sobretudo enormes responsabilidades para as quais se tem de ter mais competências dos que as definidas pelo número de cromossomas X ou Y. Gente assim não presta um bom serviço ao género e, muito menos, à espécie humana. Podem bem construir o seu ninho de vespas e manter à distância os que não se querem picar.

4.10.16

Imitações, limitações e orgulho sem pecado

Se os animais só nesta legislatura em Portugal passaram a ter uma voz humana assumida na casa da Democracia que lhes traduz (será que traduz mesmo?) as preocupações com a legislação de direitos e deveres (será que é mesmo isto?), já há muito que cumprem a função de símbolo, também na expressão da linguagem verbal através da metáfora. Quer-me cá parecer, pois, que nesta série de crónicas, a bicharada aparecerá por aqui amiúde. E hoje cruzei-me já com o macaco, esse parente afastado da espécie humana, com quem partilhamos mais características de comportamentos do que poderíamos imaginar quando apenas nos fixamos em características físicas, e que, como tal, nada têm a ver com o insultuoso, como é mais corriqueiramente usado o nome do bicharoco entre gente de tão mau coração como juízo.
Ser-se macaco é muitas vezes ser-se espertalhão, com tudo o que o aumentativo acrescenta a esta qualidade. E ser-se macaco de imitação, para além de algum incómodo que possa causar aos imitados, só deveria ser insulto se se ultrapassasse a honestidade e deixasse de ser o que de bom tal espécie metafórica animal até pode ter: toda uma escola de referências que se repetem e, como tal, melhoram, enriquecem e aumentam o nível de determinadas práticas. Os imitados até podem sentir que contribuíram, por exemplo, para melhorar um determinado nível de opinião ou forma de a exprimir. E isso só pode ser bom, parece-me. O diabo do detalhe é quando a imitação passa ao lado disto. Em circunstâncias como as do mundo das profissões, dos negócios ou até da procura de emprego, pode chegar-se a estragar a imagem simpática do macaquito.
Encontrei por aí, numa pesquisa de cliques, não apenas um pequeno dicionário de metáforas de animais usadas em entrevistas de emprego, como referências destas no mundo dos negócios. E fiquei a saber que, se sobre um entrevistado se deixar passar o nome macaco, a coisa pode não estar a correr mal, já que um macaco de imitação pode ser especialmente importante em trabalhos repetitivos. Mas como não há bela sem senão, noutro lugar alertava-se para um perigo, a propósito do chamado benchmarking. É que este é uma forma de imitação e uma de muitas estratégias para o auto-aperfeiçoamento em que para cada área a ser melhorada se tenta encontrar um modelo a ser seguido e se tente imitá-lo, mas que se arrisca a ser usada de forma incorrecta. Isso pode acontecer quando se copiam cegamente processos e ideias inadequados, fora de seu contexto original; ou quando se faz uma cópia mal acabada, pouco parecida com o original.

E há por aí tanto por onde escolher de casos em que a popularidade depressa se acaba quando o original se esgota e o imitador afinal não passava disso mesmo… Uma pena, porque se o princípio não é mau, partilhando vários orgulhos entre feiticeiro e seu aprendiz, acaba por não haver vantagens para quem com esta espécie mais incompetente tente aprender alguma coisa. E não sei se, tirando a relação intergeracional que leva à sobrevivência da espécie, numa aldeia só de macacos os da mesma geração ganham alguma coisa em imitar-se uns aos outros. O que é uma pena e só diverte quem está de fora a apreciar as macaquices. 

27.9.16

Oportunidades e comboios

Um assunto de comboios tem estado a apoquentar os moradores junto à antiga linha ferroviária de Évora. Um projeto estratégico para o País que, aparentemente, teria de incluir esse atravessamento, num processo por agora, também aparentemente, mais calmo, mas em que a intransigência de uns parecia estar a levar à resistência exacerbada de outros que, não sendo muitos, perceberam muito bem o perigo da situação. Já assumi a minha posição publicamente e declarei o que tinha a declarar sobre o assunto em concreto, mas não queria deixar de falar um pouco dessa expressão que, das duas umas, ou reflecte uma atitude ou se reflecte numa agenda própria de alguns. Falo da expressão “ficar a ver passar os comboios”.
Usada para significar que se perde uma oportunidade, o seu porquê e de onde vem não consegui apurar. Seguramente que em português a expressão não pode ter nascido antes da segunda metade do século XIX ou, se nasceu, já poderia ter sido por indignação dos que queriam ver os comboios a circular em Portugal mas não havia meio de isso acontecer. Parece que as primeiras tentativas terão sido de 1840, a obra só arrancou em 1853 e o primeiro troço, Lisboa-Carregado, terá ficado concluído em 1856, há 160 anos portanto. Também poderá ser uma tradução das expressões em francês ou inglês, que falam em “perder o barco”, e ser tão antiga como a época dos Descobrimentos com uma actualização oitocentista. Curiosa é a expressão que funciona como onomatopeia e, portanto, serve para imitar o ruído do comboio - «pouca terra, pouca terra» - a que se junta a onomatopeia “u-uuu”.
Entre uma e outra expressão, não consigo deixar de imaginar que se a primeira se aplica aos que ficam apeados e parados, a outra parece entoada por quem lá vai dentro, a fazer quilómetros atrás de quilómetros. Sem emitir juízos de valor, pergunto-me sempre quem será mais feliz: se o que escolhe acomodar-se, se o que não sossega sem mudanças constantes. É que os primeiros podem acomodar-se porque, de facto, conseguiram o ambiente ideal para o fazer e essa comodidade é a oportunidade que agarram. E os outros podem sempre, inconformados, desejar o melhor que não encontram por onde passam e não ficam, não sem antes tentarem esse melhor para aquele lugar. Mais uma vez, em meu entender, é o tempo, a consciência que dele temos, que nos faz criar ou aproveitar oportunidades. Quando o fazemos só para nós e em prejuízo dos outros até lhe chamamos oportunismo.
Em Évora, nos finais dos anos 90 - início deste século, quando um pouco por todo o país se erguiam centros culturais, deve-se ter achado que não eram precisos e nenhum se fez ou se recuperou um salão que, tão central quanto em ruínas, ainda para ali está. Em Évora, quando um pouco por todo o país, nasciam centros comerciais com cinemas, por aqui chegava aquele que ficava ali ao canto e que, de tão esconso, não atraía espectadores. Em Évora, quando em todo o país qualquer sede de concelho já tinha um sistema de águas que evitava os longos verões sem pinga na torneira, o sistema encontrado, para o assunto ser rapidamente resolvido, que foi mas mais tarde, sai caro aos bolsos da autarquia num “casamento” com parceiros que ainda anda a correr mal. E em Évora, para se ter uma pista de atletismo foi preciso um projecto que começou com uns localmente, que continuou com outros centralmente, e se concluiu de novo com os primeiros e os outros, e a que se juntaram mais outros, localmente, para cortar a fita e assumir a gestão.
Um cenário político-partidário destes, em que todos procuram ser os que fizeram isto ou aquilo, parece acompanhar com «pouca terra, pouca terra» a atitude proactiva que afinal só pode beneficiar Évora. Não se pode é promover durante anos essa atitude de ficar sossegadito a ver passar os comboios, agitando bandeirinhas a exigir isto e aquilo, e depois querer que quem se habituou ao “poucochito” que lhe deram mas a refilar muito por mais e melhor, saiba fazer mais do que isso. Mas isto sou eu a pensar, que nem todos os comboios se apanham só porque sim e, retomando a referência da expressão nas outras línguas, há outra expressão que nos ensina o valor do tempo e da oportunidade: «há mais marés que marinheiros».

