Ditou o
calendário deste ano que a crónica de hoje saísse entre o Dia Mundial do Livro
e o 25 de Abril. Não sei o que é viver sem ambos e acho estranho que passados
44 anos ainda haja quem diga que não tem acesso, apesar de uma irreprimível
vontade, nem a um nem a outra. Ter acesso não quer dizer ser obrigado a,
significa escolher do que nos colocam à disposição. Ora isso dá muito mais
trabalho e exige de um cidadão, quanto mais não seja perante si próprio e a sua
consciência, responsabilidade. Aquela que não evita o erro, mas diminui o seu
risco e, porque elas acontecem, nos justifica os porquês do que se fez e não
deu certo. Permite-se a correcção da rota, com ou sem ajuda. Como num Livro que
se pode ler de enfiada, ou em diagonal, ou intermitentemente, ou
recorrentemente, ou aleatoriamente. Como numa Democracia, em que se pode
reclamar com quem podemos escolher para nos gerir os destinos colectivos e
depois dizer-lhes que não, que não os elegeremos outra vez. Se num Livro a emoção
pode justificar, sem perigo de maior, as mudanças de rumo, já na vida em
sociedade, a Política portanto, é da atenção que depende justificarem-se os
usos que fazemos da Liberdade que Abril nos trouxe. E como é doce e quase
justificável a tentação de andarmos todos distraídos. E abusarmos das palavras
que nos oferecem, ao desbarato como restos de colecção.
Já dizia o Jorge
Palma, esse poeta-cantor de imagem desregrada, que Portugal, ai Portugal!,
confundiu amor com pornografia. Também nos mundos do Livro e da Liberdade há
muita confusão. Confusão não é sinónimo de diversidade e pluralismo. (Podia era
ser sinónimo de populismo, sim, essa ameaça de que, feliz ou infelizmente, se
ouve cada vez falar mais. E oxalá que não aconteça como no poema “Adeus” de Eugénio
de Andrade, o que diz “E no entanto, antes das palavras gastas, /tenho a
certeza /que todas as coisas estremeciam /só de murmurar o teu
nome /no silêncio do meu coração. “)
Desta
confusão não se livra a palavra “todos”. Esse plural de que o género masculino
assume na Língua Portuguesa, a materna, a responsabilidade paternal de
significar “elas e eles”. Mas vamos lá descer ao concreto. Um concreto onde
tenho interesses próprios, um direito que me assiste, um dever de o dizer a
quem, quer me oiça ou leia, tem direito de saber. Não basta ensinar todos a
ler, importa alertar para que a leitura, ainda que de um mesmo Livro, não é
igual para todos. E que ela exige atenção, concentração, tempo, esforço. Nós,
os da Literatura, não andamos só a ler se respeitarmos e devolvermos à
Literatura a razão da sua existência. Andamos, por exemplo, a experimentar
cenários de Vida e de vidas. A concreta, a que se representa na ficcional. E
até parece vice-versa. E também não basta dizer que se defende o serviço
público e os seus funcionários – operacionais, técnicos, decisores – e
desconsiderar alguns, por se achar que são elite (ó que mania esta de me
contrariar o que aprendi, até mesmo antes de 74, de que sendo todas diferentes,
sendo os vários esforços reconhecidos financeiramente de forma diferente, todas
as profissões merecem a sua dignidade!).
E neste dia, entre o Dia do Livro, de que alguns, onde
curiosamente não são os Autores os mais numerosos, se acham donos e convencem
“en passant” os outros de que ler é, contraditoriamente, fácil e obrigatório; e
o Dia da Liberdade, que algumas corporações confundem com incoerência, vou
citar o Presidente de um Partido político de que sou insuspeita ser
simpatizante: “Se a política do Governo foi acabar com todos os cortes, não
tenho nada a opor a que se acabem com todos os cortes mesmo”. Ora aqui está um
bom uso da palavra “todos”. 25 de Abril sempre! Unidos ou não, com empenho e
coerência, todos venceremos!