20.9.16

Metaforizar

É um prazer voltar às crónicas em que, da letra à voz, a Rádio Diana me vai dando a oportunidade de emitir opinião e, talvez até, fazer opinião junto daqueles que me ouvem ou lêem com toda a paciência. Tenho seguido uma norma, pessoal e possivelmente intransmissível, de submeter as séries de crónicas a um motivo constante, à volta do qual surgem os temas, ou assim os suscitam as circunstâncias, e que me vão levando a partilhar a minha opinião. Já o fiz com ditados populares, com verbos, com estrangeirismos, com citações de Vergílio Ferreira. Nesta série pensei na metáfora como pólo agregador de ideias, argumentos, lógicas discursivas. E talvez seja por isso interessante começar por ajustar o vastíssimo “mundo da metáfora”, muito conhecido e esmiuçado para os relativamente poucos que trabalham as teorias e a filosofia da linguagem, ao mundo dos cidadãos que entre as ondas hertzianas e os bytes vão apanhando as palavras de que são feitas estas, e quaisquer outras, crónicas de opinião.
A metáfora é talvez o recurso expressivo que a linguagem humana mais utiliza. Por vezes até inconscientemente e, pasme-se, por falta de vocabulário próprio para precisar uma ideia ou uma definição. Isso acontece muito com as crianças que, com o seu ainda pequeno dicionário, lançam mão de imagens que parecem até poesia a sério, intencional. É que a metáfora consiste, num sentido lato, em usar-se um termo, ou uma expressão, ou até mesmo uma ideia – quando o nível de elaboração do discurso é mais estável e consolidado – com o sentido de outro termo, expressão ou ideia. Obviamente que se mantém uma relação de semelhança, fazendo-se o transporte de um sentido para o outro – num sentido para a criar, no outro para a decifrar - ainda que por vezes difícil de descobrir, gerando verdadeiros quebra-cabeças a quem queira entender exactamente o que se está a querer dizer. Aliás, começamos por aprender que a metáfora é, e simplificando, uma comparação sem o “como”. O que a partir daqui se pode fazer é que vai complicando a identificação de vários recursos expressivos que se podem distinguir com base nesta relação simples ou que simplificamos. Uma metáfora é uma imagem e nós sabemos como ela é tão importante.
Mas o que é verdadeiramente interessante para aqui, em meu entender, é o facto de a metáfora ser sempre uma representação simbólica de alguma coisa. E como tal, ela representa, nas dinâmicas próprias de todas as culturas, formas de regular atitudes e comportamentos próprios de grupos, dos mais locais aos mais globais. Muitas vezes, em diferentes línguas mas em contextos e referências semelhantes, utilizam-se expressões metafóricas muito diferentes, que até se tornaram expressões idiomáticas, completamente intraduzíveis, pelo menos à letra. De tão banalizada a sua utilização este e outro tipo de metáforas podem até considerar-se metáforas mortas, uma vez que a intenção do uso como recurso estilístico já lá não está. Mas normalmente contam histórias muito interessantes, também.    
Ao longo desta série de crónicas que nos levarão até às próximas eleições autárquicas, a propósito de temas desta e de outras actualidades, não haverá com certeza falta de metáforas, mais ou menos óbvias, que se aplicarão a várias circunstâncias. Como estamos, por exemplo, a assistir a esta da “geringonça”. O tempo, sempre o tempo acima do que nós fazemos, se encarregará de dizer se a metáfora, inicialmente tão negativa, não se transformará, quem sabe, em sinónimo de “coisa que funciona bem”. Ou se palavras que nada têm de metafórico, como informação por exemplo, não estão cá no lugar de propaganda e não deva ser lida como nos estando a “atirar-nos areia para os olhos”. E isto para arranharmos desde já uma metáfora, ainda que com uma imagem sensorial um tanto dolorosa que, de certa forma, nos alerta para uma atitude defensiva. 

12.7.16

Balanços

Ainda na ressaca do maior espectáculo desportivo de uma Europa politicamente com os níveis de fairplay tão rasteiros, chegamos ao fim de mais uma série de crónicas. É, pois, altura de alguns balanços. Foi uma série de crónicas marcada por um dos acontecimentos mais significativos do panorama cultural português, ou não tivesse, por exemplo, a honra de ter tido como seu principal comissário Eduardo Lourenço, e que foram as comemorações do centenário de nascimento de Vergílio Ferreira. Évora é indelével da sua vida e importava Évora não o esquecer. Uma vida que ficou também, e para todos os que sejam ensinados a chegar-lhe, na sua enorme obra filosófica e literária. E os que lhe reconhecem isto mesmo festejaram-no, que foi o que também fez a Rádio Diana com esta série de crónicas que utilizou, impreterível e semanalmente como inspiração, citações suas.
Foi o ano em que a nível nacional, as Esquerdas se uniram a um Partido que não é, de certeza, de Direita para permitir um Governo a que, à falta de nome para surpresa tal, ganhou o de Geringonça, num baptismo que acabou por se tornar carinhoso quando, no início, parecia querer fadar à nascença para o insucesso. E ela está na mão de alguns, dos verdadeiros “engenhocas” que sabem da coisa, mas também dos que fazem que sabem mas não atrapalham, e dos perigosos, os que poderão arrumá-la a um canto qual Bela Adormecida, e que são os que achando que é mais do mesmo não largam os velhos paradigmas de fazer política à medida de interesses próprios e não num prêt-à-porter que a Democracia, com todos os seus defeitos, nos oferece. Uma situação que, esses mesmos profetas demagogos da desgraça que querem meter no mesmo saco três forças políticas com identidades diferentes, até como as duas a que geralmente pertencem tais profetas; uma situação que localmente não faz nem uns ficarem mais rubros para ganharem votos, nem outros empalidecerem só para os manterem, mas sim porque isto de estar no governo fia mais fino e afina por outro diapasão.
A avaliação, que é o que normalmente acontece em dia de eleições, terá de ser não entre promessas vagas do que será feito mas na atenção às atitudes da responsabilidade que são exercer o poder ou estar na oposição. E os Portugueses, como os Eborenses aliás, talvez devessem ficar mais atentos efectivamente aos comportamentos não só dos que governaram e agora se opõem, como dos que antes se opuseram e agora governam. E que dessa atenção pudessem concluir o que quem é governado, e não os que militam nuns e noutros de forma particular, e mesmo natural no que toca a ter uma agenda para o sucesso de uns ou outros, entendam como melhores para ser governo ou oposição.    

Enfim, a crónica já vai longa e ficaríamos aqui o resto do dia a falar disto e daquilo, como num serão quente e quieto desses que acontecem no interior do nosso país, de Norte a Sul. E não gostava de encerrar a série sem, pelos afectos, esses que também contaminaram a versão “para o Povo e para as Criancinhas” de fazer política e têm no novo PR um ícone, escolher uma citação de Vergílio que, dizendo respeito ao íntimo, põe a nú a falácia das palavras transformadas em metáforas mortas que nos tentam enformar os neurónios e manter-nos sossegadinhos dentro da caixa. Escreveu um dia uma pergunta de que gostei muito e me ensina a ir fazendo balanços de vida que, como todas as outras e as dos outros, quantos mais princípios e fins tiver mais aprendizagens nos proporciona.  E assim me despeço, citando: «Se não há amor como o primeiro, porque é que ele não é o último?».

5.7.16

Exames

Está na altura de lançar pautas e apeteceu-me falar de exames, até a pensar nas práticas de avaliação a que, actualmente, somos todos tão chamados a fazer para escrutinar medidas e condicionar, com escolhas ou até mesmo com outro tipo de pressões, aqueles que exercem cargos de gestão e direcção. O que, diga-se de passagem, testa muito mais a resistência do que outra qualquer competência, eventualmente até mais benéfica para aqueles e aquilo que se gere ou dirige.
Aprendi a pensar que os momentos de avaliação são uma espécie de competição individual para a qual treinamos, mais ou menos afincadamente, e cruzei-me várias vezes com alunos que eram muito melhores nos treinos do que nos resultados que obtinham nas competições. Daí que o treino seja, ao longo de um processo de construção e evolução, de facto o principal. Não com vista ao exame, mas como verdadeira intenção de formar essas pessoas. Talvez seja por isso que faço tudo o que está ao meu alcance para evitar que os alunos vão a exame, preferindo que estejam nas aulas e possamos puxar uns pelos outros.
Se também me parece óbvio agora, ao fim de umas décadas de vida, que os resultados acontecem muito mais devido ao trabalho do que à sorte, apesar de haver momentos de sorte, porque os há, que também deram muito trabalho, a satisfação pessoal não se pode (numa vida tão curta e tudo, que é o que quem se dá bem com ela nunca, nem centenário, nega) limitar-se a um único momento. Ainda que numa vida haja o que chamamos momentos únicos, porque também os há, mesmo não sendo realmente nem inéditos, nem exclusivos.
O Vergílio Ferreira escreveu que «Há o desejo, que não tem limite, e há o que se alcança, que o tem. A felicidade consiste em fazer coincidir os dois.», o que na era da busca da felicidade a que parece termos chegado, nesta tão rápida evolução da ciência e da técnica, e que nos deixa tempo para pensar na melhor maneira de elas usufruirmos, me pareceu conselho sábio. Muito até ao arrepio das igualmente actuais palavras de estímulo que profere quem acha que tem e pode ter vocação para treinar gente feliz, por cima de toda e qualquer circunstância. É que esse tipo de estímulo pode mesmo ser tão exagerado que passem, os que a eles são sujeitos, para o lado oposto, o da frustração. E nada disto, afinal, serve para melhorar o que é o optimismo e o mais recentemente baptizado conceito de auto-estima.

Numa era em que o que podemos ter é muito mais acessível, quando abençoados pelo deus-dinheiro, do que o que podemos ser – basta ver como nos impingem o supérfluo com tanta facilidade e tentam que se contorne o menos bom com a possibilidade de sermos mais felizes com esse supérfluo, tornando-o imprescindível – resistir e viver melhor só deve poder encontrar-se em nós mesmos e na responsabilidade pessoal que cada um de nós, com a ajuda dos outros porque a solidariedade é que também nos permite vivermos em sociedade, treina quando vive. A ideia do Juízo Final que as religiões todas apregoam é esse exame final. Os métodos de treino é que não são os mesmos, mesmo com códigos gémeos. E muitos desses métodos, como sabemos pelas notícias que nos chegam todos os dias, são inimigos do homem e da vida em sociedade.  

28.6.16

Vergílio e a Feira

O calor a aquecer-nos desta maneira e o final de um ano antes das regulamentares férias, para alguns, parece que nos tornam mais preguiçosos… É por estas alturas que quem visita o Alentejo percebe alguns dos seus ritmos, injustamente caracterizados em caricaturas que, com um pouco mais de atenção ao que por cá se passa, bem podiam ser mais perspicazes a apontar outras características. Porque as há, naturalmente. Esta “preguicite” não nos entope o pensar e o ler, o sentir e o lembrar. E foi por isso que me socorrendo de um precioso documento que uma Amiga, precocemente desaparecida, elaborou entre Dezembro de 2012 e Julho de 2013 ao serviço da Câmara Municipal de Évora, e intitulou “Évora na literatura: contribuições para uma antologia”, mais uma vez me encosto à pena de Vergílio Ferreira, tornando-o, mais do que inspiração, quase co-autor da crónica de hoje. Aliás convém dizer que, em vários “lugares e plataformas” da Cidade e da estratosfera, algumas palavras de Vergílio – as que estão no capítulo 25 de Aparição, foram lidas e dadas a ler no passado dia 23, dia da Noite de São João e da inauguração, também este ano, da Feira com o nome do santo.
Das contribuições compiladas por Maria Ludovina Grilo, chega-me o Verão de Évora que diz assim, tão parecido com o deste ano: «O Verão chegou à cidade como uma explosão. Maio viera sereno, com alguns dias de chuva, continuando quase o Inverno. A chuva desapareceu, o tempo estabeleceu-se em acalmia. No pátio do Liceu as quatro árvores reverdeceram. (…) Ao fim das aulas divago pelo jardim público para ouvir os pássaros. Pelos túneis de sombra os mióporos espargem florezinhas brancas como numa apoteose. (…) Sento-me, reconciliado, nos bancos de azulejos, fechados em recantos clandestinos, vou visitar Florbela, olho-a de um banco de madeira que lhe fica em frente, medito com ela.»
Da fonte directa, o romance Aparição, não voltarei a citar os excertos do dito capítulo que o narrador, alter-ego de Vergílio já longe ficcionalmente no espaço e no tempo em que esteve em Évora, recorda a Feira de São João, que descreve muito expressivamente, mostrando o quão bem conheceu Évora e os Eborenses. Retiro só o que disse do dia de outro santo, esse que marca o feriado municipal e dá o Dia da Cidade a Évora, e já serviu, em tempos mais recentes, para que os que gerem a Cidade e o Concelho homenageassem com magnanimidade os cidadãos que fizeram de alguma forma a diferença na Cidade, reconciliando até entre si os que, em nome da Cidade, aceitam, magnanimamente também, ultrapassar diferenças. E diz assim, o romance: «É dia de S. Pedro?, o dia “chique”? Já não sei. A multidão ferve rodando em torno de si, como se toda a feira fosse um enorme carrocel.»
Pois é, digo eu, de repente já tudo é um carrocel que parece fazer alguns, um pouco tontos, esquecerem-se de que há momentos em que se pode parar e marcar diferenças com gestos magnânimos. Não negativamente, suspendendo a festa, até porque fazê-lo é uma desconsideração para com os que antes foram considerados mulheres e homens de valor para a Cidade. 
Estas linhas de literatura e pensamento estão ali, fechadas num volume das muitas edições de Aparição, a lembrar-nos do que é uma feira, do que é Évora, do que é a Feira de São João em Évora. Está ali durante o ano todo, ano após ano. E cada leitura é celebrar o autor, mas também os lugares de que fala. Fora das páginas do livro, há quem queira e possa também lembrar todo o ano a Feira de São João deixando o seu estaleiro montado o ano inteirinho, ali a um cantinho da muralha património, em frente a uma Escola como se de umas traseiras quaisquer se tratasse, esperando – e conseguindo, às tantas! – que ninguém repare nele, já que se disfarça quando se cerca o Rossio, para receber os mercados, ou se o engalana, para receber a Feira.

Votos de que se divirtam nesta Feira de São João 2016, que eu tento fazer o mesmo… o ano inteiro.

21.6.16

Três tiros, sete facadas, dois lobos e um referendo

Esta crónica vai para o ar a dois dias da consulta à Grã-Bretanha sobre a permanência na União Europeia, e depois de 53 americanos e uma deputada inglesa terem sido assassinados por quem se convencionou chamar “lobos solitários”.
Matar parece ser mais fácil do que morrer. Não é de agora, é de sempre. Só parece mais fácil morrer se for para se matar, num ajuste de contas macabro. E sob a égide de ideologias, logo praticado por quem pensa, ainda que mal, sobre o que é o sentido da vida em sociedade. Nada, pois, mais impróprio do que chamar lobo a gente como esta. Compreensível apenas na perpetuação do conto do Capuchinho Vermelho, quer nas versões que acentuam a sua voracidade resultante da fome, quer na branqueada e misógina versão que o faz ser quase-vítima da sedução feminina, o que era bom que fosse assunto revisto para não permitir certos disparates quando se ouve por aí sobre violência doméstica e crimes sexuais. Confesso-vos que, depois de tantas leituras, já tenho para mim que este conto serve apenas e só para ensinar às crianças a obediência perante quem se encarrega da sua educação. Mas enfim, sendo a literatura e a ficção o lugar próprio das muitas possibilidades de leitura, só há que discuti-las não as fechando.
Os que chamaram lobos, mas são só mesmo é assassinos, representam, como nesses lugares de ficção, o medo que vence. Eles representam o poder descontrolado do indivíduo sobre o colectivo. Eles representam a culpa que não se apura mas que se procura sempre para explicar o que não se entende, seja uma diferente orientação sexual ou uma militância política. Eles representam o pior da Humanidade, a sua parte doente que tantas vezes se alastrou a colectivos em regimes totalitaristas. Eles são a ameaça em estado puro porque se parecem e se misturam com os restantes mortais e fazem-nos desconfiar uns dos outros. Eles representam a maçã podre de um lado e rosadinha do outro, como a de outra história. Os lobos não se matam uns aos outros, matam para comer. E se sim, simbolicamente, o lobo tem sentidos antagónicos, porque representa o mal, a crueldade, a luxúria e a ambição, é no que ele simboliza do bem, com a astúcia, a inteligência, a sociabilidade e a compaixão que percebemos que lhe queira vestir a pele, para se disfarçar de bicho, o homem que se transforma num assassino.
Destes crimes recentes, que chocam tanto mais porque se deram em cenários que não são de conflitos mas lugares onde qualquer um de nós poderia ser apanhado, podemos dizer que são terrorismo. Os crimes terroristas misturam dois lugares-comuns únicos à espécie humana de qualquer cultura ou latitude – o Amor e o Medo – manipulados por quem queira espalhar ideologias de forma programática e sistemática, sejam religiosas, políticas ou financeiras.
Voltando ao contexto político de hoje, tratando-se a União Europeia de uma forma de organização que lida precisamente com as diferenças nestas áreas, e com a decorrente dificuldade de as compatibilizar em nome de uma união, já só a hipótese de pôr em causa, dividindo um dos seus membros interinamente, muito diz da pouca saúde dessa relação. Como afirmava o Vergílio Ferreira sobre estas dúvidas no indivíduo: «Perguntar se se é feliz é começar a ser infeliz, como perguntar se Deus existe é começar a ser ateu.».
Ora, na organização das sociedades, a democracia permite-nos discordar entre nós e resolver conflitos e discordâncias, com instrumentos equivalentes e equidistantes, encontrando soluções não bélicas. Estes actos criminosos em nome de causas sociais e políticas são os eternos resquícios de uma Humanidade que prioriza a resolução do conflito com a guerra armada e não segundo as leis do civismo. E isso já não se usa, embora ainda os usem. E também o fazem porque não suportam perceber que, depois de partirem, a vida continua. Como continuará a Europa, com ou sem Grã-Bretanha, com ou sem União. Pode é ser pior, pois pode. O Tempo, e o que as mulheres e os homens fizerem com ele, se encarregará de o demonstrar.

14.6.16

Oposição em três tempos - Terceiro tempo

Chego ao fim deste trio de crónicas sobre a oposição e socorro-me mais uma vez do irónico raciocínio do Vergílio Ferreira: «Não se tem simpatia se não houver seja o que for de admiração: tem-se apenas tolerância ou piedade.». Quer queiramos quer não, a sociedade em geral só valoriza os vencedores. E sobre os que ficam em segundo lugar chega a considerar-se que são só os primeiros de uma longa lista de perdedores.
Se, em determinados casos, este espírito mais competitivo que construtivo transforma os “segundos” em pessoas resilientes e portanto há, seguramente, uma vitória de construção do seu próprio carácter; por outro, e quando se percebe que quem concorre não o faz pelo percurso, tantas vezes em si mesmo já uma finalidade, mas única e exclusivamente com uma ambição até legitimada pelo contexto da competição de nada servir senão a vitória, não ficar em primeiro é motivo de enorme frustração e, por vezes, motivo de comportamentos distorcidos de carácter. Em alguns tristes casos a tendência é a desistência, não de uma carreira no mesmo domínio o que seria compreensível, mas do persistir em percorrer um caminho de construção e optar por enviesar para caminho paralelo que estraga verdadeiramente o espírito inicial, e essencial, da competição em causa.
Podendo parecer que me estou a afastar da Política, da Democracia e do papel da oposição, garanto-vos que não. Uma oposição eleita deve comportar-se ao nível dos seus eleitores, não à espera de vencer a qualquer custo, mas de tentar corrigir eventuais rumos que, claramente inversos aos que propunham para a governação, merecem que se lhes oponham. Por vezes o ambiente causado por uma oposição pouco construtiva, destrutiva mesmo, acaba por contaminar o ambiente em que se vive. E como o destino tem das suas ironias, poderão vir a ter de ser esses mesmos, caso lhes caiba voltar a governar, a recolher os resultados do mau ambiente que criaram.
Comprova-se isto mesmo, a nível nacional, nas ligações entre Partidos que deitaram abaixo um governo socialista em 2011 e que se rearrumaram novamente para permitir que em 2015 um governo socialista voltasse ao poder. A nível local confesso que o que sinto mesmo, no quotidiano que retomei após quatro anos de experiência governativa, é que o clima de contestação pela contestação, que vigorou durante 12 anos, está a ser difícil de levantar. Mesmo com uma aposta feita numa comunicação eficiente, leia-se propaganda, que tenta ser multiplicadora de efeitos de feitos que há décadas se repetem e, em alguns casos, até com melhores resultados antes do que agora, por vicissitudes várias.
Para lá do incontestável facto de que quem ganha o poder é que o tem para mudar o que tem de ser mudado, para melhor em princípio, parece-me que o caminho mais saudável para exercer a oposição é perceber se seria, e como seria, possível fazer melhor do que a proposta governativa. Mais: em nome de que é que se tomam determinadas posições e decisões, normalmente bem identificadas com determinadas ideologias que estão precisamente na base da constituição dos Partidos. E é aqui que entre a esquerda e a direita e tendo eu sempre defendido, no adolescer da Democracia portuguesa a que tenho tido o privilégio de assistir, mais os princípios do que as tácticas da esquerda, me convenço que há que estarmos atentos a outras diferenças, que também se percebem nas estratégias: as dos radicais e as dos moderados.
Enfim, é por isso que para mim também em Política, e ao contrário do que as regras do mundo competitivo da comunicação pela imagem nos querem fazer crer, e conseguem, não me parece que sejam a simpatia ou o seu contrário o mais importante. E muito menos a admiração. Isso fica para os amigos e aqueles com quem efectivamente privamos. Assim, excluir-se-iam também a piedade e a tolerância que, banalizadas desta forma, roçam tantas vezes a arrogância. A mim chegava-me muito bem o civismo e a competência. Na governação, como na oposição a Democracia, com uma real igualdade de oportunidades, deveria tender a crescer no domínio da Meritocracia, sem dó nem piedade, sem idolatrias nem factos tornados consumados. Talvez se lá chegue. 

7.6.16

Oposição em três tempos - Segundo tempo

Na sequência da última crónica, nesta semana continuarei a tratar o tema da oposição e peço emprestada ao Vergílio Ferreira a frase em que o filósofo constata «A pátria, como tudo, és tu. Se for também a do teu adversário político, é já problemático haver pátria que chegue para os dois.». A visão é tudo menos optimista sobre os destinos de um País em que a Democracia é representativa e assumida por Partidos. E, no entanto, é proferida por quem em épocas conturbadas do período pós-25 de Abril assumiu posições políticas e preferências ou, até talvez melhor, antipatias por certos Partidos políticos. Estou inclusivamente convencida de que anda para aí uma gente, que julga a Cultura uma coutada em que é reservado o direito à admissão por questões para além da própria Cultura e se prenderão com outros monopólios, e que menospreza um homem como Vergílio Ferreira e a sua grande importância cultural no nosso País, não porque ouse contestá-lo mas por saberem e apenas lhe reconhecerem, facciosamente, o, pelo próprio reconhecido e assumido, anti-Comunismo. Mas adiante, ou avante, que as palavras também podem ser usadas por todos quando significam o que querem mesmo significar.
O silogismo de Vergílio leva também à questão dos consensos que parece ter vindo a ser apanágio de um discurso de governação rapidamente esquecido pelos mesmos que passam depois à oposição, ou vice-versa. Dá mesmo vontade de exclamar: quem os viu e quem os vê?! Os adversários são, até etimologicamente, sempre oponentes e isso leva-nos muitas vezes a pensar e agir em muitas situações de acordo com o princípio de que se não se está a favor, se está contra. Mas esta posição, em Política mas não só, não pode ser absoluta. Sobretudo quando se joga este jogo em nome de outros e não por si próprio. Ou seja, quando se governa e não quando se governam.
Ora acontece que, se partirmos da base que temos para falar em governação e oposição no sistema democrático teremos de, obviamente, ir à raíz deste sistema político: a Democracia. A directa, muito rara, em que o povo, através de consultas populares, pode decidir directamente sobre assuntos políticos ou administrativos da cidade ou país, e a que chamamos por isso Democracia participativa, sem intermediários conhecidos (deputados ou vereadores, e noutros países senadores) mas com lobbies que se constituem mais ou menos formalmente; e a indireta, ou representativa, em que o povo também participa mas através do voto, elegendo os seus representantes que tomam decisões em nome daqueles que os elegeram. E é assim que chegamos à impossibilidade, a meu ver saudável, de haver uma Pátria única com esse sentido que se põe a jeito para que uma maioria pense e decida por todos. Atenção que a questão das maiorias absolutas também não me chocam, a partir do momento em que reconhecemos que os representantes nessas maiorias não respondem, nem correspondem a ideologias totalitaristas, sendo muitas vezes os Partidos que mais conflitos internos assumem que me deixam, apesar de tudo, mais descansada. Conflitos internos que, parece-me claro, se dirimem e resolvem internamente e com transparência.
Tudo isto é, como está bom de ver, trabalhoso e difícil. Ganha-se competências nesta área, não porque se queira muito, mas quando se assumem projectos de equipa e se é avaliado pelos membros dessa equipa antes de se ser avaliado pelos de fora que, tantas vezes, só depositam nessa equipa a sua esperança. E quando se consegue perceber o todo e optar com base em princípios flexíveis e em consonância com mais benefícios do que prejuízos, mas com limites de razoabilidade que, por vezes, nem sempre parecem logo benéficos e, sobretudo, quando incomodam poucos mas muito poderosos por outras razões para além da Democracia que é governar e fazer governar pelo Povo e para o Povo. Mesmo quando parece que o Povo, como diziam os outros, o que “quer é dinheiro para comprar um carro novo”. Um desabafo humorístico que não abona nada em favor de uma Democracia saudável e equivale ao outro lado que diz que “o que eles querem todos é tacho”.

E parece que chegámos à definição de Pátria que Vergílio Ferreira punha em causa: a do osso para que correm sete cães, ou o poleiro para pavões. Entre um e outro, parece haver ainda muito que aprender e ensinar sobre o que é e como se exerce o Poder. E a oposição, claro! E é por isso que nestas coisas do aprender e do ensinar, na Educação portanto, o investimento é prioritário e não se deve confundir nem com despesa, nem com negócio. 

30.5.16

Oposição em três tempos - Primeiro tempo

Passado meio ano de governação do Partido Socialista suportada no Parlamento pelos chamados Partidos da esquerda radical farei, em três partes e a começar hoje, algumas considerações sobre o que considero ser mais um aspecto da Democracia que merece algum investimento do cidadão contribuinte e votante, quanto mais não seja em atenção e atitude crítica. Note-se que uma atitude crítica não significa aqui forçosamente discordar, mas sim formar uma opinião com o maior número de dados e a melhor informação possível, o que pode ser logo um princípio de “conversa” difícil. Mas antes de começar importa que eu faça uma declaração de interesses: o tema é a oposição e eu pertenço agora a esse lado do sistema político, no caso local, eleita como independente numa lista do Partido Socialista, sendo oposição do Partido Comunista e não, seguramente, numa mesma oposição do Vereador eleito pela coligação PSD/CDS. Situação que se prefigura estranha quando apenas fazemos comparações, pouco ponderadas, entre Partidos como se de Clubes se tratassem mas que, como associações de ideologia e acção políticas com princípios escritos em declarações com que os que neles militam se reveem e com responsabilidades na gestão da vida de todos nós, serão certamente muito mais do que lugares comuns de paixões atávicas.
Importa mesmo, e ainda, que se saiba que estou consciente de duas coisas: a primeira é a de que um eleito deve aos que o elegeram fazer cumprir os princípios com que concorreu às eleições, sendo que na oposição muito dessa acção não conseguirá ir mais além do que tentar que quem está na governação não tenha uma acção que se considere nefasta, sempre em relação aos princípios que se assumiram e que foram a votos, para os interesses dos cidadãos em geral; a segunda certeza que também tenho é a de que, na posição que ocupava na lista concorrente à governação do Município de Évora, os votos obtidos não chegaram para que eu tivesse sido directamente eleita, só tendo assumido as funções de Vereadora da oposição por renúncia ao cargo de quem estava antes. Estas questões que parecem pormenores não devem, no entanto e na minha opinião, ser esquecidas por quem no sistema eleitoral em vigor na nossa Democracia se desloque às urnas quando é chamado a fazê-lo. Somos tentados, de forma quase natural (não o sendo já que tudo é normalmente muito bem encenado para tal), a pensar que apenas votamos nos primeiros de uma lista. De facto, só ao cargo de Presidente da República cabe esse peso e responsabilidade solitária. Tudo o resto é trabalho de equipa, em que as lideranças, para o bem e para o mal, são no entanto fundamentais.  
Para desenvolver este tema da oposição, e para cumprir o que no início desta série de crónicas que se vai aproximando dos tempos de vilegiatura, que é como quem diz em férias e ausente deste espaço da palavra em público, vou desde já, nesta crónica introdutória sobre o tema, citar não uma mas duas constatações de Vergílio Ferreira que me serviram de mote ao tríptico. Na primeira o filósofo e escritor diz que «A pátria, como tudo, és tu. Se for também a do teu adversário político, é já problemático haver pátria que chegue para os dois.». Na outra afirmação, não forçosamente aplicada à área da Política, Vergílio constata que «Não se tem simpatia se não houver seja o que for de admiração: tem-se apenas tolerância ou piedade.». Uma e outra serão, pois, o mote para as duas crónicas que se seguem.

Poderemos começar a adivinhar que isto da Política no século XXI afinal rima com toda a conversa dos afectos, das inteligências emocionais, uma espécie de descoberta e fúria de teorização e empirismo do que, há muito, as figuras que ficaram como proeminentes na História Universal do Homem, sabiam exactamente como ir gerindo consoante aqueles a quem se propunham servir. E como todos sabemos, na galeria dessas figuras há de tudo, do criminoso ao cidadão-modelo, e em matizes diferentes, e que se chegaram a sê-lo foi muito graças a acções e atitudes de quando, antes de governar, tiveram na oposição. Mas se não tivessem saído dela, provavelmente, não teriam tido a oportunidade de marcar a História. Para o bem e para o mal.

23.5.16

Humanidades

O ano lectivo na Universidade está a terminar. Começam os exames. Alguns terão três longos meses e meio de férias pela frente. São os que fizeram as frequências, seguindo a avaliação contínua, vendo-se recompensados por um esforço que distribuíram ao longo do semestre. Outros lá tropeçaram aqui ou ali e terão que tentar, mais uma vez, esta ou aquela matéria menos estudada, entendida, apreciada, pior transmitida. Porque já se sabe, dos dois lados da sala, frente a frente, estão sempre seres humanos. Falíveis, instáveis, por muito competentes e esforçados que se revelem ou os declarem. Há que melhorar, sempre, e a Universidade, como o Mundo, tem esse percurso como destino a alcançar.
Na área das Humanidades e das Ciências Sociais estamos à espera de encontrar quem se ocupe e preocupe mais com metafísicas do que com físicas, mais com comportamentos, formas e métodos de interagir entre indivíduos, entre si e em grupo mais ou menos alargado. É aqui que podemos tentar iludir e ultrapassar o que é físico, químico, comandado por reacções quase predestinadas, e usar o pensamento para além do técnico que, vamos lá ver, sempre é o que nos salva a vida e nos dá, em princípio e se tudo correr pelo melhor, o conforto material da evolução civilizacional. E até nessas áreas haverá momentos em que as certezas que se conquistaram contêm em si histórias que parecem do domínio da ficção e que, por isso mesmo talvez, contribuem para a evolução e para o progresso da Humanidade. O saber, o conhecimento, a técnica, tudo nas mãos de seres humanos a investigar, a ensinar, a aplicar.  
O que é também interessante na instituição Universidade, que é uma Escola onde cada um, e cada vez mais felizmente, deveriam poder encontrar a totalidade, a universalidade, reflectida nos percursos possíveis do conhecimento, e fazer nela o seu caminho aprendendo, onde já ninguém se não o próprio se encarregará da sua Educação, é precisamente a sua semelhança com o resto do Mundo. Mas é lá também onde se espera que estejam os que, pela primeira vez, modelam adultos, sem a intervenção protectora de pais ou tutores, servindo de exemplo numa outra fase de maturação aos que por lá passam e continuam depois o seu percurso pela vida, desejavelmente ganhando uma autonomia libertadora. É assim, pelo menos em teoria.
Tenho para mim que numa sociedade em que as dinâmicas políticas e sistémicas permitem uma muito maior mobilidade social, com o acesso a instituições que antes só serviam elites, o quão mais trabalhoso e responsabilizador é para quem nelas trabalha: colaborar ensinando, e portanto dando o exemplo, a serem bons usuários dessas instituições. Enriquecendo-as, até, com a sua participação que deve ser sempre bem vinda quando é esse o seu fim.      

O Vergílio Ferreira que há 70 anos estava a terminar o seu primeiro ano lectivo neste espaço que agora é Universidade e então foi Liceu, apesar da figura enigmática e do feitio a adivinhar-se mais para o taciturno, inspirou e motivou muitos dos seus alunos. Ele já tinha percebido que para além de ensinar com rigor esta ou aquela matéria, necessária, útil, trabalhosa, a que daremos muito valor num contributo determinado para a sociedade, outras capacidades aparentemente inatas ao ser humano tinham muito para ser trabalhadas por quem e para quem ensinar é mais do que isso. E onde o termo e o conceito de Cultura devem ultrapassar as paredes de uma sala de aulas numa Universidade e…entrar nela, aperfeiçoando-se e aperfeiçoando-a. Ele escreveu: «A cultura é o modo avançado de se estar no Mundo, ou seja a capacidade de se dialogar com ele.» E isto também se deve aprender lá dentro. E praticar.

16.5.16

In & Out, Público e Privado, les Uns et les Autres

Hoje apeteceu-me mesmo escrever uma crónica sobre as virtudes dos outsiders. Os outsiders são aqueles que vindos de fora entram num sistema remexendo-o com impacto. Os outsiders deixam de ser bem vistos por aqueles que se deslumbram com o que vem de fora mas que, depois, do que afinal gostam mesmo é que tudo fique na mesma. O que é impossível com essa espécie de ser humano mais cosmopolita, o outsider, que viu mundo e se dispôs a trazer o mundo para dentro de um quintalinho. Ele até cabia, mas era preciso que tudo se re-arrumasse em novos moldes e não ao jeitinho deste ou daquele, dos que já estão habituados a viver assim há upa, upa… O outsider pode, pois, ir e vir, de onde menos se espere, e leva ou traz consigo o que de melhor cá ou lá aprendeu.
Outsider que é outsider pensa fora da caixa, que é também como quem diz que pensa fora da panelinha, do circulozinho, da quintinha. E quando pensa assim, fora da caixa, e consegue transpor para a acção esse pensamento, outros beneficiarão da mudança ou, ainda melhor, aprenderão também a pensar fora da caixa. Pensar fora da caixa não é pensar mais ou maior, é pensar livre de palas e jugos, em função de valores que se adequem, até institucionalmente, às funções que se exercem, aos papéis que se desempenham, aos compromissos que se assumem.
E que feliz será o sistema que acolha um outsider assim e aprenda com ele. É que ele permite que quem se sinta fora desse sistema possa encontrar o seu lugar. O autor de Aparição, a que vou dedicando a série deste ano das crónicas, disse, e ficou escrito, que: «O prazer que nos dá uma ideia de outrem, com que concordamos, vem-nos da ilusão de que fomos nós que a inventámos. Até porque fomos. Mas só agora o soubemos.» É assim, digo eu, que criamos uma identificação, é assim que descobrimos que não estávamos errados e nos sentimos estimulados a lutar contra uma corrente, se a corrente não nos levar por caminhos rectos e de bom destino.
Hoje apetecia-me fazer uma crónica sobre um ministro que entrou a lutar em nome do bem público e do interesse geral, que é o que um ministro em democracia tem mesmo de fazer. Sobre uma equipa que, afinal, vai só fazer cumprir com o seu trabalho, nada fácil, o que diz a lei e a Constituição, zelando pelos bens que cada cidadão lhe confia para gerir. Que, sem preconceitos, conta com todos os que de boa-fé sigam também esses princípios que às vezes parecem ter morrido e é necessário ressuscitar. Queria fazer uma crónica sobre a nova gestão anunciada dos contratos de associação entre o Estado e as escolas privadas que prestam serviço público, e não as escolas que não prestam a não ser para que alguns tratem das suas vidinhas à custa de todos. E fiz. Depois lembrei-me do outsider. E dei-lhe as boas-vindas ao texto da minha crónica.